A recente aprovação pela Câmara dos Deputados do projeto de lei da terceirização trabalhista[1] me fez refletir sobre um conto do escritor belga-argentino Júlio Cortázar intitulado A casa tomada. A narrativa é bem simples, mas carregada de efeito simbólico. Fala da rotina de dois irmãos e de como a casa em que residem é paulatinamente tomada, o que os obriga a recuar à procura um refúgio, saindo de compartimento para outro, até que finalmente, são expulsos e obrigados a deixar a casa. Quem a tomou? Uma força oculta, um monstro, uma entidade, algo terrível? O conto termina sem que se saiba a resposta.
E qual é a relação da metáfora da casa tomada de Cortázar com a aprovação do referido projeto de lei e, no limite, com a precarização do direito social do trabalho?
Como ressabido, o Direito do Trabalho, desde a origem, foi estruturado com um viés protetivo, o que, num certo sentido, representa sua emancipação do Direito Civil, justo pelo fato de que os postulados da plena autonomia da vontade e da liberdade de contratar, fundamentos nucleares do liberalismo econômico do século XIX, não poderiam ser automaticamente aplicados no âmbito das relações laborais, eis que o trabalho despendido pelo homem não pode ser visto como uma simples mercadoria, como ocorre nas relações tipicamente privadas. Numa palavra: o homem que trabalha não se separa do trabalho que produz, entre eles há apenas uma diferença ontológica, no sentido de que todo ser é o ser de um ente e este só existe no seu ser, para lembrar aqui uma sentença heidegggeriana.
Todavia, há quem, com espírito saudosista, defenda que, nessa quadra da História, não tem sentido o Estado continuar regulando as relações entre trabalho e capital, que devem ser deixadas aos cuidados do mercado, simples assim. É uma tese que não deixa de ter seus méritos, dado que boa parte da nossa legislação social envelheceu. Por outro lado, esse viés se fragiliza se olharmos a questão na perspectiva de que, em pleno século XXI, no Brasil ainda se convive com marcos civilizatórios medievos, tais como a exploração do trabalho infantil e o trabalho escravo ou reduzido a essa condição, só para ficar nesses dois exemplos, isso sem dizer que, passado mais de um quarto de século da promulgação do texto constitucional, a boa parte dos direitos sociais do trabalho ali consagrados sequer se foi conferida eficácia normativa, posto que pendentes de regulamentação mediante legislação infraconstitucional, de que é exemplo o emblemático inciso I do artigo 7º, que prevê a proteção contra despedida arbitrária. E a terceirização trabalhista se insere nesse cenário.
Mas, o que é isto – a terceirização trabalhista? Relembremos. A terceirização trabalhista, vista como modelo de produção, é um fenômeno por meio do qual se insere um trabalhador na cadeia produtiva de determinada empresa, que recebe o serviço desse trabalhador, sem que se estabeleça entre eles uma relação de emprego, que é firmada com um terceiro, a empresa especializada na prestação de determinados serviços ou fornecimento de mão-de-obra.
A lógica é a redução de custo, sem dizer que, terceirizando determinadas atividades, a empresa poderá se concentrar na sua atividade principal ou finalística. Sempre foi assim a partir da década de 70. Nesse paradigma, tome-se o exemplo de uma atividade empresarial constituída sob a forma de instituição financeira ou de uma escola. Para o atingimento de seus fins irão precisar necessariamente de bancários e professores, respectivamente, a elas diretamente vinculados por um contrato de trabalho, o que não será necessário em relação a serviços de apoio, tais como vigilância patrimonial, transporte de valores, limpeza, conservação, telefonia, copa ou informática. Esses profissionais, por desenvolverem uma atividade de apoio à atividade principal, de acordo com os atuais contornos definidos na legislação e a jurisprudência predominante, podem ser contratados por intermédio de uma terceira pessoa, a empresa especializada no oferecimento desses serviços.
Do ponto de vista da legislação social, a terceirização é um processo que se insere no fenômeno conhecido como flexibilização dos direitos sociais do trabalho, que tem como finalidade arrefecer a rigidez da legislação de regência, reiteradamente acusada de anacrônica e de impedir o crescimento da economia, cujo marco inicial é datado no ano de 1966 com a criação do FGTS, instituto que, ali, toma o lugar da estabilidade decenal, até então um instrumento de proteção do emprego. Percebe-se, então, que o processo de tomada da casa vem de longe.
