Um aluno enviou-me uma pergunta e
uma frustração. Iniciando a carreira de juiz do
trabalho, pergunta como diminuir a animosidade e
controlar reações (as suas, as das partes e as dos
advogados) nas audiências. Respondi que, após
dezessete anos de carreira, me sentia, muitas vezes,
angustiada com o resultado de uma audiência e com a
sensação de que poderia ter feito melhor. Prometi-lhe
dicas. Este é o objetivo deste artigo.
O processo do trabalho é caracterizado pela
oralidade. A sua destinação, hoje tendência do
processo geral, é de que as questões sejam postas na
audiência, sejam ali debatidas e que,
preferencialmente, haja uma composição de interesses e
de diferenças pelo acordo. Isto que, do ponto de vista
abstrato, é de uma clareza solar, constitui um
processo de grande complexidade porque deve ser
desenvolvido em todas as audiências do dia (entre dez e
dezoito) e em todos os dias da semana. Cada vez que o
microfone soa e a porta se abre é um mundo novo que
avança para a percepção dos sentidos. Não há uma única
regra que possa conter essa variedade e ela entorna
sobre a mesa uma outra face da realidade do direito: a
versão com que cada um dos que ali ingressam o entende
ou quer que ele seja entendido.
Uma mesma explicação pode gerar a completa
assimilação dos riscos reais do caso ou uma
agressividade virulenta que o juiz tem que conter e
muitas vezes não consegue. Nem sempre o ouvido do
intérprete se abre para os entraves de cada situação.
E o alerta não é decodificado. E o problema fica mais
grave porque ganha um novo complicador que decorre do
processo que existe para solucioná-lo.
A sala de audiências é a porta através da qual o
direito encontra a rua. É ela, que enfrenta a longa
fila, pega o elevador, aguarda na ante-sala e atende ao
chamado do microfone. É a rua descrita por João do
Rio: "Nas grandes cidades a rua passa a criar o seu
tipo, a plasmar o moral dos habitantes, a
inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes,
hábitos, modos, opiniões políticas" (RIO, João do. A
alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997, p. 66).
E a rua deve ser recebida como uma visita de
cerimônia, destas que se trata polidamente, mas com as
quais não se tem (nem se pode ter) intimidade. É
preciso paciência para ouvi-las, cuidado para
acolhê-las, bom humor para tentar amenizar o
desconforto de estar ali. Mas o tempo é curto, os
processos são muitos e nem sempre é possível tratar
cada situação peculiarmente como que ela merece. A
acomodação do conflito pela oralidade exige um debate
longo para que as diferenças possam se assentar. A isto
soma-se o fato de que nem sempre as partes estão
dispostas a desvendar todos os minúsculos elementos de
sua história comum. Há ódios recíprocos que vão
normalmente além da linha biunívoca do crédito e do
débito que se coloca como objeto dos pedidos. Para
resolver o problema estritamente jurídico, com
freqüência, é preciso ultrapassar, candidamente,
fatores exorbitantes como a mágoa de uma palavra
ríspida, que jamais será esquecida (para resumir,
basta se pense numa sala de audiências das varas de
família e se considere a simplicidade estrutural das
regras básicas de direito de família).
A experiência dos vários juízes e advogados mostra
que, nem sempre, é a natureza questão que torna uma
audiência difícil. É um acaso, um descuido, um
diminutivo que um advogado paulista toma por ofensivo
e não por um mero vezo da fala mineira e sobe nas
tamancas. Outras vezes é a testemunha cuja mentira se
detecta sem que se ache o caminho para lavrar esta
percepção formalmente na ata, de modo a que possa ser
apreciada no futuro.
Não há, portanto, um formulário de condutas a ser
transmitido com um receituário.
Nos últimos tempos, procuro adotar, com algum
sucesso, mas não com sucesso total, a postura da fala
franca e, sempre que possível, mansa. Tento exercitar
uma paciência pedagógica: aquela que é usada nas salas
de aula para ensinar a pensar e a ter dúvidas. Isto
naturalmente implica mostrar o que não sei ?
principalmente a incerteza quanto à melhor solução
onde o quadro de fato não é exato. Admitir a dúvida é,
naturalmente, enfatizar que o juiz não tem o dom da
onipresença e da onisciência e que a construção do
direito é um processo participativo e contínuo que
envolve a intervenção corriqueira de todos. Pode ser
que os anos de casa tragam uma facilidade de
interlocução que os mais novos não têm e aí reside um
outro fator a ser construído: é preciso a consciência
de que o direito se faz por várias mãos e que ele tem a
humanidade que nos caracteriza a todos. Se ninguém
nasce sabendo, é preciso que todos contribuam para o
amadurecimento dos que iniciam a caminhada
principalmente quando são partícipes do processo ? e
aqui me refiro a advogados e a juízes em especial.
A sala de audiências não é lugar para grito,
movimentos bruscos, atos de bravata ou para que as
partes e seus advogados se fustiguem com seu medo e sua
raiva. Ele deveria ser um lugar de um recolhimento
quase sagrado, um lugar para analisar cada pequeno
ângulo da questão, para enfrentar com a mais candente
ousadia as fraquezas do direito e as dificuldades para
a implantação de uma Justiça rápida. Um lugar cheio de
porquês falados de olhos francos e recebidos com calma
no diálogo absoluto que torna o ser humano mais
humano.
Nada disto é fácil e a tensão do juiz, dos advogados
e das partes volta a cada abertura da porta quando
microfone proclama o nome do próximo conflito e ele
entra, se assenta, fala ou fica mudo deglutindo seu
rancor.
A única dica para o aluno querido que se encontra
para lá de todas as montanhas é que ele tente perceber
o gosto e a beleza que há na humanidade inteira que se
reúne à volta da mesa e no mistério da rua que invade
cada juiz com seus gostos, costumes, hábitos, modos,
opiniões políticas. E que o faça silenciosamente, como
quem observa a paisagem da janela que descerra o mundo
da vida.
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(*) Juíza da 12ª Vara do Trabalho de Belo
Horizonte, Professora dos cursos de graduação e de
pós-graduação da Faculdade de Direito da UFMG, Doutora
em Filosofia do Direito pela FDUFMG