Recentemente, fui questionado por um colega sobre o que achava da nova Lei 11.280/2006. No entanto, são tantas as inovações legislativas que, confesso, não sabia sobre o que se tratava.
Curioso, fui me informar sobre a tal Lei 11.280/2006, sancionada em 12 de fevereiro último. Após rápida leitura, entendi a preocupação do colega, haja vista que passou a me preocupar muito também. De todas as inovações trazidas, a mais interessante, ainda que de simples redação, foi aquela que alterou o `PAR` 5º do artigo 219 do CPC, que até então dispunha "não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato", e agora preconiza - o juiz pronunciará, de ofício, a prescrição.
Como dizem os profissionais da imprensa: "Parem as máquinas!".
Talvez o legislador não tenha sopesado as conseqüências desta inovação, o abalo que trará ao processo e à estrutura do Direito como o conhecemos. Trata-se de rompimento com dois mil anos de conhecimento jurídico, e, se o fez conscientemente, praticou ato de extrema ousadia, que sem dúvida fará com que todos os operadores jurídicos parem para pensar o Direito de forma diferente a partir de agora, ao menos no que concerne aos institutos da segurança jurídica, direito intertemporal, dentre outros correlatos.
Tudo é muito novo, todas as proposições neste momento obviamente constituem divagações de um curioso do Direito preocupado com nova redação do dispositivo em comento, tanto para o Direito como um todo, quanto para o Direito do Trabalho.
Alguns entusiastas já se manifestaram no sentido de constituir inovação de vanguarda que trará celeridade e agilidade ao processo, desafogando o Judiciário, muitas vezes provocado e já assoberbado por ações fadadas a um julgamento prejudicado em razão da prescrição.
Outros, ainda mais revolucionários, já preconizam a possibilidade de o magistrado proferir seu julgamento após o ajuizamento da demanda, mesmo antes de formada a relação processual, quando denotar que se trata de pretensão açambarcada pela prescrição.
Vamos devagar com o andor. Mesmo me considerando inovador e progressista quanto às teses jurídicas adotadas, confesso que ainda não estou pronto para tal ponderação, ousando, inclusive, considerar equivocada tal conclusão.
Vou tentar partilhar, por meio destes breves comentários, as impressões positivas e negativas que a inovação legislativa em comento trará, de plano, para o Direito, registrando desde já, como já se deve ter notado, que as negativas superam, e muito, as positivas.
Antes, porém, é de se consignar conseqüência primordial da inovação trazida pela Lei 11.180/2006 - qual seja, a derrogação do artigo 194 do Código Civil pelo novel `PAR` 5º do artigo 219 do CPC, ainda que se tratem de cadernos de Direito Material e Processual, respectivamente, do fato de o CPC tratar desse instituto advém tal corolário.
Comecemos com aquilo que é bom, as impressões positivas.
Tal qual ponderado acima, não posso deixar de registrar que a mesma idéia de alguns colegas, no entanto, não em todas as áreas jurídicas, também me ocorre quanto à argüição da prescrição de ofício.
A possibilidade de o magistrado conhecer a prescrição de ofício, ou seja, sem a necessidade de provocação da parte a quem interessa o instituto, num primeiro momento se afigura como a solução de pilhas e pilhas de processos que se avolumam nas escrivanias do Poder Judiciário, sobretudo na área cível, questões há muito sufragadas pela prescrição que o magistrado poderá decidir rapidamente, desafogar o trabalho e dispender maior atenção para as demais demandas.
Na área trabalhista, não acho que seria uma grande solução sob essa perspectiva: a uma, porque são raros os casos em que o interessado deixa de argüir a ocorrência da prescrição prevista no inciso XXIX do artigo 7º da Constituição de 1988; a duas, porque o Judiciário Trabalhista orgulhosamente é conhecido por sua celeridade frente às demais áreas, e esta possibilidade de conhecer a prescrição de ofício não significaria um "desafogamento" de processos.
A única hipótese positiva que me ocorre com a possibilidade de conhecer a prescrição de ofício seria coibir a utilização do processo para fins escusos e fraudulentos, haja vista que, vez por outra, surgem demandas há muito prescritas, de valores vultosos, que, no fim, almejam o descortinado fim de fraudar direitos de outros empregados e credores da empresa demandada, que se utiliza de antigo empregado, como um "laranja", para obter título judicial trabalhista, que, em razão do seu status de "crédito superprivilegiado", pretere a outras dívidas daquela empresa.
A perspectiva positiva, ao menos por enquanto, termina aqui.
Desde os primeiros momentos nos bancos da Academia, aprendemos que prescrição e decadência são institutos totalmente diferentes, ainda que parecidos em sua raiz, pois implicam na perda ou aquisição de atividade jurisdicional pelo decurso de tempo.
Há cerca de dois mil anos (desde o Direito Romano), os juristas se esmeram em tentativas, por vezes vãs, em diferenciar a prescrição e a decadência, ultimamente chegando ao consenso de que a prescrição se trata de instituto que, após certo lapso de tempo, implica em perda da pretensão jurisdicional ou aquisição de direitos (usucapião), enquanto decadência traria prejuízo ao próprio direito que se pretendia tutelar jurisdicionalmente.