A propósito, voltemos à metáfora cortaziana. Por um esforço mental, imaginemos que essa casa como um edifício que atende pelo nome de Direito do Trabalho que, a partir de suas fundações, como já dito, foi estruturado e erguido sob o viés da proteção, mas que, ao longo do tempo, vem sendo alvo de ataque de agentes predadores, internos e externos, que provocam constantes abalos nessa estrutura. Um desses agentes é a terceirização, que ameaça levar ao chão o edifício, como demonstra a aprovação do projeto de lei que ficou adormecido por mais de uma década, mas que, diante da atual conjuntura, encontrou um cenário favorável à sua aprovação.
O tratamento legal da terceirização é pontual. A origem mais remota pode ser identificada, de forma indireta, no art. 455 da CLT ao tratar da responsabilidade pelas obrigações trabalhistas do empreiteiro principal nos contratos de subempreitada, caso a empresa subcontratada não as honre. Posteriormente, a matéria foi tratada na Lei 6.019/74, que admitiu expressamente a terceirização nas empresas urbanas ao instituir o trabalho temporário, aquele destinado a atender à necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanente ou a acréscimo extraordinário de serviços, desde que a duração não ultrapasse três meses. Em seguida, ocupando mais um espaço da casa, agora de forma definitiva, veio a Lei 7.102/83, que introduziu a terceirização permanente para os serviços de vigilância bancária e transportes de valores. Finalmente, a Lei 8.863/94, estendeu a possibilidade de terceirização de vigilância patrimonial e serviços de transportes de valores para qualquer outro ramo de atividade. Ou seja, ainda que de forma pontual, a terceirização foi, passo a passo, ocupando espaço, avançando e se instalando definitivamente numa vasta área da casa.
Mas, nem tudo estava tomado, posto que fechando o sistema, foi construído um entendimento jurisprudencial, finalmente consolidado através da Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho, uma espécie de medida protetiva visando à preservação das principais dependências da casa, na qual ficou estabelecido que a terceirização é considerada lícita apenas nas atividades-meio ou de apoio, não podendo ser estendida à atividade-fim da empresa[2].
Em síntese, a Súmula 331 do TST estabelece como ilícita a contratação de trabalhadores por empresa interposta, salvo no caso de trabalho temporário regulado pela Lei n. 6.019/74, independentemente de se tratar atividade fim ou meio, sem qualquer tipo de restrição, além de considerar lícita a terceirização na contratação de serviços de vigilância, de conservação, de limpeza, bem como de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador (telefonia, copa, portaria, informática etc).
Durante todo esse tempo, na falta de uma regulamentação legal mais abrangente, o TST cumpriu o papel de estabelecer os contornos da terceirização, bem como o de velar pelo seu cumprimento, declarando nulas as contratações que representassem violação desse entendimento.
Contudo, o projeto de Lei 4330/04, aprovado na Câmara dos Deputados, acaba com a fronteira entre atividade-fim e atividade-meio construída pela jurisprudência. Dizendo de outro modo, estende a terceirização para qualquer tipo de atividade. A se confirmar a aprovação no Senado, será possível, v.g., a existência de uma instituição financeira sem nenhum bancário ou uma escola sem nenhum professor a ela diretamente vinculado, que será contratado por meio de uma terceira pessoa.
O argumento é de que o rompimento da fronteira estabelecida na Súmula do TST será bom para a economia, que se livrará do engessamento a que se encontrava submetida, e também para os trabalhadores, pois se abrirão novos postos de trabalho. Até aí nenhuma novidade, pois esse é um argumento muito recorrente, embora as tentativas nesse sentido, com prejuízo para os direitos sociais do trabalho, quase sempre tenham resultado frustradas, tudo não passando de mera falácia. Em verdade, a terceirização com esses contornos que se lhe quer impor faz mais é precarizar os direitos sociais, sendo a representação mesmo da casa tomada, com ocupação (e desalojamento dos ocupantes) da última trincheira que resiste ao seu tombamento.
De fato, é bom para a empresa, que reduz encargos e aumenta a lucratividade. Para o trabalhador não, pois a terceirização rebaixa salários, além de criar subcategorias. É uma questão matemática. A partir de agora, um banco privado, sob o pretexto de reduzir encargos, poderá exercer a faculdade de não contratar diretamente um bancário, o que será feito por uma empresa que fornecerá o “bancário”. Ora, essa empresa, por sua vez, também terá seus custos, sem dizer que visa também uma margem de lucro, sob pena do empreendimento não se viabilizar. Resultado: a remuneração média desse “bancário” certamente será inferior a de um autêntico bancário contratado diretamente pelo banco, caso contrário não haveria nenhum interesse na terceirização.
A (a)moralidade da história: não haverá mais bancários e nem professores, somente trabalhadores terceirizados, com uma agravante que o fato de que, a terceirização, nesses termos, se estenderá até mesmo sobre a administração pública indireta, medida de discutível constitucionalidade quando encarada na perspectiva da obrigatoriedade do concurso público estabelecida na Constituição Federal.
