Na mitologia grega, o fogo possuía um
significado muito especial: expressão de inteligência.
Entretanto, dessa sabedoria paradigmática, os deuses
gregos não queriam compartilhar com os mortais. Temiam
que, na descoberta, se valessem desse micro poder para
precarizar a hegemonia divina.
Conta-nos Hesíodo (o poeta grego - séc VIII, a. C)
que Prometeu, filho de Cronos (deus do tempo),
benfeitor dos homens, conhecendo desse segredo, toma-o
em suas mãos e leva a boa nova aos homens. Zeus -
deus dos homens e de todos os deuses -, descontente
com a revelação, do alto da sua ira, impõe castigos
aos mortais e a Prometeu; a este, prendendo-o numa
coluna, sob fortes grilhões inextricáveis, tendo seu
fígado bicado por uma grande águia, que no final da
tarde alçava vôo e se ia, para, no dia seguinte,
quando Prometeu já se encontrava com o fígado
recomposto, começar tudo de novo. E assim, de posse
do fogo, Zeus se compraz com a longa tortura imposta
ao infiel Prometeu, que somente se vê livre do mal
quando libertado por Herácles - filho de Zeus, que,
na sua onisciência, de toda compaixão tinha
conhecimento e perdoava, deixando livre o corpo de
Prometeu.
Aos homens, conforme decidido, outro castigo impôs. Com seus pares, um presente maquinou: Pandora, mulher fatal, inteligente, astuta, delicada, amorosa, prendada e, acima de tudo, curiosa! Pensada assim, por orientação de Zeus, Hermes (o deus mensageiro), após entregar uma jarra fechada a Pandora, e adverti-la de que nunca a abrisse, desce à terra e vai ofertar ao irmão de Prometeu - Epimeteu, aquele que vê depois - a mais bela de todas as mulheres.
Encantado com o regalo divino, de logo se apaixona e tem filhos, esquecendo, assim, da prévia advertência que Prometeu (o que vê antes; o previdente; o cauteloso) lhe fizera: nunca aceitar um presente de Zeus.
Pandora, tomada de curiosidade (eis a engrenagem da maquinação divina), não resiste e tira da jarra a tampa, liberando aos homens todas as maldades terrestres, impondo-lhes, assim, a idade do ferr o eterno sofrimento. Quando se dá conta do que fez, tardiamente, devolve a tampa à jarra, prendendo em seu vazio escuro aquela que ainda estava por sair: a esperança. Como conciliar, então, o sofrimento das paixões com a esperança?
Do salto poético mitológico para o nosso plano "humano, demasiado humano", dizem que um dos males que Pandora deixou fluir da famigerada jarra (ou caixa, como preferem alguns) em detrimento dos deuses mortais (opa! "dos deuses", não! Leia-se: "dos juízes" - desconsiderando os "mortais". Não estranhe, caro leitor, o ato falho. Há pense que a retificação seria mesmo desnecessária. Portanto, para não ferir velhas suscetibilidades, vai assim mesm "dos deuses mortais") foi a normatização da Súmula Vinculante!.
Após o espanto, o questionamento que não se cala: Súmula Vinculante, o que é? Trata-se de pergunta mista que reclama do encantado a busca significativa de dois conceitos, a saber: de SÚMULA e de VINCULANTE.
Dizem da primeira, uma pequena suma; breve epítome ou resumo; sinopse; condensação (Dicionário Houaiss). O fazer súmula é, portanto, sumular. Na acepção técnico-jurídica, segundo o Novo Dicionário Jurídico Brasileiro de José Náuel, constitui o resumo da jurisprudência predominante e firme da nossa mais alta corte de justiça, embora nem sempre tenha sido unânime a decisão nos precedentes na mesma relacionados. Esclarece o dicionarista que a citação da Súmula deve ser feita pelo número do enunciado e dispensa, perante o Tribunal, a indicação complementar de julgados no mesmo sentido. Acentua ainda que sua finalidade não é somente proporcionar maior estabilidade à jurisprudência, mas também facilitar o trabalho dos advogados e do Tribunal, simplificando o julgamento das questões mais freqüentes.