Ambos têm sua razão de ser no princípio fundamental do Direito, hoje assegurado constitucionalmente, da segurança jurídica, a fim de conferir à sociedade um mínimo de certeza de que os pretensos detentores de um direito devam exercê-lo dentro de determinado lapso temporal.
A decadência, por atingir o próprio direito, é passível de argüição de ofício pelo magistrado, pois este, ao se deparar com demanda em que se pretenda buscar direito atingido por tal instituto, e, por isso, já inexistente, deve se manifestar, independentemente de provocação. Nesses casos, o interesse defendido ultrapassa o da outra parte, visto que pertencente à própria sociedade, que corre o risco de perder a segurança jurídica e a paz social.
Justamente com o propósito de impedir e propagar um ato tido como ilícito, o de buscar tutela jurisdicional de direito sabido inexistente, é que a decadência assume o status de matéria de ordem pública e, como tal, integra o dever de apreciação de ofício pelo magistrado.
Já a prescrição - por atingir somente a pretensão do detentor do direito, ou seja, continua a tê-lo, somente não poderia buscar a tutela jurisdicional do Estado para dirimir aquela questão, e, por isso, matéria de defesa da outra parte interessada - está (ou pelo menos estava) submetida à necessidade de provocação.
Assim, a possibilidade ou não de argüição de determinada matéria de ofício tem sua razão de ser, no caso, entre os dois institutos aqui abordados, decorrente da sua condição e de suas naturezas jurídicas. O legislador agora fez o caminho inverso, alterou a possibilidade de o magistrado conhecer de ofício a prescrição, sem qualquer observância de sua natureza jurídica, trazendo, ao menos para este curioso, uma série de questionamentos e conclusões que espero estejam equivocadas.
A primeira dúvida que me surge é a seguinte: teria passado a prescrição a ser matéria de ordem pública? A primeira resposta que me surge é que sim, já que agora tal qual a decadência pode ser conhecida de ofício pelo magistrado. Juntamente com este questionamento, outro se segue: se todo o esforço retromencionado de se diferenciar os dois institutos ao longo desses dois milênios teria sido em vão, já que, na prática, não teriam mais diferença. Novamente e infelizmente a resposta é positiva.
Haveria prejuízo à imparcialidade do magistrado? Creio que sim, já que a prescrição na condição de instituto de direito material, e não processual, deveria ser argüido pela parte a quem interessa, sob pena de o magistrado cercear o direito do jurisdicionado, e não somente a sua pretensão acaso argüido pela parte contrária.
O incomparável PONTES DE MIRANDA já preconizava que prescrição "é a exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação". Diz ainda, em seguida, que "do conceito de exceção é ineliminável que dependa do demandado, ou devedor, exerce-la, o depender da vontade dá excipiente é-lhe essencial".
E, por fim, conclui: "Concebida como exceção, como sempre o foi no direito romano, a prescrição aproveita, também, ao devedor, ainda quando ele sabia e sabe que deve. Tal proteção não é ipso jure. A exceção pode deixar de ser oposta, o que dá ao seu titular a faculdade de não na opor, ficando bem, assim, com a sua consciência" (in Tratado de Direito Privado, Rio, Borsoi, 1955, t. VI).
Como em uma fileira de dominós, uma dúvida leva a outra: seria plena e juridicamente possível a já mencionada proposta de alguns estudiosos mais radicais, de que poderia o magistrado extinguir um processo já desde o seu ajuizamento, com julgamento do mérito, se presente o instituto da prescrição, mesmo antes de se formar a relação processual (citação), observado o seu status de matéria de ordem pública. Seria a grande solução para um sem número de processos.
Ledo engano. Penso que tanto o legislador quanto estes radicais não equalizaram todas as hipóteses advindas de tal proposta, a começar pela extinção de um processo com julgamento de mérito, mesmo existente um direito, e suscitando de ofício matéria de defesa da outra parte antes mesmo que haja sua citação. Outra questão, que talvez não tenham cogitado, é que a prescrição tanto serve para perda da pretensão sobre um direito, quanto para aquisição de direitos.
Nas ações possessórias, o demandante teria um julgamento de mérito, pela procedência, antes mesmo da citação da outra parte, já que o magistrado deveria reconhecer o usucapião (prescrição aquisitiva) já com a petição inicial, no primeiro despacho, pois a inovação legislativa aqui tratada não fez qualquer distinção. E, por conseqüência (pasmem!), a outra parte teria eliminada qualquer possibilidade de defesa do seu direito de propriedade constitucionalmente assegurado, sequer para alegar uma eventual suspensão ou interrupção daquele lapso prescricional.
Não se diga que os comentários aqui tecidos são visões apocalípticas de "louvável" tentativa de conferir maior celeridade aos procedimentos, porque, a meu ver, nada mais são do que inevitáveis conseqüências advindas dessa tentativa, que, repito, foi impensada, abrupta e precipitada, rompendo com os princípios até então conhecidos do Direito Material e Processual.
Fica a desconfiança e esperança de que as conclusões aqui aventadas estejam equivocadas, de forma que, no fim, a inovação comentada se consolide como avanço na ciência jurídica e efetivo instrumento de implementação de celeridade e máxima utilidade processual e melhora no dever de prestação jurisdicional.