A história da formação da
consciência dos direitos humanos mostra que houve
períodos em que se acreditou que a dignidade do
indivíduo derivava de sua natureza, apresentada como
invariável e permanente.
Todavia, no desenrolar da caminhada, dúvida não
resta de que o homem não possui natureza permanente,
pois é um ser em constante transformação, adaptando-se
conforme exigido pelo meio social, cultural, religioso
e econômico. Mas de que forma o poder de mutação do
homem influencia os direitos humanos?
A resposta a esta questão está diretamente
relacionada à natureza dinâmica do homem. Ao contrário
do que afirmava Kant, os direitos humanos não são
absolutos e imutáveis. Eles são, e sempre foram, fruto
e reflexo de uma época. Portanto, tão mutantes, tanto
quanto os homens.
Como pondera Norberto Bobbio (1992, p.19-20), os
direitos humanos acompanham as mudanças no tempo e no
espaço, razão pela qual são de impossível conceituação
precisa. Na verdade, sequer existe uma noção exata dos
contornos dos direitos fundamentais, eis que o que foi
elencado como direito fundamental ontem pode não sê-lo
hoje, como sempre ocorreu ao longo da história.
As condições históricas são decisivas na formulação
do rol de direitos fundamentais da época.O relativismo
é característica que acompanha o conceito de direitos
humanos, que não deve ser tido como absoluto. Exemplo
nítido dessa relatividade se dá quando se analisa o
inquestionável, à época, valor atribuído à propriedade,
afirmado na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789, na França. A propriedade,
atualmente, não conserva o mesmo status de
inviolabilidade que detinha no século XVIII, e isso se
dá em razão da variação ética das sociedades, que
tendem a valorizar mais intensamente um ou outro bem
jurídico dependendo de sua ebulição social. Nunca se
poderia imaginar que a tão consagrada propriedade
teria um dia condicionado o seu uso em proveito de uma
coletividade ao cumprimento de uma finalidade
social.
Nas palavras de Norberto Bobbio (1992, p.19-20), além
de mal definível e variável:
[...] a classe dos direitos do homem é também
heterogênea. Entre os direitos compreendidos na
própria Declaração, há pretensões muito diversas entre
si e, o que é pior, até mesmo incompatíveis. Portanto,
as razões que valem para sustentar umas não valem para
sustentar outras. Nesse caso, não se deveria falar de
fundamento, mas de fundamentos dos direitos do homem,
de diversos fundamentos conforme o direito cujas boas
razões se deseja defender.
O favorecimento de um direito a uma
certa categoria fatalmente se dará sob o preço do
desfavorecimento de outra, porque grande parte dos
direitos é concorrente e não admite a simultaneidade na
sua aplicação. Se para fazer valer um direito, num
caso específico, exige-se a anulação de outro,
resvalada encontra-se a tese do caráter absoluto dos
direitos.
Bobbio aponta a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, aprovada em 10 de dezembro de 1948, na
Assembléia Geral das Nações Unidas, como o marco
histórico inicial que resolve o problema da
fundamentação dos direitos do homem, ao mesmo tempo em
que marca o seu cunho incontestavelmente universal. A
ratificação dos princípios postos na Declaração
sinaliza a expansão universal da aceitação dos valores
concernentes aos direitos humanos, que passam a ser
reconhecidos por um número até então nunca visto de
Estados: 48 adeptos.
Simultaneamente, Bobbio alerta para a relativização
desses direitos declarados em 1948, fruto do
pensamento e da comoção do povo da época, espectador de
mais uma atrocidade humana ocasionada com a segunda
Guerra Mundial. A despeito da inquestionável
importância da Declaração Universal de 1948, não se
pode desconsiderar que o rol de direitos ali elencados
foi posto sob o olhar humano, eivado da carga social
da época. O juízo de valor não deixa de ser, pois,
subjetivo.
Como afirma Bobbio (1992, p.24), "o problema
filosófico dos direitos do homem não pode ser
dissociado do estudo dos problemas históricos, sociais,
econômicos, psicológicos, inerentes à sua realização:
o problema dos fins não pode ser dissociado do
problema dos meios."
Outros autores, porém, sinalizam ter sido a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, versão
francesa de 1789, a primeira manifestação da
universalidade dos direitos humanos.
Como assevera Paulo Bonavides (2000, p.562):
Constatou-se então com irrecusável veracidade que as declarações antecedentes de ingleses e americanos podiam talvez ganhar em concretude, mas perdiam em espaço de abrangência, porquanto se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano. Por isso mesmo, e pelas condições da época, foi a mais abstrata de todas as formulações solenes já feitas acerca da liberdade.
