A reflexão que desejo empreender aqui, envolvendo o problema da (des)regulamentação trabalhista, busca se distanciar de um viés exclusivamente dogmático para se aproximar de um paradigma mais complexo de compreensão dos fenômenos contemporâneos que caracterizam o mundo do trabalho e, por conseqüência, o conjunto regulatório que o perpassa.
E esse aporte metodológico é importante, já que boa parte dos fenômenos que atualmente desafiam os estudiosos do Direito do Trabalho em face da nova ordem econômica global somente podem ser apreendidos por meio de análises, a um só tempo, sociológicas, políticas e econômicas, o que corresponde enfrentá-los tendo em mira uma certa revolução paradigmática (FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo, Malheiros, 2002, p. 47).
Três exemplos recentes de conflitos da ordem do trabalho podem pavimentar para o leitor as questões que procurarei privilegiar neste texto.
O primeiro é bem recente, e ainda corre por esses dias no Estado de São Paulo, com ampla divulgação pela grande imprensa. Milhares de funcionários da Volkswagen do Brasil estão se preparando para uma paralisação em protesto contra o anúncio feito pela direção mundial da empresa de um plano de reestruturação em todo o mundo. Em decorrência desse plano, já foram anunciadas mais de 6.000 dispensas no país.
A empresa aponta como causas para a perda de sua rentabilidade a competição interna e externa e a desvalorização da moeda norte-americana - referencial para as trocas internacionais - frente à moeda brasileira, o Real.
A proposta de recuperação dos padrões anteriores de rentabilidade da empresa apresentada ao sindicato da categoria profissional foi a seguinte: redução imediata de 35% nas tabelas salariais vigentes; realização de horas extras sem remuneração e, pelo menos, dois anos sem qualquer aumento real de salário.
O segundo exemplo também vem do Brasil, desta vez de Minas Gerais. A fábrica de veículos da Fiat em Betim reuniu seus fornecedores de peças e anunciou a perda de competitividade de seus produtos, diante dos patamares de preço das peças fabricadas na China. A empresa exigiu a redução de custo das peças fornecidas pelas empresas brasileiras, e, se isso não for possível, sugeriu que elas providenciassem a importação de peças chinesas, sob pena de a Fiat considerar a opção de encerrar a produção de veículos para abastecer o mercado brasileiro exclusivamente com automóveis importados (Revista Época, 20 mar. 2006).
Por fim, o terceiro exemplo. A Gradiente, conhecida produtora de produtos eletrônicos no Brasil, localizada na Zona Franca de Manaus, montou um escritório na China há dois anos, cuja missão é enviar peças e produtos para o Brasil, onde já se tornou inviável a produção de certos produtos, como DVDs básicos ou CD-players, sendo a importação diretamente da China a estratégia mais interessante e lucrativa para a companhia (Revista Época, 20 mar. 2006).
O que esses exemplos têm em comum? E o que eles têm a nos mostrar?
Em primeiro lugar, que não é mais possível pensar nas questões do mundo do trabalho, como emprego, garantias sociais e efetividade do conjunto regulatório em termos locais do Estado-Nação, ignorando as forças que caracterizam a economia global e definem a chamada divisão internacional do trabalho.
Não que o Estado-Nação tenha perdido integralmente sua soberania ou mesmo tenha deixado de ser um importante centro de produção do direito legislado. O que sucede é que os influxos da competição entre os mercados (inclusive o de trabalho) e as próprias tensões dos capitais têm influenciado sobremaneira a agenda governamental.
Noutras palavras, "o Estado continuou legislando, inclusive em matéria econômica, tributária, monetária, previdenciária, trabalhista, civil e comercial. Mas passou a fazê-lo agora, e esse é o fato digno de nota, diminuído em seu poder de intervenção e, muitas vezes, constrangido em compartilhar sua titularidade de iniciativa legislativa com diferentes forças que transcendem o nível nacional" (FARIA, 2002, p. 141).
De outro lado, a questão do emprego, seja na União Européia, como pontua José Augusto Ferreira da Silva (Temas laborais Luso-Brasileiros. São Paul LTr, 2006, p. 155) ou no Brasil, ou ainda em qualquer outra parte do mundo, tornou-se não-somente a questão central da agenda política e social dos paises centrais ou periféricos, mas também irradia novos e poderosos valores, exponenciando a carga axiológica da sociedade do trabalho, ou a sociedade de trabalhadores.
Tanto assim o é que soa como infalível a sentença cunhada por Luís Felipe de Alencastr "pior do que ser explorado pelo capitalismo é não ser explorado pelo capitalismo", de modo a caracterizar uma sociedade que não mais dispõe de outra opção que não seja a integração (ou pelo menos a busca dessa integração) de trabalhadores no sistema de produção hegemônico. Trata-se de aspecto que se tornou ainda mais visível a partir da integração de um imenso contingente de trabalhadores até então subsumidos a uma estirpe de regime de produção distinto, que foi desfeito simbolicamente em 09 de novembro de 1989, com a queda do Muro de Berlim.