Vinculante - de vincular: prender (se), ligar (se), apertar(se), atar(se) por laços ou nós; estabelecer um relacionamento lógico ou de dependência entre duas ou mais coisas.
Posto didaticamente esses conceitos, pode-se arriscar em dizer que SÚMULA-VINCULANTE (o hífen, aí, não é à toa!) é o resumo de jurisprudência dos tribunais acerca de determinadas questões reiteradamente decididas, com o caráter de obrigar os operadores (serve a palavra recorrente) do Direito à sua estrita observância e cumprimento.
Nessa medida, parece não haver problema com o primeiro conceito nem com o segundo. São perfeitamente inteligíveis. Não obstante, insistem em afirmar que, bem visto, trata-se de duplo conceito com manifesta carga de maldade, especialmente quando a ênfase recai sobre o "vinculante". Será mesmo? Vejamos!
Consta da Carta Política que o Supremo Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, depois de reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e ä administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder ä sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei (art. 103-A CF/88).
A súmula, segundo o Texto Constitucional, terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. ($ 1º., do art. 103-A, da CF/88).
Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso ($ 3º., do art. 103-A, da CF/88).
Assim é que, doravante, uma vez aprovada e publicada dada súmula pelo Supremo Tribunal Federal, a ela ficam vinculados todos os atos administrativos ou decisões judiciais, sob pena de reclamação àquela Corte com conseqüente declaração de nulidade, ou cassação, respectivamente - a par de observar determinação de que seja proferida outra decisão.
Do epicentro do Supremo Tribunal Federal, cogita-se que, em pouco tempo, as ondas circundantes dessa súmula estarão alcançando todos os tribunais, e, em sua plenitude, os juízos monocráticos.
Em face desse fenômeno jurídico, duas correntes de pensamento se formaram: de um lado, os apologetas da bondade, vendo-a como um verdadeiro presente, porque, com ela, em muito diminuiria o labor do julgador, em sua árdua tarefa de declarar o direito aos múltiplos e diversificados conflitos de interesses individuais, coletivos e difusos - oriundos do largo tecido social.
Do outro, aqueles que arriscam em afirmar tratar-se de um verdadeiro presente de grego (não o de Tróia - antes, da mulher fatal), cujo diferencial residiria apenas no fato dela proceder de uma genealogia divina, sem perder de vista, contudo, o ranço da maldade nela ocult o entorpecimento mental dos que são chamados a decidir; o não julgar; o se fazer substituir, de agora em diante, por um operador técnico, subsumindo a situação fática ao padrão jurisprudencial vigente; o ente que não mais pensa, apenas reproduz, copia.
Ou, nas palavras do Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Aymoré Roque P. de Mello, "Ao contrário, .a súmula vinculante prejudica o fluxo de formação de jurisprudência por meio do juiz de primeiro grau, que é mais sensível e permeável, já que tem mais contato com as partes do processo".
Nessa linha, cabe indagar: finalmente, a qual sistema jurídico estaria filiado o ordenamento jurídico pátri ao romanístico, ou ao common law? Há quem defenda que nem a um nem a outro, mas a um "tertius genius": a adoção concorrente e harmônica desses dois sistemas - ora se impondo a lei, ora a jurisprudência pretoriana, sendo que esta de forma mais contundente, ao argumento de que vem a lume para corroborar, resgatar o sentido finalístico daquela.
De fato, há muito vem se agigantando, entre nós, a jurisprudência dos tribunais, em verdadeira subversão hierárquica das fontes formais do Direito. Não se aplica mais a lei diretamente ao conflito posto - busca-se, num piscar de olhos, a jurisprudência recorrente, seja secundum legem, ou contra legem. Tal constatação fenomênica jurisprudencial, porém, não tem sido motivo de espanto. Como uma unha, vem crescendo sem que os que lidam com o Direito tenham se dado conta do perigo iminente que lhes cerca.
