Arnaldo Boson Paes*
As transformações nas relações de trabalho e a intensificação da judicialização dos conflitos implicam complexos desafios para os sistemas de justiça em todo o mundo. No Brasil, a urgência e a relevância da discussão não decorrem apenas das variadas transformações nas relações de trabalho e das recentes mudanças legislativas e reorientações governamentais. No centro do debate estão recentes decisões adotadas pelo Supremo Tribunal Federal, que causam alto impacto na atuação da Justiça do Trabalho brasileira.
Nas últimas décadas, o mosaico do mundo do trabalho passa por amplas e profundas transformações. Essas transformações foram intensificadas mais recentemente, potencializadas pelo avanço das tecnologias da informação e comunicação. Isso vem gerando o crescimento exponencial, em escala global, do trabalho informal, intermitente, precarizado e "flexível" [1].
Emerge desse novo cenário um mercado de trabalho desestruturado e agravado pelo crescimento vertiginoso do trabalho por meio de aplicativos digitais, concentrados em torno de grandes corporações globais de tecnologia, as chamadas big techs. Com a uberização do trabalho, presenciamos o advento e a expansão de trabalhos assalariados baseados na prestação de serviços, gerando a denominada "escravização digital".
No Brasil, essas transformações têm sido agravadas por mudanças legislativas, políticas de governo e decisões do Supremo Tribunal Federal. Nesse contexto extremo, marcado pela precarização estrutural do trabalho e aniquilamento do movimento social que poderia catalisar a luta política, é cada vez mais urgente a construção de um espaço de esperança capaz de promover a recuperação dos direitos sociais e as conquistas históricas do mundo do trabalho.
Os sistemas de justiça, nesse ponto, podem desempenhar um papel fundamental. Em diversos países, impulsionados por decisões das Cortes de Justiça, parlamentos nacionais já começam a aprovar legislações contemplando direitos para os trabalhadores que operam por meio de plataformas digitais. Exemplo disso ocorreu recentemente na Espanha, por meio do Real Decreto-ley 9/2021, de 11 de maio, a chamada "Lei Riders", que passou a garantir os direitos laborais às pessoas dedicadas à entrega de produto de consumo ou mercadoria por meio das plataformas digitais.
Fato é que, com o crescente deslocamento dos conflitos do trabalho para os tribunais, isso faz emergir novos espaços para as lutas econômicas e sociais. Nesse cenário, a regulação jurídica das relações de trabalho torna-se cada vez mais dependente das interpretações que vão sendo conferidas pelas Cortes de Justiça. Como desdobramento, eclode a crise da administração de justiça. No centro da crise, além da explosão de litigiosidade, está a disputa pelos sentidos da interpretação jurídica.
Como a atividade de interpretação é um processo de atribuição de sentido que envolve valoração e escolha pelo julgador, o direito real e concreto termina sendo aquele que brota das decisões dos tribunais. Nesse sentido, é essencial avaliar a organização, a estrutura, a capilaridade e a atuação dos sistemas de justiça, a fim de examinar em que medida estão preparados para a compreensão das enormes complexidades decorrentes das transformações e para oferecer as respostas adequadas às novas demandas por justiça social.
No Brasil, desde 2016, a partir da ascensão dos governos ultraneoliberais de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-atual), estão sendo efetivadas contínuas e devastadoras reformas trabalhistas, a exemplo das promovidas pela Lei 13.429/2017 (Lei da Terceirização), Lei 13.467/2017 (Lei da Reforma Trabalhista) e Lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica).
Por conterem graves violações à Constituição e a tratados internacionais, muitos dos seus dispositivos estão sendo questionados nos tribunais brasileiros, inclusive no Supremo Tribunal Federal. Mas a Suprema Corte, além de estar esvaziando as competências e atribuições da Justiça do Trabalho, não somente passou a validar muitas das inovações legislativas, como passou a comandar um movimento de erosão do Direito do Trabalho.