A partir de então, novos Estado passaram a disputar os investimentos globais, sejam financeiros seja na modalidade de inversão direta para investimento na produção de bens e serviços, multiplicando os exércitos de reserva e a disponibilidade de mão-de-obra.
Se aliarmos essas questões ao inacreditável salto tecnológico no campo das transmissões de dados e informações, além do importante desenvolvimento no setor de logística e de transportes, observaremos o recrudescimento do fenômeno da deslocalização produtiva, através da qual se transferem fábricas e outras atividades para os chamados "greenfields", ou seja, para áreas de maior produtividade e menor custo de mão-de-obra.
Como acentuou o professor Jorge Leite, em sua participação neste conclave, esse fenômeno da deslocalização ameaça atualmente não só países como Portugal e Brasil, mas todos os demais e desafia os mercados de trabalho, constantemente pressionados pela possibilidade de transferência de atividades produtivas e, claro, empregos para outro lugar do planeta que ofereça melhores condições para a reprodução veloz e crescente dos capitais investidos.
Sob tais pressões, os Estados são constantemente instados a alterar sua legislação fiscal e trabalhista, de modo a proporcionar uma redução de custos, garantindo-se maior presença de investimentos no país, expondo a sua perda de centralidade como eixo político exclusivo na definição de modelos regulatórios.
E a legislação social, por seu turno, perde paulatinamente sua legitimação diante da precarização real das relações de trabalho promovida ao nível das corporações, muitas vezes com a concordância dos seus próprios empregados e respectivos sindicatos, que capitulam diante do temor da perda do emprego, tal como um náufrago que de tudo se desprende para se agarrar a algo que lhe permita flutuar, enquanto espera, à mercê das marés, por uma ajuda, um salvamento.
Poderíamos supor que o Brasil e Portugal, onde se praticam patamares salariais de reconhecida insuficiência diante de realidades mais centrais, constituem-se mercados de trabalho competitivos, de modo a atrair o interesse expressivo de capitais, com potencial, assim, para a geração de emprego e renda. Sucede que, se contemplarmos o mundo tal como ele se apresenta hoje, mais plano (Thomas Friedman), pelo menos na perspectiva econômica, vamos observar uma outra realidade.
Quadro Único - Salário-hora médio nos países selecionados
Alemanha |
US$ |
21,50 |
Suécia |
US$ |
20,93 |
França |
US$ |
15,25 |
EEUU |
US$ |
14,83 |
Japão |
US$ |
12,84 |
Grã-Bretanha |
US$ |
12,48 |
Espanha |
US$ |
11,58 |
Grécia |
US$ |
5,49 |
Coréia |
US$ |
4,16 |
Portugal |
US$ |
3,57 |
Brasil |
US$ |
2,79 |
Polônia |
US$ |
2,09 |
Rússia |
US$ |
0,60 |
Tailândia |
US$ |
0,46 |
Índia e China |
US$ |
0,25 |
Nesses números, basicamente, reside o desafio do chamado "preço chinês". A China, a propósito, não é um país desprovido integralmente de leis trabalhistas. Pelo contrário, tem um código de trabalho até interessante, mas que não é observado. Não existe a possibilidade de se recorrer democraticamente ao Judiciário e os sindicatos são quase que totalmente atrelados ao Estado chinês:
Ao contrário do que determina a lei, porém, a esmagadora maioria dos trabalhadores chineses não tem folga semanal, não têm férias e é obrigada a trabalhar horas extras sem remuneração adicional. Muitos sofrem castigos físicos. Além disso, as condições de salubridade e segurança no trabalho não são levadas em conta. São freqüentes os casos de contratos leoninos, que levam patrões a não pagar nenhum salário se o trabalhador não ficar pelo menos um ano no emprego ou que obrigam o trabalhador a pagar o custo de moradia e alimentação na fábrica, o que redunda em um esquema de quase escravidão (Revista Época, 10 abr. 2006).
Justamente apoiados sob essas condições que países como a China, dentre outros, inserem-se na rede mundial de trocas, perturbando a ordem sócio-laboral de todo o globo, alavancando os postulados da acumulação flexível, que tem na desregulamentação do trabalho um dos seus pontos fundamentais.
A flexibilidade das normas trabalhistas, como já se percebe, não é portanto um processo que nasce apenas como idéia, mas brota no seio de toda uma conjuntura econômica e social complexa e mundialmente integrada.
De igual sorte não é um fenômeno cêntrico, com foco apenas na desregulação da legislação estatal de proteção ao trabalho. Pelo contrário, trata-se de um fenômeno policêntrico que busca sua manifestação fenomenológica também ao nível das corporações, do chamado direito da produção (FARIA, 2002, p. 159), que estabelece, a partir de uma racionalidade material, as bases para a formatação das regras de contração e gestão de pessoal, muitas vezes pressionando a categoria profissional a firmar acordos e convenções coletivas de natureza flexibilizadora, fundamentados em brechas legais e interpretações ampliativas de institutos legais de negociação de direitos.