Mas não é só. Há outros prejuízos para o trabalhador. Ao contrário da crônica anunciada, o desemprego tende a aumentar. A razão disso? Basta se lançar mão de outra regra aritmética, utilizando-se como exemplo, mais uma vez, o bancário. A jornada de trabalho de um bancário estabelecida em lei é de 06 horas diárias e 30 horas semanais. Mas o trabalhador recrutado via terceirização para exercer as mesmas atribuições irá se submeter a uma jornada de trabalho de 08 horas diárias e 44 horas semanais e com uma remuneração média bem inferior. Numa palavra, isso significa redução de postos de trabalho, justo porque um bancário será demitido para dar lugar a um trabalhador terceirizado que, por sua vez, ocupará, por baixo, 1,5 postos de trabalho. Em síntese: é a troca de um por quase dois e com menor custo.
Ademais, o número de acidentes de trabalho vai aumentar[3], sem dizer que se multiplicarão as demandas judiciais envolvendo serviços terceirizados. Há estatísticas que comprovam que é no âmbito dos serviços terceirizados que ocorrem a maioria dos acidentes do trabalho, justamente pelo seu caráter precário, o que incluí a ausência de fiscalização quanto à observância das noras de proteção e segurança no trabalho. Quem milita na área sabe que a maioria das ações envolvendo o trabalho terceirizado decorre do fato de que as empresas prestadoras de serviços simplesmente, do nada, ou de repente, encerram suas atividades, fecham suas portas, e deixam os trabalhadores sem honrar nem mesmo o pagamento de direitos básicos e essenciais, como o salário do mês trabalhado, férias, 13 salário e FGTS. Má-gestão, má-fé, inidoneidade financeira ou ausência de fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas por parte da empresa tomadora dos serviços estão na origem disso tudo, fenômeno que ocorre até mesmo no âmbito da administração pública, onde, por razões óbvias, se presume maior rigidez na fiscalização da execução do contrato. E se isso se dá sem peias no serviço público, que dirá então na esfera da iniciativa privada, onde os freios inibitórios são mais relaxados, quando não se finge que nada se a tem a ver com o problema?
Pra finalizar. Diz-se diz que aqui deste lado ocidental todos somos um pouco gregos. No caso da aprovação do PL 4330 isso é apenas uma meia-verdade, posto que o episódio, numa dada perspectiva, não é exatamente uma tragédia e sim uma tragicomédia, o que também é helênico. Digo isso porque se revela no mínimo curioso saber que boa parte dos deputados que aprovaram a terceirização que elimina a fronteira entre atividade-fim e atividade-meio, são os mesmos que se lançaram à rua ou ocuparam espaço na mídia para protestar contra o ajuste fiscal do governo federal que, dentre outras medidas, altera as regras do seguro desemprego. Não se trata de tecer loas ao ajuste fiscal, posto que, em boa medida, igualmente sacrifica os direitos do trabalhador. Mas, bem que poderia haver entre as duas posturas um mínimo de coerência, pois não?
Diante desse cenário, não é de se duvidar que, adiante, venha a ocorrer a repristinação de um projeto de lei já rejeitado em sessão legislativa do passado, aquele que propunha que, no âmbito das relações do trabalho, tudo o que fosse acordado, individual ou coletivamente, deveria prevalecer sobre o legislado. Se acontecer, será o par-de-cal sobre o desmonte do direito social do trabalho.
Nessa hipótese, não há como recuar à procura de um lugar seguro na casa, que não somente será totalmente tomada como desmontada, e seus ocupantes expulsos definitivamente. Numa palavra: seria o fim do próprio direito do trabalho. Com um diferencial. Diferentemente do conto de Júlio Cortázar, não haverá dúvidas quanto à identificação do agente responsável.
[1] PL 4330/04
[2] Em síntese, a Súmula 331 do TST estabelece como ilícita a contratação de trabalhadores por empresa interposta, salvo no caso de trabalho temporário regulado pela Lei n. 6.019/74, independentemente de se tratar atividade fim ou meio, sem qualquer tipo de restrição, além de considerar lícita a terceirização na contratação de serviços de vigilância, de conservação, de limpeza, bem como de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador (telefonia, copa, portaria, informática etc).
[3] Há estatísticas que comprovam que é no âmbito dos serviços terceirizados que ocorrem a maioria dos acidentes do trabalho, justamente pelo seu caráter precário, o que incluí a ausência de fiscalização quanto à observância das noras de proteção e segurança no trabalho.