Há dias atrás a imprensa dedicou parte do seu tempo para criticar a decisão de um juiz do trabalho, que adiou uma audiência porque o trabalhador reclamante calçava chinelos, sob o fundamento de que o desleixo da parte em relação à indumentária atentava contra a dignidade da justiça.
Ainda que passível de crítica a postura do magistrado no caso relatado, melhor seria extrair do episódio algumas lições e reflexões sobre o judiciário que temos hoje.
Vivemos um período de grande desapontamento da sociedade com as nossas instituições. Os múltiplos episódios de corrupção e descaso com a coisa pública têm provocado em todos os setores sociais uma enorme indignação. E isso se torna ainda mais grave quando esse sentimento se estende ao judiciário, que é, e precisa ser, o grande esteio e guardião da cidadania.
Mas certamente a insatisfação da sociedade com o judiciário não reside apenas nos casos de corrupção, felizmente ainda isolados. O descrédito que se percebe na instituição decorre principalmente da sua incapacidade de oferecer respostas às necessidades e anseios dos cidadãos.
E aí poderíamos debulhar um rosário de problemas que sequer ousaríamos discutir nesse singelo artigo, cujo objetivo é apenas o de tentar trazer reflexões sobre alguns aspectos concretos, com os quais nós, juízes, temos uma estreita cumplicidade.
Já se formou um consenso diante de uma realidade incomodante: o judiciário não funciona. Nenhum cidadão se sente estimulado a buscar a justiça, porque nela já ingressa com a certeza de que será sucumbente, ainda que ao final vencedor na demanda.
A morosidade dos processos judiciais é uma praga que nos condena, frustrando os cidadãos que apelam ao judiciário na esperança de obter uma reparação justa e adequada pelos direitos lesados. E justiça que tarda, falha.
É preciso urgentemente repensar essa estrutura pesada e excessivamente hierarquizada do Poder Judiciário. O processo tem um caminho longo e perverso. Atravessa três ou quatro instâncias decisórias, quase sempre para concluir o óbvio: o devedor tem que pagar ao credor.
E aí temos as nossas contradições internas, frutos, como já dito, dessa cultura medieval que carregamos. A importância do juiz, no olhar míope do judiciário, cresce na mesma medida em que se eleva a instância.
E essa falsa concepção de importância que se cultua revela-se não apenas nas reverências exigidas, mas principalmente, o que é mais grave, na própria aplicação de recursos, que se reflete, ao fim e ao cabo, na estrutura de trabalho oferecida.
Ora, o primeiro grau é a grande porta de entrada do judiciário, onde juiz e cidadão se encontram. É lá que as decisões podem ser realmente construídas com razão e sensibilidade, ingredientes essenciais para as melhores soluções.
Mas o que temos? Primeiras instâncias desprestigiadas e tribunais cada vez mais imponentes e equipados. Uma verdadeira inversão de valores, um flagrante contra-senso. Aonde se decide de modo definitivo mais de 70% dos processos judiciais, menos recursos financeiros são alocados e, conseqüentemente, é onde se têm as piores condições de trabalho.
Tudo isso contribui para a morosidade do judiciário. Evidentemente que não é só isso. Poder-se-ia ainda falar de tantos outros entraves da celeridade, como o formalismo processual, o excesso de recursos, o número insuficiente de juízes, etc. Mas o que nos faz lamentar é que algumas das questões ora pontuadas dependem apenas de uma vontade política interna, de uma mudança de mentalidade dentro do próprio judiciário em relação às suas prioridades.
Precisamos reduzir a estrutura do Poder Judiciário, que é grande, pesada e ineficiente. E isso poderia ser iniciado com
Escreveu Milton Nascimento, na sua canção Bailes da Vida, que "todo artista tem de ir onde o povo está". E assim tem que ser também a justiça.
Mas é engano pensar que o anseio da sociedade é apenas por um judiciário que decida rápido. Espera-se dele que decida bem.
Não é possível imaginar que se possa bem aplicar o direito sem
Não basta saber a lei, é preciso conhecer o mundo.
Nesse contexto, merece louvor iniciativas oriundas do movimento associativo da magistratura como a do projeto Cidadania e Justiça, que retira o juiz do gabinete e o coloca frente a frente com o cidadão, sobretudo com aquele que mais precisa da justiça, porque mais explorado, mais fragilizado, enfim, mais carente de dignidade.
Dentro de uma sociedade desigual, injusta, que concentra tanta riqueza nas mãos de tão poucos, torna-se cada vez mais necessário que o juiz assuma o seu papel de agente de transformação dessa realidade. E para isso não precisa se tornar um justiceiro, porque dispomos dos instrumentos jurídicos necessários que nos permitem atuar em favor da construção da cidadania, da preservação dos valores sociais do trabalho e da dignidade da pessoa humana, que são os pilares democráticos nos quais se fundam a nossa República.
Certamente que não tem esse artigo a pretensão de fazer um diagnóstico dos problemas do Poder Judiciário, já que são inúmeras as facetas que os envolvem. Entretanto, existe uma realidade concreta com a qual nos deparamos todos os dias, e que certamente nos incomoda: o modelo de judiciário que temos hoje não funciona.
Precisamos urgentemente deixar de lado as preocupações meramente corporativas e iniciarmos um debate público sobre um novo judiciário: menor, menos oligárquico, eficiente, democrático e mais perto do cidadão.
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(*) Juiz titular da 3ª Vara do Trabalho de Brasília - DF