Mas não só de pão vive o homem. Se for verdade que o principal objetivo de uma associação de juízes é defender os interesses comuns e relevantes de todos os seus associados, também é verdade que nenhuma pessoa jurídica do Século XXI, seja ela com ou sem fins lucrativos, pública ou privada, corporativa ou beneficente, pode deixar de lado o conhecimento das dimensões políticas, econômicas e sociais decorrentes de sua simples existência e, principalmente, de sua atuação e postura no mundo. Falo de atuação e postura. Ação e atitude que não podem ser gratuitas. Nascem e crescem à medida que a entidade vai se conhecendo melhor. O conhecimento produz mais força que, por si, faz crescer, desde que seja transformado o conhecimento em posturas e atitudes de coragem e desprendimento diante das duras provas que a luta pela sobrevivência nos serve no dia a dia.
Não poderia ser diferente com a Anamatra. Muitos dizem que ela se desvia de seus objetivos ao marcar de modo claro e inequívoco suas posições, ao fincar no território inóspito as bandeiras de seus ideais e, mais que tudo isso, ao sugerir soluções (seja pela via de proposições legais ou da viabilização de projetos de ação) para os mais graves problemas do país. Apenas para lembrar alguns casos mais recentes, foi essa atitude positiva e corajosa que a Anamatra tomou na luta pela extinção da representação classista, nas denúncias dos casos de nepotismo na Justiça do Trabalho, no apoio incondicional a todas a s denúncias e investigações dos casos de corrupção dentro e fora do Poder Judiciário e, mais recentemente, nas conquistas obtidas na Promulgação da Emenda Constitucional Nº 45, denominada "Reforma do Judiciário". Conquistas estas, diga-se de passagem, que são frutos de um verdadeiro embate figadal de anos não apenas pelo aumento de competência da Justiça do Trabalho, mas uma feroz luta pela manutenção e aumento de poder. Quem conhece Política, mesmo quem já disputou uma eleição para síndico de prédio ou para representante de sua turma na escola, sabe que Poder não é distribuído de maneira gratuita. Poder precisa ser conquistado. Sem sombra de dúvida o aumento de competência aumentou tanto o poder jurisdicional quanto o poder político dos juízes trabalhistas. Trata-se de uma profunda transformação cujos efeitos repercutirão por muitos anos. Ousaria dizer, a respeito desse aumento de competência: constitui a principal garantia da sobrevivência da nossa Justiça Especializada. Mais que isso: garantia de sobrevivência e de "vivência" da Justiça do Trabalho.
Faço uso do neologismo um tanto caipira ("vivência") apenas para ressaltar o fato de que, assim como o Direito do Trabalho vai muito além dos restritos termos e condições de uma relação de emprego, a Justiça do Trabalho necessita de uma "vivência" muito mais rica do que o simples dizer se uma pessoa é ou não empregada de outra, se existem ou não horas extras a serem pagas, se o adicional noturno deve ou não refletir sobre o descanso semanal remunerado. Não que tais questões não sejam importantes. Muito ao contrário. Mas um juiz do trabalho não pode, a partir de agora, fazer uso restrito de função jurisdicional apenas para (ou primordialmente) para solucionar conflitos oriundos do clássico contrato de trabalho. Caso contrário esse contrato de trabalho tão conhecido por todos se transforma junto com a nova realidade do mundo e com o próprio Direito do Trabalho que, de longe, é o mais dinâmico dos ramos da ciência jurídica. E se a Justiça do Trabalho não acompanhar tais transformações corre sério risco de morte por inanição ou asfixia.
Costumo comparar o Direito do Trabalho a um grande mar. Não se esqueçam que sou mineiro e justamente por não ter o mar em minha terra natal, sou conhecedor da sua importância. Conheço a falta de sua brisa fresca e as maravilhas de seu horizonte infinito. Mas também conheço seus perigos. Uso a figura lingüística do mar (perdão, pois não quero e não sou poeta) apenas para lembrar que o Direito do Trabalho, além de horizontes amplos e frescor tem seus perigos. Tem as suas inversões de marés e suas fossas abissais.
As inversões de marés são constantes. No Brasil e no mundo são comuns e reiteradas as tentativas de redução ou supressão de conquistas dos trabalhadores. Não vem de hoje a luta da Anamatra não apenas pela manutenção de tais conquistas como também pela obtenção de novos direitos. Apenas para lembrar cito os debates na Assembléia Nacional Constituinte que culminaram com a elaboração do artigo 7º da Constituição da República, os embates (ainda em curso) contra a forma e o conteúdo da denominada "Reforma da Previdência", as propostas por um novo processo do trabalho e até mesmo a proposta de singelos projetos lei, como aquele que cria a licença remunerada e o benéfico previdenciário para o pai ou mãe, segurado da previdência (empregado ou não), que tem seu filho internado ou sob tratamento médico intensivo sob risco de vida.
As fossas abissais também são muitas. Nelas vivem seres monstruosos. São tão raras as vezes que o juiz do trabalho é obrigado a mergulhar em tais águas profundas e escuras que chegam a dizer que os monstros que vivem em seu lodo não existem. Não passariam de seres imaginários ou de mitos. E não poderia ser diferente: as condições de miséria e a falta de estrutura dos órgãos de fiscalização e denúncia (principalmente do Ministério do Trabalho, da Polícia Federal, das Polícias estaduais e do Ministério Público do Trabalho) são tantas que é muito difícil identificar e, mais difícil ainda, capturar esses monstros. Muitos juízes do trabalho passam a vida ser ver tais monstros dentro de um processo. Conhecem ou ouviram deles falar apenas em livros ou reportagens de televisão ou jornais. Não falo aqui do monstro do lago Ness, do Adamastor ou do Ciclope. Falo de monstruosidades que fazem parte da miserável, barrenta, escura e infecta realidade social do Brasil. Falo dos monstros que habitam as fossas abissais do trabalho escravo, do trabalho em condições indignas e desumanas, do desrespeito ao meio ambiente e à saúde do trabalhador e da exploração da mão de obra da criança e do adolescente, o trabalho infantil.