Isso tem ocorrido não apenas com a criação de obstáculos para que os órgãos da Justiça do Trabalho possam exercer o adequado controle sobre a validade das normas trabalhistas, mas também com a adoção de teses jurídicas, em variados campos, com efeitos vinculantes, sob a forma de precedentes judiciais obrigatórios, baseados nos pressupostos da total liberdade de mercado e da desregulação das relações de trabalho.
Essa postura do STF tem chamado a atenção da comunidade jurídica por duas razões principais: primeiro, pelo exacerbado protagonismo que vem assumindo na judicialização dos conflitos trabalhistas; segundo, pela mudança radical na sua jurisprudência, levando ao esvaziamento sistemático da Constituição e do Direito do Trabalho.
Estudo recente, intitulado "Justiça política do capital — A desconstrução do Direito do Trabalho por meio de decisões judiciais" [2], tese de doutorado defendida pelo magistrado Grijalbo Fernandes Coutinho, ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), demonstra de forma abrangente e circunstanciada o movimento em curso na Suprema Corte.
O Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, com a Constituição de 1988 passou a adotar uma jurisprudência trabalhista moderada. Em muitos aspectos, conformou uma orientação interpretativa mais progressista do que a do próprio Tribunal Superior do Trabalho [3].
Ao construir e reconstruir os sentidos das normas constitucionais e legais, o STF acabou contribuindo para consolidar importantes conquistas sociais trabalhistas. Mas o fato é que, a partir de 2007-2008, com maior profundidade a partir de 2013-2014 e de forma mais radical ainda entre 2016-2020, a Corte passou a soterrar a sua própria jurisprudência.
A partir de percepções e visões de mundo comprometidas com o ideário de mercado neoliberal, o STF vem consolidando um movimento destrutivo dos direitos trabalhistas. Na análise de seus precedentes, evidencia-se a formação de um movimento jurisprudencial de rebaixamento do Direito do Trabalho e das instituições encarregadas de sua aplicação, incluídos aí a Justiça do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e a Inspeção do Trabalho.
O movimento assenta-se em premissas econômicas de desregulação, precarização e rebaixamento das condições de trabalho. Não se trata aqui de uma análise, mas de uma constatação, que advém da simples enumeração das decisões que vêm sendo proferidas pelo STF. Alguns exemplos são bem ilustrativos tanto da fragilização do Direito do Trabalho como do esvaziamento do sistema de justiça encarregado de sua aplicação:
a) Autoriza a terceirização generalizada, em todos os tipos de atividades e nos mais diversos setores econômicos, comprometendo o conjunto do Direito do Trabalho [4];
b) Impõe a prevalência do negociado sobre o legislado, inclusive por meio da negociação individual, afastando a incidência de direitos previstos na Constituição e na lei [5];
c) Desarticula o movimento sindical, com eliminação de suas fontes de custeio, vedando que a própria negociação coletiva institua fontes de financiamento da atividade sindical [6];
d) Afasta a competência da Justiça do Trabalho para solucionar diversos conflitos decorrentes das relações de trabalho ou mesmo da relação de emprego [7];
e) Autoriza o Poder Legislativo a cortar o orçamento anual da Justiça do Trabalho, retirando-lhe fatias dos recursos necessários para cobrir suas despesas [8].
À enorme lista de precedentes de fragilização do Direito do Trabalho e de esvaziamento da Justiça do Trabalho, devem ser acrescidas as diversas questões que ficaram intencionalmente represadas, que terminam legitimando mudanças legislativas, políticas de governo e práticas empresariais de rebaixamento da proteção trabalhista.
Diversas ações de controle de constitucionalidade estão pendentes de julgamento tendo por objeto dispositivos da Lei 13.467/2017. Em uma dessas ações, questiona-se se o beneficiário da justiça gratuita está dispensado ou não de pagar as despesas do processo, inclusive se o crédito trabalhista obtido em juízo pode ser retido para pagamento de tais despesas, a exemplo dos honorários advocatícios. Esse aspecto, vital para a garantia do efetivo acesso ao sistema de justiça, continua sem resposta da Suprema Corte [9].
