"Que na voz que o mundo te
arranca
Vale é o tanto quanto lavras
A utilidade das palavras."
Nei Lisboa
Dando seguimento a uma política de modernização do processo civil brasileiro, iniciada há mais de dez anos, com o objetivo de emprestar maior celeridade à prestação jurisdicional, foi promulgada a Lei nº 11.280, em 16 de fevereiro do corrente ano, com vacatio legis de 90 dias (art. 10), alterando inúmeros dispositivos do CPC, dentre os quais, o art. 219, `PAR`5o.
Em sua redação original, dispunha a regra adjetiva que "não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato.", passando, a partir de maio de 2006, a figurar como "o juiz pronunciará, de ofício, a prescrição."
Segundo o relator do projeto, Senador Aluísio Mercadante, "esta medida acabará com as restrições impostas ao conhecimento da prescrição, de ofício, pelo magistrado, contribuindo para a redução da morosidade processual, uma vez que impedirá a prática de atos desnecessários naquelas demandas em que o direito material controvertido já foi fulminado pela prescrição."
Não há como recepcionar de modo acrítico a inovação legal, por violadora de todo um arcabouço jurídico, sem qualquer justificativa relevante, principalmente se aventada sua aplicação na esfera trabalhista.
De início, percebe-se a impropriedade com que se reveste, alteração de cunho heterotópico, fora do campo normativo próprio, na medida em que o instituto da prescrição faz parte do direito material, sendo regido, inclusive, pelo Código Civil, arts. 189 a 206.
Além disso, como prejudicial de mérito, atinge a pretensão do direito de ação, jamais o próprio direito, tendo como fundamento afastar a "incerteza em um lapso determinado de tempo", quanto à possibilidade de cobrança pelo credor de uma dívida, segundo lição de Agnelo Amorim Filho.[2] Objetiva impedir que penda eternamente sobre a cabeça de alguém, mesmo sabendo ser devedor, uma espada (a via judicial), ficando a mercê de um credor inadvertidamente inerte.
Pela natureza da prescrição, constata-se que apenas o sujeito passivo de uma relação obrigacional, em regra, tem interesse em seu pronunciamento, tornando o elo entre as partes uma obrigação natural, desprovida de qualquer coerção em sua cobrança pelo Estado. Excepcionam-se de tal quadro situações envolvendo direitos indisponíveis ou, ainda, relativos a absolutamente incapazes (Código Civil, art. 194), imposição feita pela presença de interesse atrelado às ordens pública e social, que se sobrepõe àquele de natureza estritamente privada.
A ampliação irrestrita do reconhecimento de ofício da prescrição, como proposto, não ostenta qualquer justificativa, acabando por transmudar o caráter desta, em prejuízo à segurança das relações interpessoais.[3]
A questão que se apresenta é de singular gravidade, a ponto de José Maria Tesheiner afirmar que "podendo ser decretada de ofício, a prescrição deixa a categoria das exceções strito sensu", pelo que "não se limita a encobrir a eficácia da pretensão, mas extingue o próprio direito subjetivo".[4]
Há, por via direta, a quebra da eqüidistância que caracteriza o magistrado em face dos litigantes, passando a atuar em proveito de um deles, e, por incrível que possa parecer, contrariando o interesse de quem, por seu silêncio, renuncia de forma tácita uma parte de seu direito de defesa. Permitir-se-ia que alguém demandado em Juízo deixasse de atender ao chamado do Estado, sendo reputado revel, nada sofrendo, ainda que inconteste a existência de uma dívida em seu nome, caso transcorrido o prazo prescricional, desde que o Juiz se apercebesse de tal fato.
No processo trabalhista, ter-se-ia o completo esvaziamento do Princípio Protetivo que inspira o Direito Material, que passaria a pender do lado do trabalhador ao empregador, a partir da propositura da ação. Subvertido, em sua essência, estaria este ramo do Direito e ameaçada acabaria a busca da igualdade em sentido real.
Além disso, a "novidade" pode gerar, ainda, um afastamento maior da celeridade processual almejada, bastando que o credor, após o silêncio do devedor em contestação, deixe de produzir prova de eventuais causas interruptiva ou suspensiva do prazo prescricional, induzindo, de forma não intencional, o julgador em erro.
Assim, inaplicável em sede trabalhista a inovação apresentada pela Lei no 11.280, quanto ao pronunciamento de ofício da prescrição, pelo que dispõem os arts. 8o e 769, ambos da CLT, em vista de completa incompatibilidade teleológica. Cabe, portanto, à doutrina e à jurisprudência emprestar uma interpretação à regra, dando a seus efeitos um contorno condizente com os demais valores que inspiram o Ordenamento, sob risco de que venha produzir efeitos mais nocivos dos que aqueles que sua criação objetivou atacar.
* Oscar Krost é Juiz do Trabalho Substituto da 12a Região/SC
[1]http://www.mercadante.com.br/projetos/projeto _169.html, capturado em 17.3.2006.
[2] Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, São Paulo, n.300, pp. 6-37.
[3] A própria doutrina, há longa data, é pacífica sobre a singularidade do pronunciamento ex officio da prescrição, lecionando Luiz Frederico Carpenter: "E não se pode admitir, em boa doutrina, que sendo a prescripção fundada na ordem pública, na necessidade social, ao juiz, quando encontrar provada nos autos a mesma prescripção, só seja dado applical-a ou pronuncial-a a requerimento da parte.
Não, si a prescripção se funda na ordem pública, na necessidade social, ao juiz deve ser lícito pronuncial-a de offício, sempre que a encontrar provada nos autos: assim ficará attendida a boa doutrina acerca do fundamento da prescripção." (apud PRUNES, José Luiz Ferreira. Tratado sobre a prescrição e a decadência no Direito do Trabalho. São Paul LTr, 1998, p. 254)
[4]http://www.tex.pro.br/wwwro ot/01de2006/prescricao_decretacaodeoficio.htm, capturado em 17.3.2006.