Iniciativas públicas e privadas de combate a estes monstros que matam o direito têm surgido em muitos cantos do país. Alguns resultados positivos vêm sendo obtidos. Mas ainda não vi o Poder Público adotar uma política eficaz de coibição à exploração sexual de menores. O Brasil continua um paraíso para o chamado "turismo sexual". Enquanto o salário mínimo for indecente continuará sendo mais interessante para a criança ou adolescente (muitas vezes com o apoio dos familiares) aumentar a renda familiar trabalhando para o narcotráfico e para o narcoplantio. Se o sistema de ensino não for eficiente, gratuito e interessante para toda as crianças persistirá a exploração do trabalho infantil. A falta de um sistema de ensino e de uma política educacional séria jamais permitirá ao Brasil melhorar a qualidade de sua mão e mente de obra. Conseqüentemente continuaremos à margem das atividades econômicas mais produtivas, a informalidade crescerá, os recursos públicos diminuirão e a miséria crescerá. E crescerá geometricamente. É dessa miséria que vivem e engordam os monstros do trabalho escravo, do trabalho indigno e do trabalho infantil.
Gostaria de um dia esquecer a reportagem lida anos atrás. Numa cidade do Vale do Jequitinhonha, uma das mais pobres do Brasil, um dos comerciantes mais prósperos era o agente funerário local. Seu principal lucro (mais de noventa por cento do faturamento) vinha da construção e venda de caixões para crianças, os chamados "anjinhos". Todos azuis para redução dos custos. O índice de mortalidade infantil na cidade passava de uma criança para cada três nascidas com vida. No negócio do agente funerário trabalhavam todos seus filhos, inclusive uma menina de oito anos que forrava os pequenos caixões e um menino de dez que fazia as montagens. O pai se orgulhava de estar contribuído para a formação profissional de seus filhos.
Comprometo-me aqui: a Anamatra não se furtará, como até agora jamais se furtou, de combater a exploração do trabalho escravo, do trabalho infantil e a degradação do meio ambiente no qual vive e trabalha o ser humano. E também continuará construindo diques para conter as sucessivas ondas que visam suprimir ou reduzir direitos dos trabalhadores.
Apenas para citar alguns exemplos, além do continuo trabalho no Congresso Nacional, a Anamatra, em parceria com a OIT e com o apoio de diversas instituições públicas e privadas realizará uma série de cursos para capacitação de bacharéis em Direito no combate e na prevenção do Trabalho Infantil. Estes cursos serão realizados nos locais onde a OIT já possui ações concretas e necessita de pessoas qualificadas para dar continuidade aos seus projetos. A atuação da Anamatra junto ao FNPETI (Fórum Nacional para a Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil) será desenvolvida. Há a urgente necessidade de socorro financeiro ao INPETI (ameaçado de morte pela asfixia da falta de recursos) e a sua transformação numa entidade capaz de viver e atuar com independência. A divulgação da cartilha do trabalhador será feita junto com o trabalho de desenvolvimento da cidadania.
A presença da Anamatra nesses diversos "fronts" de batalha está consolidada. Os colegas que viram e enfrentaram os monstros do trabalho escravo, do trabalho infantil e da indigna exploração do trabalhador que é usado em virtude da sua pequena ou nula formação escolar e da sua enorme necessidade de sobrevivência sabem e conhecem a realidade dos abismos escuros já mencionados. Os juízes que fizeram o corpo a corpo dos últimos anos no Congresso Nacional conhecem as dificuldades para se criar qualquer lei de proteção ao trabalhador e da facilidade para retirá-las do mundo jurídico.
O maior desafio agora é levar a toda Justiça do Trabalho, TRT por TRT, Amatra por Amatra, Vara por Vara, toda e qualquer informação sobre esta triste realidade. O objetivo é sensibilizar e conscientizar a magistratura trabalhista da importância de seu papel na sociedade. Da sua capacidade de formar opinião e, mais do que isso, fazer valer o Direito e, quem sabe, diminuir as injustiças sociais do Brasil.
Para enfrentar tais injustiças não se faz necessário nenhum Dom Quixote. É preciso organização, união e coragem, muita coragem. Não será sozinha que a Anamatra ou mesmo a Justiça do Trabalho poderá enfrentar os monstros já mencionados. Trata-se de uma luta de toda a sociedade e que provavelmente não será vencida nos próximos dois ou quatro anos. Faz-se urgente a preparação para uma guerra de muitos anos. Uma guerra muitas vezes desleal, na qual temos como principal arma apenas do Direito e a Justiça. O inimigo dispõe de todas as outras armas (em sentido figurado e também no sentido literal). Será imprescindível o estabelecimento de alianças institucionais fortes e perenes. Fundamental a união e articulação de ações do Ministério Público do Trabalho, do Poder Executivo (Ministério da Justiça e Ministério do Trabalho) e da Justiça do Trabalho (TST, TRTs e juízes de primeiro grau). As associações de classe, como a Anamatra, ANPT e Amatras exercerão papel fundamental nessa verdadeira guerra contra o desrespeito ao Direito do Trabalho em seu sentido mais amplo.