“Criamos uma nova categoria no Brasil, chamada trabalhadores autônomos com direitos”, celebrou o presidente Lula ao enviar ao Congresso Nacional, na segunda-feira 4, o Projeto de Lei elaborado pelo Executivo que estabelece regras para o trabalho de motoristas de aplicativo. O envio do PL, que tramitará em regime de urgência e deve ser votado pela Câmara em um prazo máximo de 45 dias, foi igualmente celebrado por trabalhadores e plataformas que operam no setor, após a conclusão em consenso de um processo de negociação tripartite, que se estendeu desde o início do atual governo. Empolgado, Lula disse ter recomendado ao ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que enviasse o projeto ao presidente dos EUA, Joe Biden, “para mostrar ao mundo o que é possível fazer”.
Embora faça sentido do ponto de vista político, afinal trata-se de fato de uma tentativa de regulação nacional inédita para os chamados “trabalhadores plataformizados”, a festa em torno do PL ofusca o fato de que a propalada “autonomia com direitos” consolida mais um rebaixamento das conquistas que os trabalhadores no Brasil obtiveram desde o governo de Getúlio Vargas. Mesmo ao conceder aos motoristas de aplicativo direitos como o pagamento mínimo por hora trabalhada ou a contribuição ao INSS, entre poucos outros, a regulamentação os deixa fora da alçada da Consolidação das Leis do Trabalho e aprofunda a precarização iniciada com a reforma aprovada em 2017 no governo de Michel Temer.
Em paralelo, o Supremo Tribunal Federal, a partir do entendimento em plenário virtual de que um caso analisado naquela Corte é matéria de repercussão geral, prepara-se para decidir se existe vínculo empregatício entre os motoristas e as empresas que administram e operam as plataformas virtuais de transporte. Segundo o IBGE, no fim de 2022 cerca de 1,5 milhão de brasileiros trabalhavam para aplicativos, dos quais 780 mil atuam no transporte de passageiros, número que pode ter dobrado no ano passado. Em decisões recentes, o STF tem seguido a tendência de não reconhecer esses vínculos, posição que vai de encontro à compreensão das entidades ligadas à Justiça do Trabalho, mas que, ao criar jurisprudência, provocará efeito cascata que deverá atingir de imediato categorias ainda não regulamentadas, como os entregadores de aplicativos, e podem até mesmo ameaçar conquistas de outras categorias que hoje têm salário regular. Ou seja, desde a criação do salário mínimo, em 1940, na Era Vargas, os trabalhadores brasileiros não se encontram tão fragilizados.
A proposta enviada pelo governo para regulamentar o trabalho de motoristas de aplicativo prevê o pagamento mínimo de 32,10 reais por hora trabalhada e determina que a jornada de trabalho não ultrapasse as 12 horas diárias por plataforma. Para o recolhimento à Previdência, as plataformas vão contribuir com 20% dos valores referentes à remuneração, e os motoristas com 7,5%. “O governo fala em trabalhadores autônomos com direitos. Mas, na verdade, não são os direitos trabalhistas propriamente ditos, conquistados pela classe trabalhadora ao longo de décadas, e sim migalhas que satisfazem o poder econômico na medida dos seus interesses. Tanto que a Uber aplaude a iniciativa”, observa o juiz do trabalho Jorge Luiz Souto Maior. A empresa divulgou nota na qual afirma que o PL “amplia a proteção desse modelo de trabalho sem prejuízo da flexibilidade e da autonomia”. E também pediu ao STF a extinção de cerca de 10 mil processos sobre vínculo empregatício em trâmite nos tribunais inferiores.