Mas se a estes se torna invisível, o mesmo não se pode afirmar relativamente àqueles que vêem no Direito um instrumento de dominação, tornando opaco seu efetivo caráter teleológic disciplinador de conduta social para assegurar a cada um o que lhe pertence, mas com justiça social.
Nesse diapasão - na esteira da súmula vinculante -, não se pode falar, entre nós, em hegemonia do sistema romanístico, ou da coexistência harmônica deste com o do `common law`, mas de efetiva supremacia deste, porque, desviando-se de sua natureza inicial (conjunto de decisões reiteradas dos tribunais acerca de um dado tema - ou pelo menos se valendo de tal mote), veste a uniformização jurisprudencial com a roupagem de uma lei. E, o que é pior, de uma lei que chama à sua observância não só o jurisdicionado, mas, também - e sem qualquer eufemismo - aquele que julga..
Para compreender melhor o estranhamento por que passam os opositores da súmula vinculante, exige-se do leitor uma paciente investigação fenomenológica. Nesse mister, vale repousar a vista sobre o sempre oportuno ensaio intitulado "Morte da Memória, Memória da Morte: da Escrita em Platão", de GAGNEBIN, ao se reportar ao Fedro de Platão para lembrar a necessidade da justeza dos amores e da justiça dos discursos verdadeiros.
De efeito:
"Temos um êxito altamente literário neste diálogo encantador que descreve, juntamente, os encantos entremeados da palavra e do amor. Ora, ele não termina, porém, por nenhuma glorificação da atividade literária, como poderia ser nossa expectativa... a conclusão do Fedro contém uma das versões mais famosas daquilo que foi chamado de condenação platônica da escrita. Com Mário Vergetti, destaca que a primeira e maior ambigüidade do corpus filosófico de Platão consiste no fato dele existir. Entretanto, adverte o ensaísta que "ä crítica platônica não apontaria para a e existência de doutrinas que Platão teria se recusado a transmitir em sua obra "mas chamaria mais atenção para o fato de que existem limites internos da comunicabilidade": se não há, portanto, contradição, no sentido enfático do termo, entre a desconfiança de Platão em relação ao escrito e seus numerosos diálogos, no entanto, o paradoxo continua entre a habilidade, o domínio, sim, a beleza literária da escrita em Platão e sua denegação da importância do escrito, a afirmação do seu caráter ilusório e enganador, que deveria levar um autor tão prevenido, se não a se abster dessa perigosa atividade, pelo menos a restringi-la consideravelmente - de maneira muito semelhante ä prática da sexualidade tal como prega a moral sexual das leis. Minha proposta, aqui, não é de resolver esse paradoxo, mas de deixar, mais uma vez ressoar esse enigma, de escutar o que ele nos revela da escrita filosófica da realização dessa escrita, mais também de seus desejos e de seus fantasmas. Pouco a pouco, porém, cresce a importância do texto escrito graças a uma difusão cada vez mais ampla do livro. A esta "verdadeira revolução cultural", a esta " inflação da escrita",, Platão reage pela desconfiança, que não diz tanto respeito ä escrita enquanto técnica; pelo contrário, ele empresta a esta última numerosas comparações, amparando-se no "paradigma gramatical das combinações entre letras e palavras para descrever melhor a tarefa analítica do método dialético. As resistências de Platão são de outra ordem: remetem aos deslocamentos socioculturais que a difusão do texto escrito provoca em relação ä tradição e ä memória coletivas (...) nesse contexto, a desconfiança de Platão o pessimismo de um Adorno, suas criticas ao aviltamento e ao emburrecimento circundantes nos surpreendem por sua amarga lucidez (...) Há de determinar o valor real dos discursos escritos, isto é estabelecer uma vez por todas a diferença entre os produtos brilhantes e enganadores da sofística e a palavra viva e verdadeira da filosofia. Sócrates conta uma história, segundo a qual o deus Thot, o inventor dos números e dos jogos de dados, apresentou sua nova invenção, a escrita ao deus soberano e solar, Tamuz, modelo do rei, juiz arcaico cuja palavra tem força de lei. A escrita