Por Francisco Meton Marques de Lima (*)
(*) Desembargador do TRT da 22ª Região e professor da Universidade Federal do Piauí
Diz a crença popular que o diabo mais perigoso é o demônio batizado, porque não teme a cruz nem a oração. Batizado é o cristão que caiu e se tornou um danado.
A ditadura é como o demônio, vem disfarçada de todos os modos, os que lhe convém para ludibriar os incautos cidadãos. Ora aparece sob o estereótipo de besta-fera, ora de anjo. O que importa é enganar.
Numa nação amordaçada pela apatia, pela indiferença, pelo medo de falar, anestesiada pela bebida e pelas drogas, alienada pela péssima música, pela compra oficial das consciências, ninguém grita nem quer ouvir o clamor de outrem. Nesse deserto sem eco, arrisco uma costela e emito algumas impressões.
Um episódio ganhou as páginas dos jornais nos últimos dias. O Ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar nos autos de ADI movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros, no sentido de que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não puna juízes antes do devido processo perante as Corregedorias dos seus Tribunais. No mesmo sentido, o Ministro Lewandowsk suspendeu determinação da Corregedoria do CNJ que mandava quebrar sigilo fiscal e bancário de milhares de juízes, sem um devido processo legal prévio. Portanto, nada mais fizeram suas excelências, do STF, que reatar a ordem constitucional acintosamente violada pela sanha arbitrária da Corregedoria do CNJ, a qual arrebata as competências originárias e profana os princípios mais caros de todas as democracias do mundo, os da ampla defesa, do contraditório e do duplo grau de jurisdição.
No entanto, causou estranheza órgãos da imprensa e a OAB alinharem-se de afogadilho ao lado do ilegal e do arbítrio e contra as decisões restauradoras da ordem democrática. Em qualquer nação séria do mundo, não se ousaria pôr em xeque as decisões da mais alta Corte de Justiça do País, mormente quando estas restauram a ordem constitucional transgredida.
A quem interessa uma magistratura fragilizada? Ao mesmo interesse por uma imprensa amordaçada. Pois são as duas instituições que mais incomodam o arbítrio e que mais socorrem a sociedade e o cidadão nas agruras das ditaduras. São os profissionais da imprensa e da justiça que mais sofrem as censuras e os castigos dos regimes arbitrários, exatamente por se postarem à frente dos perseguidos. Nos regimes de chumbo, são os magistrados que põem suas cabeças a prêmio.
Carl Schimit advertia em seu livro Teoria da Constituição, publicado em 1928, que a Constituição democrática da Alemanha, de 1918, era tão democrática que trazia o germe da ditadura. Foi o que aconteceu. A dita Constituição abriu as portas à aventura do Nazismo, a pior experiência humana. E a imprensa esteve ao lado desse desastre. No Brasil, em minúsculo exemplo, comparado ao sinistro tedesco, a grande imprensa também apoiou a instalação da ditadura militar de 1964. Depois, sofreu o rescaldo dessa fogueira maldita.
Estranhamente, um fenômeno se verifica. O Governo subornou os pobres, corrompeu as lideranças, cooptou os empresários e dominou setores da grande imprensa. Felizmente, graças ao regime democrático, não conseguiu calar os profissionais da comunicação e os órgãos sérios da imprensa, que continuam com espaço aberto ao bom debate.
O povo está à deriva, sem lideranças sociais, sindicais e políticas. Mas o que mais preocupa é a tomada de posição de órgãos destacados da imprensa, sem forças para censurar, caudatários das políticas centralistas do governo. Assim é que, setores da imprensa voltam-se contra a magistratura, exatamente a última trincheira da cidadania. Isto sem prévio conhecimento do que realmente esta acontecendo. Hay magistrados, soy contra! Simplesmente é a favor do arbítrio do CNJ é pronto! Com efeito, sem medo da afirmação, os juízes são os servidores públicos que mais trabalham neste País das Maravilhas, que a mais sacrifícios pessoais e familiares estão submetidos. Em qualquer comunidade, o magistrado é o profissional mais acreditado e respeitado. É na magistratura que se registra o menor índice de corrupção de todo o serviço público.
