O Presidente da Câmara Federal, deputado Eduardo Cunha, patrono da inclusão em pauta de plenário do Projeto de Lei n. 4.330/2004, mesmo sem esgotar os debates da Comissão de Constituição e Justiça da Casa, onde a matéria encontra-se pendente de parecer, minimizou as polêmicas em torno do projeto e reduziu tudo a uma alegada disputa por dinheiro, conforme declarações que lhe foram atribuídas pela imprensa na semana passada.
Segundo suas observações sobre o assunto, a tal disputa estaria sediada unicamente em interesses pela contribuição sindical, razão das resistências ao projeto por parte de entidades de representação classista.
É bem verdade que a estrutura sindical brasileira carece de renovação, capaz de torná-la mais vigorosa e representativa, inclusive no que diz respeito ao modelo de unicidade e das contribuições obrigatórias. A Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) tem posição histórica, adotada em seus Congressos, contrária a esses dois pontos.
Em 2004, por ocasião do XII Congresso nacional (o CONAMAT), realizado em Campinas, foi aprovada tese em que se assinalou : "(..) não se pode mais conceber a manutenção da organização sindical alicerçada no conceito de categoria e de unicidade, dependente da contribuição obrigatória de todos os trabalhadores empregados, sem exceção, o que impede o desenvolvimento de uma efetiva democracia participativa, através da negociação coletiva eficaz que, ao mesmo tempo, valorize o trabalho humano e resguarde a conservação da empresa".
Mas essa, a bem da verdade, está longe de ser a base real da "disputa por dinheiro" a que se refere o deputado Eduardo Cunha, em se tratando do PL 4330.
Efetivamente, no projeto que trata da terceirização há sim uma ampla "disputa por dinheiro", para ficar na contextualização proposta pelo presidente da Câmara, mas esses ganhos não terão como beneficiários os sindicatos e os trabalhadores.
É preciso ser claro e transparente para informar à população que o benefício econômico (o proveito da "disputa por dinheiro") reverterá em favor dos empresários que hoje contratam trabalhadores diretamente e que passariam a terceirizar essa mão-de-obra, pagando salários inferiores.
Se hoje esses empregadores estão obrigados a conferir aos seus empregados direitos historicamente conquistados e que visam assegurar proteção social, dignidade e segurança no desempenho de suas atividades, se aprovado o novo projeto os empresários estariam "livres" para promover a redução em massa de garantias trabalhistas, passando a desembolsar muito menos com as contratações de trabalhadores para o desempenho das funções que necessitam em suas atividades essenciais.
Aliás, impressiona que um quadro gravíssimo como esse não seja repudiado por alguns parlamentares, considerando-se que a redução de vantagens e direitos dos empregados corresponde ao mesmo tempo, note-se bem, ao acréscimo de lucro pelo barateamento do custo da mão-de obra, aprofundando ainda mais os padrões brasileiros de concentração de renda.
Não há dúvidas ,portanto, sobre quem ganha e quem perde.
O PL 4330, tal como elaborado, representa a desconstrução absoluta de toda uma base de proteção social que foi politicamente estabelecida na ideia do estado de bem estar social, introduzida no Brasil nos anos trinta do século passado e consolidada pelo constituinte de 1988, com desdobramentos nos anos recentes.
Chega a ser espantoso que parlamentares, eleitos com voto popular e dos milhões de trabalhadores em todo o país, que dependem do mínimo para manutenção de condições dignas no cotidiano, defendam a aprovação de um projeto que reduzirá substancial e sistemicamente o patamar salarial da grande maioria do povo brasileiro.
Mais instigante ainda é procurar saber por quais razões e por qual modelo se está trocando o padrão de proteção social trabalhista em vigor no Brasil. Será por algo parecido com o modelo chinês?
Na China, empresas como a Dell, Hewlett-Packard, Nintendo, Nokia e Samsung, só para citar algumas, terceirizam suas linhas produtivas em condições desumanas, segundo periódicos insuspeitos como o The New York Times.
Há relatos de exigência de 72 horas de trabalho semanais, bem como de explosões em fábricas dessas empresas terceirizadas que lá atuam, além de elevados índices de acidentes, doenças ocupacionais, e da prática comum de assédio moral coletivo por meio da colocação de placas nos locais de trabalho com os dizeres "Trabalhar duro no trabalho hoje ou trabalhar duro para encontrar um emprego amanhã", de modo a incutir no trabalhador a ideia de que é melhor trabalhar em um ambiente nefasto do que não ter ocupação alguma.
Nesse contexto de total desprezo pelos direitos sociais, SLAVOJ ZIZEK (in "Vivendo no Fim dos Tempos") já disse que " a China atual seria o país capitalista ideal, em que a principal tarefa do Partido Comunista é controlar os trabalhadores e impedir sua organização e mobilização contra a exploração". E será esse o futuro que o legislador pátrio , por suas novas lideranças, pretende entregar ao trabalhador brasileiro sob o falso discurso da modernidade?
É tão evidente o interesse econômico empresarial no bojo PL 4330 que ideias de emendas ao projeto, estimuladas pela Anamatra, que tinham por objetivo equiparar direitos e salários entre terceirizados e contratados diretamente pelas empresas tomadoras, constante de nota técnica apresentada aos deputados , jamais foram acolhidas.
Essa rejeição deixa clara a ideia de tratar os terceirizados como subcategorias, discriminando-os profissional e economicamente. Do mesmo modo foi rejeitada a ideia de responsabilidade solidária entre as empresas tomadora e prestadora de serviços, o que só pode ser entendido como mais um benefício a quem pretende se beneficiar economicamente da degradação dos direitos sociais.
É tão notório esse interesse, que empresários estão sendo convocados para estar em Brasília pela Frente Parlamentar em apoio ao PL 4330, uma vez que as Confederações empresariais elegeram a terceirização (e não a carga tributária?!?!) como condição imprescindível para que as empresas possam colocar seus produtos no mercado a preço competitivo, o que constitui a mais absoluta falácia, ou, por outra, a mais evidente prova do real objetivo desse projeto.
Não se pode deixar de lembrar, ainda, que enquanto movimentos de rua no mundo trazem como uma de suas bandeiras a redução da desigualdade, o Brasil move-se na direção oposta para abraçar uma opção de neoliberalismo de contramão, sem atentar para os efeitos danosos e sistêmicos que medidas dessa natureza podem acarretar.
THOMAS PIKETTY ( "O Capital no Século XXI") ao comentar os efeitos do aumento da desigualdade social nos Estados Unidos sobre a crise de 2008 (mesmo efeito que seria provocado pela terceirização indiscriminada no Brasil, que acentua os fossos sociais) adverte: "Do meu ponto de vista, não resta dúvida de que o aumento da desigualdade contribuiu para fragilizar o sistema financeiro americano. (..) A alta desigualdade teve como consequência uma quase estagnação do poder de compra das classes populares e médias no Estados Unidos. Daí só poderia resultar o endividamento crescente das famílias menos abastadas, sobretudo considerando que o acesso ao crédito foi ficando cada vez mais fácil (..)".
Nesse sentido , não se pode deixar de dizer os apoiadores do PL 4.330 parecem ser os mesmos que aplaudem uma espécie de "Estado assistencial para os ricos, que ao contrário de seu homônimo para os pobres jamais teve a sua racionalidade questionada", na bem cunhada crítica de ZYGMUNT BAUMAN (in "Vida a Crédito").
* Germano Silveira de Siqueira (Vice-presidente da Anamatra)