* Texto originalmente publicado na coluna "Juízo de Valor", do portal Jota
Reza o dito popular que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. E, para falar de “juízo” em outra acepção, há outro adágio muito repetido em Brasília: “ordem judicial não se discute, cumpre-se”. Ambos mereceriam alguma reflexão à luz dos últimos acontecimentos no insólito Brasil de 2016.
Digo isto, querido leitor, porque, nas últimas semanas, o Brasil testemunhou um festival de mandos e desmandos “públicos” no olimpo das autoridades públicas (rectius: Brasília). Para quem não está muito atento às coisas do direito e da política, essas infelizes passagens podem até parecer questões “menores”. Mas não são.
Em uma decisão liminar, nos autos da ADPF 402, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu afastar o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) das suas funções de presidente do Senado Federal. E assim decidiu basicamente porque, em caso anterior (o do ex-deputado Eduardo Cunha), o STF já havia sinalizado que réus em processos criminais não poderiam ocupar a linha constitucional sucessória da Presidência da República (isto, à vista do que dispõe o artigo 86, §1º, I, da Constituição).
Explico. É que, no caso, (a) a Constituição estabelece que, na ausência do Presidente da República e do seu vice (que, na atual conjuntura, já não existe), quem assume a Presidência da República é o Presidente do Senado da República; e (b) Renan Calheiros havia acabado de se tornar réu, naquele mesmo tribunal, em razão da denúncia da Procuradoria-Geral da República (Inq. 2593) que o acusa, entre outras coisas, de peculato (uma vez que Calheiros teria desviado parte da verba de representação parlamentar para custear as despesas de pensão alimentícia com a filha que teve com a jornalista Monica Veloso, em famoso affaire que o levou à renúncia em legislatura passada. Nada mais coerente, portanto.
Marco Aurélio poderia ter decidido desse modo? Com vênias à opinião contrária, podia. Reza o artigo 5º, §1º, da Lei n. 9.882/1999, em sede de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que,“[e]m caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno”. O juiz natural da causa examinou os fatos, reconheceu a urgência da medida e afastou Calheiros. Na própria decisão, lê-se a razão de seu ato e o sentido de urgência e o risco de lesão:
“[…] o hoje Presidente do Senado da República, senador Renan Calheiros, por oito votos a três, tornou-se réu, considerado o inquérito nº 2.593. Mesmo diante da maioria absoluta já formada na arguição de descumprimento de preceito fundamental e réu, o Senador continua na cadeira de Presidente do Senado, ensejando manifestações de toda ordem, a comprometerem a segurança jurídica”.
E, de fato, foi o mesmo Calheiros que tentou conferir inexplicável regime de urgência ao PLS n. 280/2016, que definirá os “novos” crimes de abuso de autoridade e criará, em detrimento da Magistratura e do Ministério Público – ambos desafetos de Calheiros −, verdadeiros “crimes de hermenêutica” (crimes que se verificam apenas porque o agente público dá a certa questão determinada interpretação que não é compartilhada, depois, em grau de recurso, pelos juízes dos tribunais ad quem). Quer vê-lo aprovado a toque-de-caixa, quase como se fora sua vendetta pessoal contra os juízes e procuradores. Ainda não conseguiu (o texto aguarda designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça do Senado). Mas isso é outra história.
Para o que nos interessa aqui, vale pontuar que o ministro Marco Aurélio podia decidir como decidiu, desde que o fizesse – como fez – com a devida fundamentação. Se a decisão, no mérito cautelar, era ou não a mais adequada (considerando que o julgamento da Ação Cautelar n. 4.070/DF, sobre a matéria, ainda não se concluíra), ou se foi ou não “conveniente”, é outra discussão.
No entanto, tal decisão judicial, proveniente de autoridade competente no exercício de suas legítimas funções constitucionais e legais, foi simplesmente ignorada por uma decisão da mesa diretora do Senado. Com efeito, além de se esquivar da ação do oficial de Justiça, o senador Renan Calheiros levou a mesa a emitir, no dia seguinte, “decisão” segundo a qual a decisão judicial não seria cumprida, senão após a sua confirmação pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. Veja-se o artigo 1º da primeira versão do ato, pelo qual se decidia “aguardar a deliberação final do Pleno do Supremo Tribunal Federa, anteriormente à tomada de qualquer providência relativa ao cumprimento da decisão monocrática em referência”.