deveria resolver os problemas de registro e de acumulação do saber; Thot a define como uma droga para a memória e para a sabedoria". Tamuz o rei solar que não precisa escrever para garantir a durabilidade de sua palavra, contradiz essa definiçã a escrita só fará aumentar o esquecimento dos homens pois eles colocarão sua confiança "em signos exteriores e estrangeiros", ao invés de treinarem a única memória verdadeira, a memória interior ä alma. Vem então o Juízo famosos: "Não é para a memória, é para a rememoração que descobriste um remédio. É a exterioridade da escrita, oposta à visão interior da alma que faz dela um pharmaKom artificial, tanto mais perigoso quanto ele é ainda mais sedutor. Por isso Platão não condena toda escrita, mas ele só julga verdadeiramente digna da filosofia a escrita interior à alma, aquela que é "semeada", e "plantada"pela " arte dialética"" "nas almas dos discípulos". Não é, aliás, por acaso que Platão critica, justamente, na escrita, no sentido literal, seu caráter de imagem: ela está próxima demais da pintura, dessa `zoo-grafia"que pretende (d)escrever o vivo, mas que só é cópia torta sob a ilusão de vida, simulacro. A escrita não é, portanto, somente uma droga que promete a cura e traz a morte; ela completa, por assim dizer, sua natureza de artifício pela sua pertença ao domínio da mimesis (cópia) artística (e não filosófica), que, sob a aparência de vida, só engendra morte(...). O processo da escrita é, portanto, mais que a condenação de um saber livresco, artificial e exterior: não se trata simplesmente de defender o espírito contra a letra, a palavra viva contra a repetição morta. Deve-se lutar com todas as forças, contra o enredamento sedutor do escrito, da sofística e da retórica que ameaçam, graças ä sua estranha proliferação infinita, o ordenamento mesmo do vivo (...). A resistência, a desconfiança, mesmo a condenação de Platão em relação à escrita se nos tornaram mais claras: morte da memória talvez, a escrita é, também e com certeza, memória da morte"..
Nessa linha introspectiva, não seria nauseante beber ainda da água da Teogonia de Hesíodo para verificar que o grande erro de Zeus, no seio de sua maquinada vingança, foi não se aperceber que, ao subtrair de Prometeu o fogo, pudesse ainda quedar com ele alguma faísca de fogo. Se, na cólera da paixão, Zeus claudicou em seu auto-interesse (na prudência), aquele que via antes ("o prudente") dessa cautela não olvidou, assenhoreando-se da salvadora centelha intelectiva, porque, como bem feitor dos humanos, dos demasiadamente humanos - como prefere um certo pensador -, também acreditava na justiça dos mortais (a DIKE), sem, desmerecer, todavia, a recorrente justiça divina (Thémis).
Com essa esperança, que não se confunde com aquela "ad perpetuam" que Pandora legou aos homens, fez-se oportunizar aos julgadores deste plano a inteligência de uma outra súmula, em quatro palavras: "a impeditiva de recurso", conformando-a à espitualidade da linguagem platônica, e salvaguardando, axiologicamente, a interiorização da alma do Juiz, na arte de engendrar decisões a partir de uma realidade distinta que cada caso concreto reclama.
Inevitavelmente, a centelha de fogo tocou profundamente a inteligência do ilustre Desembargador Aymoré Roque P. de Mello, ao idealizar a súmula impeditiva de recurso. São suas estas palavras: "A súmula impeditiva de recurso permite que os processos sejam decididos com celeridade, dá efetividade às decisões judiciais e garante a independência dos julgamentos, além de desafogar o judiciário dos processos repetitivos".
Brilhante idéia veio de ser materializada nos dias que antecederam o final deste artigo, sendo aprovada pelo Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva.
Essa faísca de fogo, não só vivifica o homem que julga, como também recoloca o produto intelectivo - a decisão/sentença - no seu verdadeiro "locus" metafísico e dialético. Nesse devir, fere de morte aqueloutra, que impõe uma racionalidade adesiva; uma camisa de força à intelectualidade, com flagrante prejuízo ao logos espiral, processual e renovador do pensador.
