A "Constituição Cidadã" de 1988, embora tenha ampliado os direitos do trabalhador doméstico, não faz jus à aludida denominação no que tange aos empregados integrantes dessa categoria profissional. Direitos sociais de outros trabalhadores foram negados aos empregados domésticos, destacando-se os seguintes: horas extras e adicional noturno, limitação da jornada, estabilidade da gestante, FGTS obrigatório, salário-família, redução de riscos inerentes ao trabalho, observância das normas de proteção à saúde e à segurança, adicionais de insalubridade e de periculosidade, seguro-desemprego, seguro contra acidentes de trabalho e auxílio-acidente de trabalho.
É preciso mudar a dura realidade dos trabalhadores domésticos, os quais não podem desfrutar das garantias dos demais empregados, como também é necessário romper com os grilhões da "senzala moderna" nas relações entre empregadores e empregados domésticos. 118 anos depois do fim da escravidão calamo-nos diante de discriminatório ato encarado como resultado de obra do destino e tão normal como era a exploração da mão-de-obra negra até o final do século XIX.
Somente o interesse egoísta de outros milhões, melhor aqüinhoados, detentores, portanto, de fatia mais expressiva de poder, político e econômico, justifica silêncio tão eloqüente sobre o disparate antes anunciado, a ponto de, muitas vezes, sentirem-se os exploradores e os seus asseclas à vontade para ridicularizar seres humanos que lhes servem como velhos escravos, com infames piadas e grosserias outras.
A luta por democracia não pode sofrer limitações, muito menos ignorada pelo conjunto da sociedade que a reclama cotidianamente, algumas vezes desprezando que o primado também serve para as relações desenvolvidas no âmbito do seu muro.
A política de desindustrialização da economia brasileira, praticada com maior intensidade a partir dos anos 90, e o desemprego em larga escala, têm provocado uma nítida troca de empregos de melhor qualidade pelo trabalho na área de serviços, em empresas terceirizantes e nas atividades domésticas, onde a informalidade, a péssima remuneração e as degradantes condições de trabalho reinam de modo absoluto. Não tendo opção, o trabalhador deixa a fábrica para ser motoboy. A brava operária, por sua vez, vira empregada doméstica. O risco de ambos é absoluto. Um pode perder a vida no caótico trânsito e a outra estará se submetendo a uma relação de trabalho de forte potencial autocrático, tendo muito a perder, até mesmo o que somente a dor na alma é capaz de revelar.
Dados do IBGE comprovam que nos últimos anos o emprego doméstico cresceu no Brasil, havendo quase sete milhões de pessoas laborando neste ofício,cuja fração mais expressiva está na informalidade.Triste estatística, reveladora do quadro de miséria no país, do conforto de poucos ricos e de alguns setores da classe média.
Talvez não tardará o tempo em que as futuras gerações questionarão como fomos capazes de, em pleno século XXI, explorar a mão-de-obra humana, dos nossos semelhantes, iguais em liberdade, para o desempenho de tarefas exclusivamente nossas. A trabalhadora doméstica deixa a sua família para cuidar de outra, para criar os filhos que não seus, para suportar o mau humor das patroas e para, muitas vezes, perder a sua referência de mundo, não tendo sequer acesso ao conhecimento que verdadeiramente liberta o ser humano. Lamentavelmente, alguns traços da velha escravidão estão presentes na relação de trabalho doméstica: do senhor da casa servido o tempo todo pelo trabalhador que lhe deve obediência e respeito.
Alguns, cinicamente, rasgariam a infeliz frase: "o que tenho com isso, se posso pagar alguém para realizar as minhas tarefas domésticas?" No regime capitalista, é verdade, o dinheiro é a mola propulsora da mercantilização de quase tudo ou, como diz Caetano Veloso, é "a força da grana que ergue e destrói coisas belas" (letra de Sampa), não podendo, porém, comprar a dignidade do mais humilde trabalhador.O mínimo de senso humanitário fará qualquer um de nós sentir-se na pele do carrasco senhor da senzala moderna.
Também não pode ser desprezada a responsabilidade do Estado ao deixar de oferecer trabalho digno e decente ao seu povo. Se fosse possível estabelecer uma economia de pleno emprego ou de desemprego apenas friccional, o trabalho doméstico teria os dias contados em nosso país. Nos ditos países civilizados é insignificante a mão-de-obra remunerada utilizada em trabalho doméstico e mesmo quando ocorre, não tem os laços de aprisionamento presentes aqui.
A escravidão na Grécia democrática era justificada até mesmo pelo espírito libertário político de um Aristóteles, a partir da falsa premissa de que havia necessidade de maior tempo disponível aos cidadãos (os escravos não eram cidadãos) para que estes pudessem pensar o destino da pólis,aventurar-se no descobrimento da filosofia e para que cuidassem de tarefas menos desgastantes e mais voltadas para o desenvolvimento do intelecto. Nada justifica a escravidão. Ressalto, porém, este era um modo de vida de mais de dois mil e quatrocentos anos atrás.
Não estou afirmando que o serviço doméstico atual seja idêntico ao trabalho escravo, da Grécia, da Roma Antiga ou do Africano no Brasil durante mais de três séculos, apesar de considerar que o elemento da disponibilidade ao "senhor e à sua família" ainda esteja presente nas relações desempenhadas no âmbito doméstico, além do respeito e à obediência cega à patroa, tudo a nos envergonhar frente ao lema libertário de mais de dois séculos atrás da fantástica Revolução Francesa.
A modernidade, nessa seara, definitivamente, não chegou ao Brasil. A revolução da microeletrônica e outras maravilhas da era cibernética são vistas em terras tupiniquins do mesmo modo e na mesma ocasião em que são apresentadas nas nações do primeiro mundo. As relações de trabalho mais democráticas, todavia, a nossa "nobreza" prefere não importar ou imitar porque diz ser a medida exageradamente dispendiosa e por demais contemplativa.