Mas a cereja do bolo veio no dia subsequente. Reunindo-se em composição plenária para apreciar a medida liminar deferida por Marco Aurélio, o STF entendeu, por seis votos (de nove ministros votantes), rever a sua determinação, para manter Calheiros na presidência do Senado, afastando-o apenas da linha sucessória presidencial. Diriam vocês: “ora, mas o plenário é soberano para rever a decisão monocrática do ministro relator”. De fato, é. Mas remanesce a questão: e quanto ao descumprimento deliberado da ordem judicial anteriormente emanada? … Quanto a isto, nenhuma palavra.
Agora, imagine você, leitor, que um homem violento receba em sua casa oficial de justiça a portar mandado judicial que lhe determine cautelarmente guardar distância mínima de cem (100) metros de sua ex-esposa, ameaçada de agressão. E imagine que, inspirado pelos últimos acontecimentos, este homem reúna ao seu redor os filhos e todos entendam que, ante a “gravidade” da medida, o homem só deverá acatá-la (se acatá-la) após a confirmação da liminar pelo Tribunal de Justiça. E, até lá, seguirá “visitando” a ex-mulher tantas vezes quanto queira. Como a sociedade veria isto? Como você veria isto? Aliás, você poderia fazer isto? Ou somente as lideranças políticas? A força do julgado depende da eminência do réu?
Não estou sequer sendo retórico. Depois do caso de Calheiros, a novidade tem ressurgido frequentemente. Em relação à decisão do ministro Luiz Fux de suspender liminarmente a tramitação do projeto de lei relativo às dez medidas anticorrupção, porque inobservadas as normas do próprio Regimento Interno da Câmara dos Deputados quanto aos projetos de iniciativa popular, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou tratar-se de “liminar um pouco estranha”, que submeteu à “análise” da assessoria jurídica da Casa (quanto à obrigatoriedade ou não de cumpri-la?).
A rigor, ao menos do ponto de vista formal, Calheiros incorreu em crime de desobediência de ordem judicial (artigo 330 do Código Penal), podendo ser julgado, por crimes comuns, pelo próprio Supremo (art. 102, I, “b”, CF). Mais: nos termos do artigo 5º, III, do Código de Ética e Decoro Parlamentar, tal desobediência judicial configura quebra de decoro parlamentar (“prática de irregularidades graves no desempenho do mandato ou de encargos decorrentes”), sujeitando-o ao julgamento pelos próprios pares, já que os parlamentares não se submetem ao regime jurídico da Lei n. 1.079/1950 – a mesma que baseou o impeachment de Dilma Roussef – para os chamados “crimes de responsabilidade”.
Será responsabilizado por isto? Será, ao menos, instado a responder pelo seu ato de explícita desobediência? Em um regime de freios e contrapesos, como o nosso, essa indagação tem destino certeiro: a Procuradoria-Geral da República. Mais uma vez. Sendo certo que, a rigor, o crime de desobediência é de menor potencial ofensivo e raramente enseja a prisão de quem o pratica, exceto se reincidente e/ou não-primário. Restará, portanto, apenas o mau exemplo. E o deboche.
Sim, deboche. Porque, para aqueles que acompanharam o deprimente episódio em que Renan pediu à polícia legislativa que retirasse do plenário do Senado juízes e membros do Ministério Público, dirigentes das respectivas associações, que lá estavam a convite de outros senadores, veio à tona uma reminiscência daquele episódio criminal com que iniciamos este artigo: referindo-se jocosamente ao presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), o juiz Roberto Veloso, Renan disse a quem quisesse ouvir: “Veloso… Nunca me dei bem com este nome!”.
Referia-se, por óbvio, a Monica Veloso.
E, tão seguro estava ao surfar as melhores ondas políticas da República, que se deu ao luxo de fazer troça e trocadilho. Trocadilho com os nomes alheios. E troça com a Justiça brasileira. A pegar a moda, agora “manda quem tem juízo; desobedece quem tem excelência”...
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Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, é professor associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Penal pela USP e em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Livre-docente em Direito do Trabalho pela USP, Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.