"Após tiroteio, corpo fica por 5 horas em supermercado aberto" anunciava a manchete da Folha de São Paulo, dia 25 de agosto último. Na notícia, o nome do morto, que custa a aparecer, é
A triste coincidência merece reflexão, que faço em homenagem ao vigia morto. Em homenagem à memória de
A legislação trabalhista brasileira é, diuturnamente, xingada por operadores do mercado, por capitalistas, por empresários, por ideólogos liberais, por economistas e políticos que vêem no ordenamento protetivo pátrio atraso, complicação e motivo para a falta de investimentos e para o aumento da informalidade nas relações de trabalho.
Getúlio Vargas, o morto mais conhecido dos dois agora referidos, em que pesem todos os defeitos que se lhe possam apontar, traz em sua memória o inafastável crédito de ter posto este país nos trilhos de alguma legislação de proteção ao trabalho. Com a pena em mãos, legitimado pelas forças políticas de então, não perdeu a oportunidade de construir, com auxílio de cabeças valorosas, uma lei básica do trabalho que se presta à finalidade maior a que se dedica qualquer legislação trabalhista: proteger o trabalhador.
Ainda hoje, décadas depois, a Justiça do Trabalho segue impondo o cumprimento da legislação aos empregadores recalcitrantes, como meio de garantir cumprimento ao comando constitucional de proteção à dignidade da pessoa humana.
Porque o trabalhador, cidadão que só dispõe, como meio da produção, de seu próprio corpo, não pode ser tomado, em ambiente civilizado, como mercadoria. A legislação tuitiva cumpre o papel de dignificação do homem, obrigado a vender sua força pessoal, em troca da subsistência.
A partir da legislação trabalhista criticada - mas para a qual não há nenhum modelo alternativo consistente - foi possível erigir um novo perfil nas relações entre capital e trabalho, ao longo dos 60 anos de vigência da Consolidação das Leis do Trabalho.
Ao lado de controle de jornada, do pagamento mínimo, do décimo terceiro, do fundo de garantia por tempo de serviço, do descanso semanal remunerado, das férias, o cumprimento e a evolução das leis do trabalho permitiram a consciência de que o homem trabalhador é homem e trabalhador. Não é apenas trabalhador. Daí o surgimento, nas lides trabalhistas, de pedidos de compensação de danos morais, sofridos no ambiente de trabalho. Escândalo inicial: como é que, já tendo recebido o que a lei lhe garante, vem esse trabalhador reclamar compensação por angústia pessoal? A resposta firme da jurisprudência vem fazendo a sociedade brasileira entender que o cidadão trabalhador não se despe de sua cidadania, ao vestir o uniforme de trabalho, seja o macacão sujo de graxa, seja a gravata ou o avental de cirurgia.
Um só é cidadão e trabalhador.
Este avanço, lento, gradual, mas irreversível, encontrou uma pedra no meio do caminho, no último dia 24. Alguém, empregado terceirizado, por certo, ousou morrer em dia de expediente comercial, ameaçando atrapalhar as vendas do supermercado. Enquanto seu corpo esfriava,
Vivo ainda, não fazia, José, qualquer diferença para o supermercado, mesmo. A contratação de empresa de prestação de serviços tem por pressuposto o desinteresse do contratante pela pessoalidade do trabalhador. Para o supermercado, poderia ser José, Antônio, César. Um vigia era necessário, para evitar a perda do patrimônio, em caso de tentativa de roubo, entregando, se preciso, a vida. Mas a vida de um sem nome, porque o funcionamento do supermercado não se afligiria com a troca de José por Ronaldo, ou por Getúlio. Não há motivo para que, morto, passasse a importar para o tomador de seus serviços.
A idéia cruenta de autorizar o funcionamento do supermercado, não obstante a presença de um corpo morto nas dependências da loja é, por si, suficientemente expressiva. Numa sociedade que convive diariamente com tantos e tão diferentes atos de violência, esta, cometida contra a memória de um vigia morto, por certo que não ocupará mais do que a manchete de um dia de jornal, e, ainda assim, não nas primeiras páginas.
Perpetuo o desagravo pelo desrespeito à vida do homem trabalhador, à sua memória, à dignidade de seus familiares, por estas linhas, homenageando
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(*) Juiz do Trabalho Titular da 89ª Vara de São Paulo, mestre em direito do trabalho pela USP, professor de processo do trabalho na Faculdade de Direito da FAAP.