A faísca, que agora é mais fogo inteligível do que nunca, remete o magistrado ao seu novel arquétip sujeito co-adjuvante da transformação social, porque social e processual é a ciência que chama e leva o nome de Direito do Trabalho; à sua condição de "homo sapiens"; à condição do já conhecido rio de Heráclito ("o homem não se banha duas vezes no mesmo rio" - porque, no segundo banho, outras já serão as águas, e outro já será o homem, em seu eterno devir em negação à linguagem escrita e definitiva de uma súmula vinculante).
Se, na súmula vinculante, ao magistrado só é dado prolatar sua decisão em conformidade com aquele ordenamento, e ao jurisdicionado sucumbente, a impossibilidade de ver seu apelo admitido, na impeditiva de recurso, consoante se tem proposto, permite-se ao julgador entender de modo diferente do sumulado, a par de facultar ao perdedor irresignado o direito ao reexame da matéria pelo juízo "ad quem". Ainda que este venha a seguir o entendimento da súmula específica, será mais salutar a ida àquele colegiado, porque com vida o benfazejo pensamento questionador e, portanto, renovador.
Efetivamente, não se pode pensar na súmula vinculante sem perder de vista a concretude da muralha dos princípios jurídicos da livre convicção e da razoabilidade, que se lhe impõem em favor da simples impeditiva de recurso, porquanto mais consentânea com a lógica do razoável, que, na lição de Mancini, secundado pelo não menos festejado Pinho Pedreira,
"...constitui um limite formal e elástico aplicável naquelas áreas do comportamento onde a norma..." (leia-se: súmula!) "...não pode prescrever limites muito rígidos, num sentido nem noutro, e onde ela tampouco pode prever a infinidade de circunstâncias".
Tem-se dito, não com menos razão, que a súmula vinculante (no jeito e forma que se nos apresenta, impõe limite que sequer o legislador consagrou à lei, enquanto principal fonte do Direito) teve o condão de colocar-se no plano normativo, estritamente normativo, com o privilégio (?) de não se sujeitar a qualquer interpretação, exegese - enfim, aos comezinhos processos hermenêuticos.
A forma inextrincável que se deseja a uma lei ou
a um verbete de jurisprudência fere de morte a
causa última ou o principio primeiro de um
ordenamento jurídico. E aí, cabe mais uma vez a
advertência do ilustre Celso Bandeira de Mello, chamada
a lume por Pinho Pedreira:
"Violar um principio é muito mais grave
que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao
principio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório mas a todo sistema de comandos.
É a mais grave forma de inconstitucionalidade,
conforme o escalão do principio atingido, porque
representa insurgência contra todo o sistema, subversão
de seus valores fundamentais, contumélia irremissível
a seu arcabouço lógico e corrosão de sua mola mestra.
Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o
sustêm e aluísse toda a estrutura nelas
esforçada".
Assim, se uma súmula se pretende hermeticamente
fechada, vinculante e, portanto, caricaturada de
lei, imperativo que, mudando o que deve ser mudado, a
hipótese deve subsumir-se à frenagem imposta pelo
principio da razoabilidade, e, por conseguinte,
"...o aplicador da lei, seja o administrador, seja o Juiz, não pode desligar-se olimpicamente do resultado de sua decisão e entender que cumpriu seu dever com a simples aplicação silogística da lei aos fatos: sua tarefa é criativa por natureza pois, com ela, ambos integram a ordem jurídica... À luz da razoabilidade, o Direito, em sua aplicação administrativa ou jurisdicional contenciosa, não se exaure num ato puramente técnico, neutro e mecânico; não se esgota no racional, nem prescinde de valorações e de estimativas: a aplicação da vontade da lei se faz por atos humanos, interessados e aptos a impor os valores por ele estabelecidos em abstrato" (Diogo Figueiredo, por Pinho Pedreira em Principiologia do Direito do Trabalho).