Veja-se, portanto: se é subjetiva
até mesmo a visão do momento inicial do caráter
universal dos direitos humanos, o que dirá dos
direitos declarados nas Cartas principais.
Diante de tais fatos, é equivocada a conclusão de
que, por deterem carga social relevantíssima, os
direitos humanos são absolutos. O fato de os direitos
serem reconhecidos como humanos, por preservarem a
dignidade da pessoa, não se confunde com sua
relativização no tempo e no espaço. Essa última sempre
ocorrerá porque, do contrário, estaria a sociedade
estagnada no tempo e, parada, não deixa apenas de
progredir, mas é como se andasse para trás, num
retrocesso histórico de conquistas. A evolução natural
das coisas pressupõe uma dinâmica de comportamento e,
até, de valores, implicando, portanto, a modificação do
sistema normativo para que acompanhe o ritmo
social.
Não se quer dizer com isso que todos os direitos
elencados como humanos serão sempre alterados com a
mudança de época. Pelo contrário, sua grande maioria
será preservada, porque a história prova que sem a sua
preservação é impossível a convivência harmônica, em
ordem e em paz da nação, sendo certo que não é preciso
que se cometa mais de uma vez o mesmo erro histórico
para se concluir que a democracia só se realiza com o
respeito das liberdades civis e políticas e dos
direitos sociais, econômicos e culturais.
O que se afirma é que haverá uma variação natural de
alguns direitos que antes eram tidos como
imprescindíveis, e hoje não o são com tanta
intensidade, como o que ocorreu com a garantia
individualista da manutenção da propriedade no século
XVIII e a necessidade da atribuição de uma função
social que atualmente lhe é conferida.
Sob este aspecto, Judith Martins Costa, analisando
algumas diretrizes lançadas por Miguel Reale e seu
culturalismo, faz um estudo sobre a relação entre tempo
e valor, ressaltando a diferenciação entre
temporalidade e historicidade:
Enquanto a temporalidade é o fluir do tempo, a
historicidade é aquilo que, no tempo, tem
significação. São, portanto, inconfundíveis o tempo
histórico e o fluir do tempo: este é a passagem
cronológica, aquele é o recorte na temporalidade do
que tem significação, pelo seu valor. A história não
constitui, assim, mera reprodução do ocorrido. É
reconstituição, é o resultado do olhar de um sujeito
também histórico, é escolha e é recorte, é opção e
valoração. (MARTINS-COSTA; BRANCO, 2002,
p.172)
E, para não restar dúvida da intrínseca correlação entre tempo e valor, expõe Miguel Reale que o fenômeno jurídico:
[...] porque se desenvolve no "tempo axiológico", está necessariamente relacionado aos valores prevalentemente significantes de cada tempo cultural e, por isso, em cada um deles, prevalentemente significativos. Nessa medida, conquanto as instituições jurídicas possam ser datadas no tempo cronológico, o Direito, como fenômeno cultural que é, adquire efetiva significação, para o presente e para o futuro, somente se o situarmos na ambiência formada por esses valores que se agrupam, em cada cultura, em "centros de valor" dispostos em torno daquele que é o valor fundamental, qual seja a pessoa humana, valor-fonte de todos os demais valores que permeiam a experiência jurídica. (REALE, In MARTINS-COSTA; BRANCO, 2002, p.173)
Assim, não há que se ter dúvida de
que os direitos humanos não são absolutos . Absoluta é
a necessidade de preservação e concretização dos
direitos de caráter fundamental, o que não quer dizer
que é absoluto ou imutável o rol de direitos
essenciais elencados ao longo da história da
humanidade. Estes, como já dito, podem variar no tempo
e no espaço conforme as necessidades materiais e
morais dos indivíduos se alterem.
E, como o homem não é um ser estático, mas sim
dinâmico, inquieto e questionador, sempre haverá
direitos fundamentais eleitos prioritários em
determinado momento, sempre haverá quem os descumpra,
mas, principalmente, sempre haverá quem os defenda e
lute por seu cumprimento, numa tentativa incessante de
se evitar que se repitam mais erros grotescos da
humanidade de aviltamento à dignidade humana, para, no
fim, concluir-se o que todos já sabem:
os direitos humanos são o pilar da existência,
sem a qual, nas palavras de José Afonso da Silva "a
pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes,
nem mesmo sobrevive". (SILVA, In MARTINS NETO, 2003.
p.88)
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(*) Mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade
Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais - PUC/MG e analista judiciária do
Tribunal Regional do Trabalho da 3ª região
(MG).