“Houve um retrocesso muito grande”, avalia Souto Maior. “Há uma tendência agora, e isso vai se verificar nos modelos semelhantes de contratação de trabalhadores, atingindo hospitais, comércio, veículos de imprensa.” Bastará, segundo o magistrado, criar um aplicativo que faça a intermediação da mão de obra, para que as obrigações do empregador deixem de existir. “Consequentemente, passa a ser-lhe possível do ponto de vista legal, o que é muito grave, explorar o trabalho sem qualquer limite. Estamos retomando uma fórmula do século XVIII. E com um discurso enviesado e negacionista num tema que é de crucial interesse para a sociedade como um todo, mas, sobretudo, para a classe trabalhadora.”
Em resposta conjunta enviada por e-mail à reportagem, o presidente da Associação Nacional dos Procuradores e Procuradoras do Trabalho, a ANPT, José Antonio Vieira de Freitas Filho, e a vice-presidente da entidade, Lydiane Machado e Silva, dizem que o projeto representa “um pequeno primeiro passo rumo à indispensável, adequada e integral proteção trabalhista e previdenciária dos trabalhadores a que se refere”, mas advertem: “Seja pelo alcance reduzido, seja pela possibilidade de interpretação deturpada quanto à exclusão do vínculo empregatício, é bastante preocupante e pode não atingir sua finalidade social, não sendo, portanto, suficiente”.
Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, a Anamatra, Luciana Conforti afirma sempre haver preocupação quando se fala em uma nova categoria, porque isso pode trazer diminuição de direitos: “Um exemplo é essa questão da jornada diária de oito horas, podendo chegar a 12. Se os motoristas de aplicativo não são exclusivos, nos perguntamos como vai haver o controle dessas 12 horas diárias se o trabalhador pode estar vinculado a mais de uma plataforma. Da mesma forma, não se definiu se o tempo de espera entre uma corrida e outra será remunerado. São questões práticas que só veremos mais para a frente”.
As entidades buscam reverter o esvaziamento da Justiça do Trabalho provocado pelas sucessivas decisões do STF. “Entendemos que qualquer relação de trabalho é competência da Justiça do Trabalho, determinada pela Constituição. O PL não trata disso, mas dizer de saída que os motoristas de aplicativo são autônomos é preocupante, porque essa determinação, se há ou não um vínculo, cabe à Justiça do Trabalho”, avalia Luciana Conforti. A juíza diz temer que, a partir desse exemplo, se possa dizer que qualquer trabalhador plataformizado é autônomo. “Muitos serviços hoje são plataformizados, então não teremos mais trabalho pela CLT?”, indaga.
Já os dirigentes da ANPT lamentam que a competência da Justiça do Trabalho, “embora tenha origem constitucional, está sendo afastada por força de reiteradas reclamações que têm sido admitidas pelo STF, a despeito da falta de aderência estrita entre determinada situação concreta e a tese jurisprudencial vinculante”. Freitas Filho e Lydiane Silva acrescentam que a Justiça do Trabalho “é fundamental à efetivação do Direito do Trabalho, que, por sua vez, é imprescindível à preservação e ao robustecimento de um Estado Democrático e Social de Direito capaz de assegurar a dignidade dos trabalhadores e das trabalhadoras”.
Há um ano, em sua mais recente decisão no sentido de permitir formas de relação entre empregadores e empregados alternativas ao estabelecido pela CLT, o STF, na figura do ministro Alexandre de Moraes, anulou um acórdão do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro que reconhecia vínculo empregatício em uma relação de franquia. Outros seis integrantes da Suprema Corte também já se manifestaram contra o reconhecimento de vínculos empregatícios em situações anteriores. Para José Dari Krein, professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit), “o Supremo, nos últimos tempos, teve uma função importante de preservar a democracia, mas do ponto de vista dos direitos sociais tem uma visão eminentemente liberal-conservadora que joga contra o trabalho decente e a perspectiva de proteção e inclusão dos trabalhadores”.