Surpreende também a OAB, que sempre somou às causas democráticas, destilar seu ódio contra a magistratura, exatamente sua consorte nos tempos de chumbo. Destarte, estranha-se que a OAB, que seria a maior defensora do devido processo legal, das garantias constitucionais da ampla de defesa, da presunção de inocência até que haja um mínimo de apuração dos fatos, empunhe a bandeira da jurisdição única, arbitrária, kafkiana do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra os magistrados.
Ora, aos piores bandidos a OAB defende ampla defesa, contraditório, inúmeros graus de jurisdição, no que está certa. Aos magistrados, no entanto, a forca, sem prévio processo. Basta o sacrossanto CNJ fazer seu divino (pré)juízo. Exatamente contra a instituição menos “bichada da sociedade”. Aos advogados, é assegurado o sigilo do processo disciplinar. Para os magistrados, a OAB brada por uma devassa pública, julgamento por um órgão único, de composição política, uma espécie de tribunal de exceção, que não respeita nem a Justiça, restando a essas almas penadas o socorro único do STF, na pena de alguns corajosos Ministros.
A Justiça, a verdadeira, não a justiça política, com todos os seus percalços, ainda é o grande dique de proteção da cidadania, funciona como o muro das lamentações de todos os que sofrem as injustiças do arbítrio governamental e dos órgãos sociais. São os juízes que arriscam suas vidas fazendo valer a lei; que sacrificam suas férias, seus finais de semana e o que seria repouso noturno em favor das causas que lhes são submetidas. Há desvios de conduta, sim. Mas como exceção. De 16 mil juízes apurou-se algo contra menos de 5%, e comprovou-se algo contra menos de 1%. Portanto, é um atestado de lisura da categoria. Ao contrário de outras classes profissionais, em que o índice é assustador.
A quem agrada fragilizar a Justiça? Com efeito, uma magistratura forte não interessa ao arbítrio dos governos, aos corruptos, aos delinqüentes profissionais e aos que lhes dão suporte.
Cumpre esclarecer, que o CNJ não foi concebido para julgar ninguém nem para subjugar os magistrados. Trata-se de um órgão politicamente composto, com a nobre missão de velar pelo bom andamento da Justiça, aparelhando-a, apoiando suas ações e, por fim, reprimindo os maus exemplos. Nunca, porém, para substituir os Tribunais e suas Corregedorias. Diria eu que a Corregedoria do CNJ deve cingir-se a correicionar as Corregedorias dos Tribunais, contra eventuais leniência e/ou corporativismo, respeitando, com isso, sem se omitir, a autonomia dos tribunais, conferida pelo Poder Constituinte Originário. Por sua vez, deve agir como órgão da Justiça, com discrição, seriedade e dentro dos limites constitucionais, integrador dos valores do Judiciário. E não como um órgão político, desintegrador e de propaganda deletéria do órgão pelo qual deve velar. Destarte, a magistratura não está contra o CNJ, ao contrário, tem-lhe o maior respeito e acatamento. A magistratura põe-se contra o arbítrio, a invasão de competência, a transgressão dos princípios constitucionais, venham de onde vier, esse é seu papel.
Repito, a sociedade brasileira está refém de uma democracia disfarçada, que corrompe o povo com a esmola “dos bolsa”, em vez de promover o desenvolvimento e trabalho; as lideranças sindicais e as sociais nos cabides de emprego; as lideranças políticas nos ganchos do orçamento público; os empresários nos financiamentos oficiais; as Igrejas, nas múltiplas isenções; humilha os funcionários públicos no arrocho salarial; e promove contra a classe média um assalto fiscal. Tornamo-nos uma sociedade democrática de boca arrolhada, em que ninguém grita, ou que o grito não tem eco. Ninguém tem coragem de criticar, ou a crítica vai custar caro.
Exorta-se para que toda a Imprensa e a OAB, parceiras da Magistratura nos momentos difíceis, também não sucumbam nos tentáculos do polvo maldito.
A ditadura ronda. Agora, disfarçada de democracia. O diabo na forma de anjo. Pior. Um demônio batizado, que zomba da cruz e das orações. Orai e vigiai!