Por Francisco Luciano de Azevedo Frota, juiz do trabalho
A pandemia que está assolando o país, agravada sobretudo pela incúria de um governo que nega a ciência e que conspira contra medidas de prevenção, escancara para os olhos nus e enviesados da sociedade a face mais impiedosa do capitalismo.
Não é verdadeiro afirmar que o vírus é democrático. Essa é mais uma das falácias ditadas pelos “deuses invisíveis” que dominam o mundo, para encobrir a carnificina a que o darwinismo capitalista submete aqueles que são tidos como excedentes pelo sistema.
O que dizer das pessoas que não têm acesso a bens coletivos vitais como a moradia, a alimentação, o saneamento básico, a assistência à saúde e o trabalho? E daqueles trabalhadores precarizados que não podem cumprir regras de isolamento, pois precisam “fazer o seu corre” para o comer do dia? Como bem pontua Ricardo Antunes [1], a classe trabalhadora vive sob intenso fogo cruzado, entre a fome e o vírus, mostrando que a letalidade pandêmica tem classe social, com todos os ingredientes intercruzados de cor e de gênero.
Vivemos no Brasil os efeitos de uma economia que já adentrou à crise sanitária estagnada, com crescimento em 2019 de apenas 1,1%, e com o seu sistema de proteção ao emprego esfacelado pela reforma trabalhista de 2017 [2]. Atualmente, mais de 40% da classe trabalhadora brasileira sobrevive na informalidade [3], com quase seis milhões procurando escapar do desamparo absoluto submetendo-se às condições sub-humanas do trabalho por aplicativos e plataformas digitais.
Esses são os espaços de ocupações oferecidos pelo “éden” da desproteção trabalhista, cada vez mais situados no lócus da precariedade, obrigando aos que precisam do trabalho a viver da incerteza do hoje e da imprevisão do amanhã. E diante de uma pandemia letal, é esse trabalhador brasileiro sem nome, desguarnecido das travas de segurança, que morre nas filas dos hospitais porque não tem sequer o direito de se cuidar. É também ele que, premido pela necessidade, se vê compelido a engrossar o coro contra as medidas de isolamento social, insuflado pela ameaça cínica dos patrões de jogá-lo à miséria do desemprego. Mas quando a sua voz é calada pela fatalidade do vírus, não há sequer um grito de lamento, porque assim é a tragédia do capitalismo.
O Estudo do DIEESE publicado no seu boletim “Emprego em Pauta” de outubro de 2020 [4], baseado nas informações da PNAD Contínua do IBGE, mostra que a pandemia está atingindo, sobretudo, os trabalhadores mais precarizados e de menor renda. Cerca de 13% dos trabalhadores ocupados no primeiro trimestre de 2020 perderam o seu posto de trabalho no trimestre subsequente, sendo os mais atingidos: os que percebem até um salário-mínimo mensal; os trabalhadores domésticos e do setor privado sem carteira de trabalho assinada; os menos escolarizados; os negros; e as mulheres.
O filósofo marxista István Mészaros, analisando a obsessão expansionista do capital e a sua fúria destrutiva, que a tudo submete, inclusive a vida humana, sintetiza bem a crueldade do modus operandi desse sistema de produção: “Seres humanos são, ao mesmo tempo, absolutamente necessários e totalmente supérfluos para o capital. Se não fosse pelo fato de que o capital necessita do trabalho vivo para sua autorreprodução ampliada, o pesadelo do holocausto da bomba de nêutrons certamente se tornaria realidade. […]”. (2011, 18.2.3, cap. 18.2 Das crises cíclicas à crise estrutural) [5]
Para o capital, tudo é mercadoria, e a roda do mundo apenas gira em torno dos imperativos da sua autorreprodução. É assim com o meio ambiente, com a força de trabalho e com a própria vida humana, todos sujeitos ao descarte e à destruição.
A pandemia está desnudando a perversidade desse sistema, e mostrando que, por trás dos discursos de defesa da economia, destila-se, na verdade, o desvalor pela vida de quem efetivamente produz valor. Assim como ocorreu na ufanada Guerra do Paraguai, em que escravos foram jogados nos campos de batalha para que o país cantasse as suas glórias, os trabalhadores estão sendo acuados para ocupar a linha divisória da morte e defender os lucros do capital, numa prova candente dessa lógica do descarte inerente à ideologia capitalista.
