Certa época, moramos numa casa cujas paredes da varanda eram feitas de vidro. Os pássaros gostavam de voejar por dentro dela. De manhã, eles entravam pela porta da cozinha e iam bicar farelos de pão. Outras vezes, vinham pela janela ou pelas frestas do telhado. Davam vôos rasantes na nossa cabeça. No começo, eu me assustava e dava um grito. O passarinho saía correndo, ou melhor, voando. Não sei quem ficava mais assustado, se ele ou eu. Depois, a gente se acostumou. Aí eles traziam a família.
E assim a passarinhada foi se chegando. Até sabiá apareceu. Tinha dias, no entanto, em que eles queriam encurtar caminho e vinham voando lá do alto e se chocavam contra os vidros da varanda. Eu pensava, coitados, mas por que cargas d`água eles não entram pela porta? Ora, porque eles não percebiam que aquele vidro ali estava. É que as paredes de vidro são invisíveis para pássaros. Então, no auge do vôo, eles batiam com muita força contra o vidro e caíam desmaiados.
Eu, que não atinava como acudir passarinho, chamava "Manhê!" Ela vinha, no passo dos seus setenta anos, e conversava com o bichinho caído lá fora, de pernas pro ar: "Eita, você não morreu desta vez, vamos, acorde!" E com o pássaro numa das mãos, corria a abrir a torneira. Despejava umas gotas de água na cabeça dele, o passarinho acordava. Ela o colocava no chão e esperava um pouco. Ele estava zonzo. A mãe punha, de leve, mais algumas gotas de água. Em um minuto ele ficava em pé e depois saía voando. Era um ritual milagroso. Minha mãe é uma ressuscitadora de pássaros.
Mas parecia que os pássaros não aprendiam mesmo a se defender. No dia seguinte, uma pomba. Plá! Depois, um sabiá. Pardal então, era todo dia. Os pardais desmaiavam mais fácil. Foi daí que eu aprendi o porquê daquele X enorme na porta dos bancos, antes de uma inauguração. Era para avisar que ali existia uma parede de vidro. A gente ficava ambígua, sem saber se punha um X enorme com fita crepe no vidro por causa dos pássaros, ou se não punha nada, por causa das visitas. Pelo menos, eu me consolava, a mãe ensinou um jeito de reanimá-los.
Agora, nos escritórios e nas fábricas, coisa parecida acontece. Algumas pessoas no trabalho são como pássaros, cuja natureza é voar. Elas voam na imaginação, têm idéias, dão soluções novas, tomam decisões, gostam do que fazem. É da natureza delas o trabalho bem feito.
O chato é que, nos escritórios e nas fábricas, também existem barreiras invisíveis. Foram criadas por gente que, por medo de ver o outro trabalhando, logo pensa que vai perder o seu lugar. Essa gente passa a assediar aqueles que trabalham direito, para que (como eles) não façam grandes progressos.
Receita de um legítimo assediador: uma boa dose de insegurança, duas doses de inveja, um tanto de despreparo espremido, outro tanto de falta de escrúpulos e... Voilá! Eis o assediador perseguindo o seu alvo. Ele começa a erguer barreiras de vidro para sua vítima. Então, se esta faz um belo relatório, este nunca chega ao destino. Se ela organiza as pastas num armário, mistério, essas pastas aparecem reviradas. Se ela está prestes a tirar férias, forças ocultas `se esquecem´ de programar suas férias para que o jogo perverso não páre e a vítima permaneça ali, na mira. Se ela monta um projeto, o resultado é sutilmente distorcido. A vítima chega, no dia seguinte, e ainda leva uma advertência. E nas universidades então. Professores brilhantes são perseguidos. Nos hospitais públicos, os melhores médicos e enfermeiros. É assim que o nosso país perde os melhores cérebros. É assim que a saúde vira doença - e ninguém ganha com isso. Ninguém jamais ganhará.
Pequenas armadilhas, conchavos, reuniões disciplinares, comentários maldosos. A vítima, sem saber onde estão os obstáculos, continua voando. E tomba muitas vezes. Só que, nos escritórios, é difícil aparecer alguém para ressuscitar esses pássaros no vidro. Por mais determinada que seja, a vítima vai perdendo as forças. Perde a auto-estima. Fica com o raciocínio desmaiado e pode cometer falhas. Daí, o assediador se aproveita e apressa a demissão, alegando: "Ele não tem o perfil para o trabalho." Quá!!! Para a vítima, nesse ambiente perverso, tal vaga e imprecisa desqualificação imputada é um elogio.
E depois da demissão? Outro dia, numa dessas rodinhas sociais, uma advogada, moça muito chique, dizia, balançando os cabelos: "Ai, gente, eu odeio defender dano moral!" Que tristeza. Ainda bem que existem outros. Do que uma vítima de assédio moral (daí o dano) mais precisa é de um ressuscitador de passarinhos. E isso, vale lembrar, é uma arte.
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(*) Ana Parreira é psicóloga