Lembra-nos ainda este festejado baiano a lição de Recaséns Siches, a quem atribui ser o formulador da teoria da lógica do razoável, a seguinte explicação:
"A lógica formal, nem mesmo de longe esgota a totalidade do logos, da Razão, mas é só uma província ou um setor desse logos ou Razão. Além da lógica do racional, a parte e além da lógica formal da inferência, há outras regiões que pertencem à lógica, mas que são de índole muito diversa daquela lógica do racional em sentido estrito. Entre essas outras zonas ou regiões do logos ou da razão, há o âmbito do logos dos problemas humanos de conduta prática, do logos do razoável. O racional puro da lógica da inferência é meramente explicativo, explicativo de conexão entre idéias, explicativo dos nexos entre causas e efeitos, etc. Em troca, o logos do razoável, concernentemente aos problemas humanos - e, portanto, aos problemas políticos e jurídicos - tenta "compreender ou entender"sentidos e nexos entre significações, como também realiza operações de valoração e estabelece finalidades e propósitos. A lógica formal é neutra no que se refere aos valores éticos, políticos, jurídicos, etc. Ao contrário, as normas jurídicas têm uma dimensão intensiva, imperativa, valorativa, normativa, que é totalmente desconhecida das leis de inferência...."
Diz ainda que, Perelman, proeminente adepto da lógica do razoável, projeta sobre elas estas luzes:
"Cada vez que um direito ou um poder qualquer, mesmo discriminatório, é concedido a uma autoridade, ou a uma pessoa de direito privado, esse direito ou esse poder será censurado se exercido de modo não razoável. Esse uso inadmissível do direito será qualificado tecnicamente de modos variados, como abuso de direito, como excesso ou desvio de poder, como iniqüidade ou ma`-fé, como aplicação ridícula ou imprópria de disposições legais; como contrários aos princípios gerais de direito comuns a todos os povos civilizados. Pouco importa as categorias jurídicas invocadas. O que é essencial é que, num Estado de Direito, desde que um poder legítimo ou um direito qualquer esteja submetido ao controle do poder judiciário poderá ser censurado se exercido de um modo. Não razoável, portanto, inaceitável".
Ora, até o brilhante ensaio de Perelman, a súmula vinculante extinguiria, porque ao julgador não seria mais dado a se afastar da razoabilidade, mesmo que quisesse. É que, na linha argumentativa esposada, a lógica do razoável teria assento apenas onde houvesse a possibilidade de flexibilização, de materialização axiológica; do aflorar do produto intelectivo, a partir de uma livre convicção fundamentada. Como essa súmula aprisiona o julgador, não lhe dando sequer o direito de pensar, senão o de pôr o dedo nas teclas "copiar" e "colar", talvez toda construção da lógica do razoável de Perelman esteja condenada ao mérito de uma brilhante construção teorética - morta, portanto -, e nada mais.
Na súmula que vincula, o surreal se faz legítimo! Na simples impeditiva de recurso, ao contrário, o legítimo é a manutenção ou o resgate do sintomático cogito cartesian "Penso, logo existo!"
É provável que obtemperem em não ver sentido nas razões daqueles que se colocam na contramão da súmula vinculante, ao argumento de paradoxal, porque, para sua formulação, e na esteira da uniformização jurisprudencial, concorrerão os próprios juízes com vistas à validade, à interpretação e à eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
O argumento parece bom. Afinal, na linha oblíqua, chancela ao Judiciário um poder normativo só existente, analogicamente, em sede de dissídio coletivo. Todavia, em que pese a autoridade dos seus escudeiros, vem a lume maculado pela lente de uma visão deformada pelo afã de fazer justiça social sob as vestes de uma célere redução de múltiplos processos de idêntica questão; maculado e fragilizado por não perceber que essa própria Justiça, que se deseja rápida e de pronto atendimento, terá seu raio óptico também reduzido, de vez que propõe a perpetuação de uma venda sobre os óculos da razão daqueles que não mais poderão dispor e expor seu livre convencimento racional.
Efetivamente, a súmula - seja vinculante, ou não - não pode ser concebida como um porto seguro, porque a segurança deve residir apenas na Justiça. O máximo que se lhe pode permitir é a figura de um farol, como uma força atrativa e sinalizadora para aqueles que navegam de canoa ou de transatlântico no imenso mar aberto da interpretação.