Não é à toa que a Covid-19 se tornou a principal causa de afastamento de trabalhadores em 2021, com mais de 13 mil em situação de incapacidade temporária causada pelo vírus apenas no primeiro trimestre do ano, segundo dados da Secretaria de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia. [6]
Mas nada disso surpreende. É apenas mais um capítulo na extensa produção da morte patrocinada pelo capitalismo para eliminação dos indesejáveis ao sistema, como ocorre no extermínio das pessoas negras e pobres da periferia das grandes cidades, no genocídio dos povos originários, na destruição ambiental, no encarceramento em massa, bem como na superexploração da força de trabalho, que indigna, miserabiliza, exclui e mata.
Gabriel Miranda, cientista social e pesquisador, com mestrado e doutorado na área de Psicologia, em seu livro intitulado Necrocapitalismo: ensaio sobre como nos matam [7], descreveu com proficiência o que representa a vida humana no modo de produção capitalista:
“o corpo é moldado para servir ao capitalismo e, depois, quando se encontra sem utilidade, é descartado. Trata-se de um corpo-objeto, um corpo-mercadoria, e não um corpo-vivente. Não há espaço, no capitalismo, para que a vida dos trabalhadores e das trabalhadoras adquira uma posição de centralidade, pois tal sociabilidade [do capitalismo] produz o apagamento do ser, reduzindo-o a mera força de trabalho a ser explorada.” (2021, p.83)
Essa é a lógica subjacente do discurso oficial que desfila pelas redes da negação e da desinformação, produzindo violência; a mesma que minimiza os efeitos da pandemia para defender o capital em detrimento da vida, e que propaga, insanamente, impropérios descivilizatórios como “bandido bom é bandido morto” e “cidadão livre é cidadão armado”.
Portanto, estamos diante da morte como política, ou da necropolítica, como tratada pelo cientista político camaronês Achille Mbembe [8], e que Gabriel Miranda [9] denomina de necrocapitalismo, por considerar o termo mais adequado para definir “o caráter sistêmico de produção da morte no capitalismo” (2021, p. 26).
No mundo do capital não há espaço para os valores humanos intrínsecos. A vida humana só importa enquanto servir aos propósitos de acumulação de riquezas, e a pandemia apenas escancara essa realidade.
Como escreveu Jamil Chade [10], “mais de dois bilhões de seres humanos vivem no que o Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD) chama de ¨miséria absoluta¨, sem renda fixa, sem trabalho regular, sem moradia adequada, sem cuidado médico, sem alimento suficiente, sem acesso à água potável, sem escola”. A fome é a maior causa de morte no planeta e a cada cinco segundos uma criança com menos de dez anos morre em razão da inanição. [11]
Precisamos urgentemente de um novo mundo, que nos faça humanos, iguais, livres e felizes, em que possamos conviver harmonicamente com a natureza e dela extrair os seus melhores frutos, tendo, assim, uma vida dotada de sentido. Claro que isso é possível, mas não virá sem luta.
Francisco Luciano de Azevedo Frota é juiz do trabalho – TRT-10ª Região e Membro da Associação Juízes para Democracia.
Notas:
[1] Antunes, Ricardo. Coronavírus, sob fogo cruzado, 1ª ed., São Paulo, Brasil: Boitempo, 2020
[2] Dados divulgados pelo IBGE aponta o crescimento do PIB em 2019 de 1,1%:
[3] Dados oficiais do IBGE extraídos da sua página oficial na rede mundial de computadores
[4] https://www.dieese.org.br/boletimempregoempauta/2020/boletimEmpregoEmPauta16.html
[5] Mészaros, István. Para além do capital: rumo a uma teoria de transição. São Paulo, Brasil: Boitempo, 2011.
[6] Segundo matéria publicada pelo site da CNN Brasil em 18/04/2021: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/04/18/covid-se-torna-principal-causa-de-afastamento-do-trabalho
[7] Miranda, Gabriel. Necrocapitalismo: ensaio sobre como nos matam, 1ª ed, São Paulo: Lavrapalavra, 2021
[8] Mbembe, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 edições, 2018
[9] Miranda, 2021, p. 26
[10] Chade, Jamil. O mundo não é plano: a tragédia silenciosa de 1 bilhão de famintos. São Paulo: Saraiva: Virgília, 2009: p. 14
[11] Chade, 2009: p. 12. Informação trazida com base em relatório da FAO