Por isso, entendo que devemos considerar a existência de pelo menos duas ordens de flexibilização dos direitos trabalhistas: uma autônoma, realizada pelos principais atores da relação capital e trabalho; e outra heterônoma, produzida com a interveniência do Estado, em sua concepção ampliada, incluindo o Poder Judiciário.
É importante perceber, desde logo, o potencial desse viés autônomo de flexibilização, muitas vezes distante dos olhos do observador do Direito do Trabalho. Num ambiente complexo e velozmente perpassado por necessidades instantâneas de competitividade e sobrevivência, sem falar nas constantes oportunidades de lucros sem a devida contrapartida social, muitas corporações estabelecem os paradigmas de negociação e de execução de contratos de trabalho, incluindo terceirização de mão-de-obra e outras técnicas alinhadas com a acumulação flexível.
São situações já postas, cuja inexpressiva fração chega, por exemplo, ao conhecimento do Poder Judiciário. E quando isso ocorre, já se passaram meses, quiçá anos de prática empresarial desregulamentadora.
Podemos detectar tal fenômeno nos julgamentos levados a efeito no Brasil de causas que examinam a legalidade de normas coletivas, às vezes chanceladas, outras vezes não.
No panorama da flexibilização heterônoma, o Brasil tem apresentado importantes manifestações na trilha da flexibilização de direitos, tema que, aliás, tornou-se lugar comum na última década, ocupando o centro dos debates em torno do modelo regulatório adequado aos desafios da ordem globalizada da economia.
Nesse diapasão, inserem-se as normas do chamado "Pacote FHC", apresentadas ao Congresso Nacional em 1998, seja por meio de projetos de lei, seja por meio de medidas provisórias.
Daquelas normas em vigor desde então, destacamos (a) a Lei do Contrato Temporário de Trabalho (Lei 9.601/98), que aboliu o caráter excepcional da contratação temporária e reduziu alguns direitos trabalhistas para a contratação nessa modalidade; (b) a instituição do regime legal de banco de horas, com permissão à compensação de trabalho suplementar num lapso temporal de até um ano; (c) a suspensão temporária do contrato de trabalho, com fomento à requalificação profissional com incentivos governamentais; (d) a criação do regime de trabalho a tempo parcial.
Afora isso, fora proposto também projeto de lei visando a alteração do art. 618 da Consolidação das Leis do Trabalho, de modo a privilegiar as normas convencionais em face da legislação mínima trabalhista, proposição que despertou grande polêmica e foi retirada pelo Poder Executivo em 2003.
Também merece destaque, na ordem da flexibilização heterônoma, a mitigação do privilégio do crédito trabalhista na nova Lei de Recuperação Judicial e Falência, limitado que ficou a 150 salários mínimos, sendo que o restante foi remetido a apuração como créditos quirografários.
O contrato de aprendizagem, por seu turno, foi alterado pela Lei 11.180/2005, elevando a idade do aprendiz para até 24 anos.
Atualmente, despertam interesse no Parlamento brasileiro duas proposições, de efeito nitidamente precarizante. A primeira, Projeto de Lei 4330/2004, busca regulamentar e, portanto, legitimar, a atividade de terceirização e quarteirização de mão-de-obra através de empresas interpostas, característica organizacional do modelo toyotista de produção. A segunda, o projeto da Lei Geral das Pequenas e Microempresas, propõe reduzir para apenas 0,5% os depósitos para o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, eliminando, na prática, com a indenização em face da despedida arbitrária no país.
Estes são apenas pontos exemplificativos de um fenômeno que tem produzido uma pletora importante de propostas visando a desregulamentação e a precarização dos direitos laborais no Brasil, e que, sem embargo das questões políticas, sociais e econômicas internas, seguem, de certa forma, as influências da nova ordem global, que põe frente a frente mercados de consumo e mercado de trabalhadores, solapando garantias sociais conquistadas sob o manto do Estado do Bem-Estar Social.
Nessa divisão internacional do trabalho, temas como "emprego", "redução de custos", "competitividade", e "preço chinês" determinam, ou pelo menos interferem de forma incisiva, a (des)construção de modelos econômicos e de regulação social, que tendem a se curvar a um certo fundamentalismo da ordem econômica global.
É função de todos, em especial aos atores políticos e da comunidade jurídica, promover rapidamente, e em igual escala, a expansão e a propagação dos valores sociais do trabalho e da dignidade da pessoa humana do trabalhador, notadamente no âmbito das novas economias emergentes, de modo a estabilizar as relações sociais na ordem global, restaurando a legitimidade da ordem jurídico-trabalhista.
Caso contrário, continuaremos a assistir à crescente investida da "onda" flexibilizante, que nos apanhará, no futuro, como uma "tsunami", deixando cicatrizes profundas em nossa história.
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(*) O presente texto é uma versão adaptada da palestra proferida por ocasião do II Congresso Luso-Brasileiro de Direito do Trabalho, promovido pela Associação Luso-Brasileira de Juristas do Trabalho, entre os dias 2 e 3 de junho de 2006, na cidade de Coimbra, Portugal.
(**) Juiz do Trabalho da 21ª Região (RN), Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Paraíba e Diretor de Assuntos Legislativos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho - ANAMATRA.