A lógica do razoável, do ponderável, do flexível aproxima o julgador da ética normativa, necessária e universal. Neste horizonte, não apenas da "norma moral do utilitarismo", da que visa a um bem maior à coletividade (v.g., a minimização do número de lides em torno de determinada "vexata quaestio", e, por conseguinte, de um Judiciário mais dinâmico e eficaz, na resposta jurisdicional), mas, sim, da "norma moral não conseqüêncial", ou seja, daquela que brota de um julgador motivado apenas pela ordem de sua própria razão, de um imperativo categórico que o anima.
O vínculo a um entendimento jurisprudencial somente será justificado se - e somente se - nascer de um dever-moral necessário e ordenado pelo imperativo exclusivo do logos de quem julga.
Com Immanuel Kant, pode-se mesmo afirmar que a súmula vinculante representaria um "imperativo hipotético". É dizer, por ele, o convencimento racional do Magistrado não seria livre, antes condicionado a um entendimento jurídico verticalizado, que não deriva da interioridade d`alma, do logos intuitivo, e sim de uma visão jurisprudencial dita majoritária, ainda que eivada de visíveis (ou factíveis) equívocos, face á falibilidade humana.
Atente-se que não se propõe o descumprimento de uma norma constitucional, porque nela reside o próprio imperativo categóric a obediência à lei, porque da essência de um estado democrático de direito. A irresignação ganha força, porém, quando se pretende aquele condão a súmula de jurisprudência, máxime a que emanar de outros tribunais superiores (o que inevitavelmente acontecerá), porque ponderável a reserva legal de matéria constitucional ao STF. Aqui a crítica ainda persiste porque,com a súmula vinculante, dúvida não existiria quanto ao fim do pensamento bilateral facultado pelo direito ao julgador de declarar, difusamente, a inconstitucionalidade, ou não, de uma lei.
Tem-se, pois, que o legislador constitucional, ao engendrar a súmula vinculante com toda rigidez que lhe é peculiar (a propósito, vide a sombra da nulidade do ato administrativo; da cassação da decisão judicial), encetou a todo julgador um dever contrário à moralidade kantiana: a determinação de um decidir contrário à essência do seu caráter, da sua intuição intelectual.
Se não se pode transpor o muro da razoabilidade, de igual forma não se pode trazer abaixo o da livre convicção racional daquele que é chamado a julgar, sob pena do véu continuar escondendo a verdade ("alethéia"), a razão demonstrativa, a razão crítica de quem julga. Aliás, criticar é julgar e esta ação somente será legítima se o sujeito estiver imbricado com a consciência de que efetivamente é livre na forma de declarar o Direito, devendo obediência, cumulativamente, ao imperativo legal.
No sistema da livre convicção do juiz, as razões fático-jurídicas serão apreciadas livremente, atendendo as circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes. Eis o principio da livre convicção. Sua limitação residirá apenas no dever de indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento, em consonância com outro principio de natureza constitucional - o da motivação ou fundamentação (inc. IX, do art. 93, da CF/88).
Fácil inferir, pois, que, da súmula vinculante, esses dois últimos princípios estão fadados à morte, porque convicção livre e circunstâncias fático-jurídicas não mais existirão - e com elas, o homem que pensa e julga, porque, aí, seu pensamento já não comungará com a ordem de sua racionalidade, mas com aquele pronto, acabado, verticalizado, impositivo, de cujo ímã não será possível afastar-se.
Em sentido oposto, a súmula impeditiva de recurso vem de conformar a moral do utilitarismo (a imperatividade jurisprudencial decorrente de uma uniformização com vistas à rarefação ou extinção de demandas oriundas de um dado conflito de interesses) `a não-conseqüêncial (a que respeita o infinito campo racional do magistrado).
Com a súmula impeditiva, o "vinculante" não desaparece, queda apenas em estado latente, somente se impondo ao julgador quando o seu dever moral de vincular decorrer da ordem emergente de sua própria razão, sendo-lhe reservado o direito de insurgência motivada.