Esse movimento destrutivo do Direito do Trabalho e de suas instituições correlatas é agravado por manifestações públicas de membros da Corte. Participar de reuniões, proferir discursos, dar palestras, fazer prejulgamentos em eventos promovidos por entidades patronais, tem sido bastante comum entre ministros do STF. Nas manifestações, são frequentes exaltações à desregulação do mercado de trabalho, comentários depreciativos à Justiça do Trabalho e ataques a magistrados especialistas em Direito Trabalho [10].
Alguns adversários históricos dos direitos sociais chegam a dizer que esta situação foi resultado de uma reação do STF à postura do Tribunal Superior do Trabalho — e da magistratura trabalhista como um todo — que se recusava a conferir uma interpretação modernizadora, flexível, das normas trabalhistas [11]. Mas essa retórica não se sustenta. A Justiça do Trabalho é instituição reconhecida pela elevada qualidade de suas decisões e por sua efetiva atuação como instrumento civilizatório das relações de trabalho no Brasil.
Nosso sistema de justiça está bem estruturado, possui ampla capilaridade, dispõe de excelente infraestrutura tecnológica e conta com magistrados e servidores permanentemente qualificados para o adequado e eficiente desempenho das funções. Com expertise de 80 anos no mundo do trabalho, tem contribuído significativamente não somente para concretizar os direitos sociais, mas também para assegurar maior, melhor e mais ampla proteção trabalhista.
Ações envolvendo novas formas de trabalho começam a chegar lentamente à Justiça do Trabalho brasileira. Constata-se uma demanda reprimida, derivada de múltiplas razões. Entre outras, pelo estranhamento dos trabalhadores em relação à própria atividade, pela interiorização do ideário liberal do empreenderorismo, pela falta de representação coletiva dos trabalhadores e pela ausência de compreensão sobre os direitos que decorrem dessas novas formas de relações de trabalho.
O maior desafio da Justiça do Trabalho no Brasil é encontrar caminhos que lhe permita contornar as fortes restrições às suas competências e atribuições impostas pelas decisões do Supremo Tribunal Federal. Superadas essas limitações, o sistema de justiça trabalhista estará em condições de conferir as respostas adequadas às demandas decorrentes das transformações do mundo do trabalho, a partir das premissas constitucionais da dignidade humana, da valorização do trabalho e da justiça social.
[1] ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
[2] COUTINHO, Grijalbo Fernandes. Justiça política do capital: a descontrução do direito do trabalho por meio de decisões judiciais. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021.
[3] RE nº 193.503-1/SP, ADIs nºs 2.139 e 2.160, RE nº 287.9905-3/SC, RE nº 259.318 e RE nº 629.053/SP.
[4] RE nº 958.252/MG e ADPF nº 324/DF.
[5] RE nº 590.415/SC e RE nº 897.759/PE.
[6] ADI nº 5794 e ADC nº 55.
[7] ADI nº 3.395/DF, RE nº 569.056-3/PA, RE nº 586.453/SE, Rcl 46.356/RS.
[8] ADI nº 5.468.
[9] ADI 5.766/DF.
[10] Com o título "Excesso de proteção ao trabalhador é um problema, diz Barroso", matéria do site Conjur explicita a postura pública de integrantes do STF: https://www.conjur.com.br/2017-mai-19/excesso-protecao-trabalhador-problema-barroso.
[11] Esta a reflexão do magistrado e professor Jorge Luis Souto Maior, formulada em sua resenha "O STF contra os trabalhadores", extraído do site https://www.jorgesoutomaior.com/blog/resenha-trabalhista-o-stf-contra-os-trabalhadores.
*Mestre e Doutor em Direito (PUC-SP e UCLM), Desembargador doTribunal Regional do Trabalhoda 22ª Região (Piauí-Brasil) e Professor da Uninassau (Teresina / Piauí-Brasil).