Estou certo de que a trabalhadora doméstica precisa encontrar a força libertária da alma feminina humana para não admitir uma condição de labor por ela considerada humilhante, cujo reflexo desse admirável sentimento humano o legislador ordinário ainda não foi capaz de colocar no papel, mas que o Estado tem o dever de levá-lo em consideração, em nome do princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição Federal (artigo 1º, inciso III).
A empregada doméstica tem que estar pronta para defender a sua dignidade de trabalhadora, inspirada no movimento do 08 de março de 1857, celebrado como Dia Internacional da Mulher Trabalhadora, muito embora a máquina ideológica fomentada pela ânsia consumista busque deturpar o fato histórico como se fosse o dia de qualquer dócil mulher receber futilidades que não se ajustam às guerreiras, escamoteando, assim, a lembrança dos muitos corpos queimados e do número de 130 (cento e trinta) cadáveres das operárias têxteis depois da reação às humilhantes condições de trabalho ditadas pelos patrões de Nova Iorque, naquele 08 de março triste, mas histórico. O Dia 08 de Março, devo ressaltar, pertence apenas à Mulher Trabalhadora. Jamais deve ser a data lembrada para prestar homenagem contra quem a operária lutou, do ponto de vista ideológico e físico, até à morte.
No momento, há gritaria intensa entre os formadores de opinião contra o teor da MP 284/06, aprovada recentemente pelo Congresso Nacional, pela obrigatoriedade do recolhimento do FGTS por qualquer empregador doméstico. Apelam ao Presidente da República para que vete a medida, sob pena de "extinção da profissão de doméstica", numa hipocrisia jamais imaginável. Alegam que a profissão será eliminada, uma vez que a contratação estará restrita aos trabalhadores diaristas, tudo para não onerar o orçamento familiar. Falácia, simples engodo. Repartição e distribuição de renda são palavras proibidas por quem se julga no direito de explorar o trabalho alheio sem a intervenção do Estado.
Em resumo, dizem que vão intensificar a burla à legislação trabalhista com a contratação de diaristas, cuja chantagem o Presidente Lula deve ignorar, seja para dar o mínimo de dignidade a um dos segmentos mais sofridos da classe trabalhadora nacional, seja para demonstrar que ainda há alguma sintonia entre o seu partido político e a denominação por ele ostentada .
Quem busca auxílio no cumprimento das tarefas domésticas, deve saber que do outro lado da relação de trabalho há um ser humano, sujeito de direitos assim como os demais empregados.
As forças que se opõem ao recolhimento do FGTS e da multa de 40% não têm razão alguma na crítica à medida, vez que oriundas de camadas dos setores empresariais, dos empregados que percebem a referida verba, dos servidores públicos, dos autônomos e de tantos outros segmentos posicionados de modo menos injusto na pirâmide social do que os empregados domésticos.
Não haverá desemprego, sendo certo que qualquer tentativa de fraudar a relação de emprego com a atribuição de "autônomo" do trabalho prestado pelos domésticos deve ser repreendida pelos órgãos de fiscalização do Executivo e severamente punida pela Justiça do Trabalho no momento do julgamento das questões submetidas à sua apreciação, com determinações relativas à assinatura da CTPS, ao pagamento de todas as verbas, à ocorrência do crime capitulado no Código Penal e à comunicação do fato ao Ministério Público do Trabalho, além da condenação do empregador ao pagamento de indenização por dano moral.
É reprovável que ministros entusiastas do veto presidencial declarem que o FGTS dos domésticos estimulará o mercado informal de emprego, numa cínica incapacidade de enfrentar os infratores do ordenamento jurídico detentores de maior poder aquisitivo. O gesto fornece atestado de falência ao Estado, cujo raciocínio das autoridades deveria ser mais original frente ao sustentado pelas resistentes patroas domésticas.
A classe média, ao invés de indignação pelo surgimento de mais uma "despesa", deve saudar com alegria medidas geradoras de maior dignidade humana para quem realmente precisa, ao mesmo tempo em que precisa acordar para os escandalosos aumentos das tarifas de serviços públicos aplicados pelos grupos econômicos que abocanharam as nossas estatais e para tantas outras ações furtivas praticadas sistematicamente contra os consumidores, custos os quais superam facilmente o minguado depósito de 8%(oito por cento) ao mês sobre o salário da empregada doméstica a título de FGTS e a multa de 40% no ato da rescisão imotivada do contrato. O trabalho humano é o valor mais importante a ser respeitado.
O recolhimento do FGTS para os empregados domésticos corrigirá minimamente a discriminação histórica praticada contra a referida categoria profissional, segregacionismo este fruto ainda da intolerável herança da colonização e de mais de três séculos de escravidão no País, propiciando, ainda, a formação de um montante no Fundo capaz de financiar a habitação própria dos trabalhadores domésticos, sem juros e quaisquer outros acréscimos.
A medida é extremamente tímida e generosa com os patrões, mas pelo menos tem o mérito de demonstrar que há apartheid social no Brasil com relação aos milhões de trabalhadores domésticos, cabendo aos novos "zumbis" e "quilombolas" organizarem-se para o estabelecimento de algo muito simples que as nossas futuras gerações sentir-se-ão envergonhadas pela sua ausência: isonomia de direitos trabalhistas humanos entre empregados.
Senhor Presidente da República, sancione a lei objeto da MP 284/06, sem vetos, encaminhando logo em seguida Projeto de Lei para conferir todos os direitos dos demais empregados aos trabalhadores domésticos. A libertação justifica o ato e apenas explicita situação vivenciada em contrariedade à dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil.