Artigo publicado no Jornal O Sul, no dia 24 de
junho Ary Faria Marimon Filho (*)
Todos os juízes do trabalho,
sem exceção, e como especialistas em Direito do
Trabalho que são, devem deitar seus olhos sobre os
acidentes do trabalho, na tentativa de impedir, pelo
estudo, conhecimento e decisões pedagógicas, seus
efeitos catastróficos, tratando o problema como uma
imoralidade, uma chaga a ser combatida diuturna e
ferrenhamente, pois maculam o atual estágio do
processo civilizatório.
O Teatro Dante Barone, da
Assembléia Legislativa do RS, entre os dias 14 e 16 de
junho, foi palco não para encenação de uma peça
teatral, mas, sim, para o debate sobre uma triste
realidade: a do acidente do trabalho.
Mais de mil pessoas, entre
presentes e internautas (www.amatra4.org.br),
assistiram a juízes, procuradores do trabalho, médicos,
engenheiros, psicólogos, peritos e fiscais do trabalho
discorrerem sobre as mazelas, os dissabores, as dores
físicas e psicológicas do trabalhador que sofre
acidente e o sentimento de impotência que daí advém com
a perda da capacidade laborativa. E também sobre a dor
de quem fica sem o pai, a mãe, o filho, que sai para
trabalhar e, ao final do dia, simplesmente não volta
pra casa. Em 2004, ocorreram, no Rio Grande do Sul,
49.996 acidentes (dados que consideram empregados com
registro do contrato em CTPS), 137 por dia útil, cinco
por hora; 152 empregados perderam a vida em 2004,
sendo que outros 992 não mais trabalharão. Com imensa
dificuldade conseguirão lidar com a perda de membros,
visão, audição e queimaduras. Com desgosto pela vida,
não conseguirão lidar com a paralisia, a tetra
paralisia ou a vida vegetativa. Lesões que cicatrizam;
traumas que não se curam de maneira completa.
Ouvimos histórias sobre jovens
que somente se deram conta da nova realidade ao
virarem um frasco de xampu sobre a mão que não mais
existia e viram o líquido escorrer pelo chão do box,
com o resto de sua auto-estima esvaindo-se pelo ralo.
Escutamos histórias a respeito da máquina que é única
no mundo, que retira pele e excesso de gordura da moela
da ave e, junto, a falangeta de jovens trabalhadoras.
E vimos o esforço imenso dos fiscais do trabalho na
tentativa de auxiliar pequenas e médias empresas a
adotarem mecanismos e soluções de segurança não
previstas e nem contempladas nas máquinas, tanto
obsoletas quanto modernas, para diminuir os riscos de
acidentes. Esses fiscais do trabalho, tão criticados
por determinados setores do empresariado nacional,
convivem com as cenas mais cruéis que acontecem no
mundo do trabalho, as quais são agravadas pelo fato de
que ali, ao contrário de uma noticia policial, não há
bandidos, mas apenas trabalhadores vitimados. Ainda
assim, presenciam, investigam, registram e documentam
episódios de horror, tais como o corpo de um operário
esmagado por uma pedra de 30 toneladas, o que restou
de um eletricista fulminado por descarga elétrica, ou
visões de trabalhadores que têm, na amputação de
braços, a prisão da mente ao que sobrou do próprio
corpo, agora incapaz de atender ao comando de pegar um
copo d`água ou um talher para levar o alimento à boca.
Prestamos muita atenção na explanação sobre a dor
psicológica e a conseqüente depressão, a idéia de
suicídio de quem sobreviveu a um acidente do trabalho,
dia após dia, hora após hora, apenas um suspiro
oxigenando-lhe a mente, o mesmo corpo em movimento
involuntário instintivo de continuar a viver. Tomamos
conhecimento do despertar de consciência do
empresariado, que se dá pela via econômica, embora a
conseqüência social seja a que mais importa, através do
manual de operação de prensas, confeccionado pela
Fiergs com apoio dos fiscais do trabalho. Medidas
simples que preservam vidas e que devem servir de
exemplos.
Não há mais espaço para o
descaso da sociedade e, fundamentalmente, não pode
haver motivo algum para que nós, juízes do trabalho,
não abramos ainda mais os olhos a essa dura realidade.
Todos devem tomar consciência de que o problema
existe, enfrentando-o com a mesma coragem de quem,
sobrevivendo a um aleijão, ainda tem forças para manter
os olhos fixos à insensatez da discriminação e à
insensibilidade dos indiferentes. Todos os juízes do
trabalho, sem exceção e como especialistas em Direito
do Trabalho que são, devem deitar seus olhos sobre os
acidentes do trabalho, na tentativa de impedir, pelo
estudo, conhecimento e decisões pedagógicas, seus
efeitos catastróficos, tratando o problema como uma
imoralidade, uma chaga a ser combatida diuturna e
ferrenhamente, pois maculam o atual estágio do processo
civilizatório. A formação da nova jurisprudência sobre
o acidente do trabalho não pode prescindir do
raciocínio prodigioso de um único juiz do trabalho.
Porque a sociedade não pode tolerar a morte ou a
incapacidade de um homem pelo simples fato de essa
pessoa não fazer parte do seu círculo de relações
familiares e de amizade. Porque a indiferença jamais
poderá fazer parte da consciência de quem se diz ser
humano.
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(*) Juiz Titular da 2ª Vara
do Trabalho de Bento Gonçalves e presidente da Amatra 4