Krein avalia que a grande novidade que o trabalho da plataforma trouxe às relações de trabalho foi possibilitar às empresas organizar atividades econômicas que mobilizem um contingente expressivo de trabalhadores sem nenhuma responsabilidade social, trabalhista e previdenciária. Segundo o especialista, vivemos o ápice de um processo de reformas laborais na perspectiva de ampliar as liberdades de as empresas manejarem a força de trabalho de acordo com suas necessidades: “São empresas que não têm capital fixo e usam como instrumento de trabalho quem presta o serviço, que é o trabalhador plataformizado”. Outro fenômeno, acrescenta, é a ausência de oportunidades de trabalho de qualidade: “Tem muito mais gente disponível para trabalhar do que ocupações de qualidade sendo oferecidas. A ausência de alternativas cria um mercado de trabalho em que grande parte das pessoas ocupadas está numa condição muito precária e vulnerável, com baixos salários. Esse mar de precariedade faz com que muitos optem por se inserir nesses trabalhos de plataforma”. A dúvida, emenda Krein, é se a aprovação do PL “ajuda a proteger os motoristas de aplicativo ou abre brechas para um rebaixamento geral dos direitos trabalhistas”.
Realizada há sete anos, a reforma proposta por Temer e seu ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, é apontada como um marco na precarização do trabalho: “A reforma de 2017, como era facilmente presumível, não cumpriu qualquer das suas inúmeras promessas. Em verdade, aprofundou a precarização das condições de trabalho, afastou os trabalhadores do sistema de proteção dos direitos sociais e permitiu a terceirização irrestrita”, dizem Freitas Filho e Lydiane Silva. Segundo os dirigentes da ANPT, “o índice de desemprego aumentou, os trabalhadores foram entregues às drásticas consequências socioeconômicas da informalidade e as entidades sindicais foram enfraquecidas”.
Souto Maior diz que o objetivo da reforma nunca foi propiciar a geração de empregos, e sim aumentar os lucros das empresas por meio de maior exploração do trabalho. Nisso, avalia, ela foi muito bem-sucedida: “Conseguiu redução de salários e do custo de trabalho graças a mecanismos de flexibilização. O aumento da participação da classe trabalhadora no PIB diminui e a das grandes empresas cresce enormemente. A reforma retirou da classe trabalhadora o ganho pelo trabalho”, avalia. Segundo o juiz, o Brasil vive um processo acelerado de acumulação da renda nas mãos dos mais ricos e o ambiente de trabalho ficou muito mais penoso para a classe trabalhadora como um todo, exatamente por conta dos direitos que vão deixando de existir.
Para Luciana Conforti, da Anamatra, a promessa de que a reforma trabalhista iria proporcionar maior liberdade às negociações coletivas tampouco foi cumprida: “Qual aumento de negociações estamos vendo? Ao contrário, tivemos uma decisão do Supremo dizendo que tinha de haver uma contribuição para o financiamento das entidades sindicais, mas no dia seguinte apresentaram um Projeto de Lei para impedir a cobrança dos não sindicalizados. O Congresso continua na intenção de esvaziar os sindicatos, aniquilando a possibilidade de um sindicalismo forte, que realmente negocie”. José Dari Krein também menciona a fragilização do movimento sindical como consequência direta da reforma: “A queda da taxa de sindicalização pós-reforma trabalhista é uma coisa impressionante, atingindo em alguns setores 40% de média, de 2017 a 2022. Têm de existir sindicatos, assim como é importante a valorização do salário mínimo”.
Aos poucos, o governo tenta criar um ambiente político propenso à volta da contribuição sindical. Nas últimas semanas, o ministro Luiz Marinho tem se reunido com parlamentares das frentes de Comércio e Empreendedorismo para pedir apoio a uma proposta que prevê uma taxa de contribuição extraída de acordos de reajustes salariais obtidos pelos sindicatos junto às empresas. A ideia vem sendo incorporada às discussões sobre as regras de trabalho nos feriados – o ministro prorrogou por 90 dias a suspensão da portaria que dificulta o trabalho nesses dias. Não há sinal, entretanto, de que a proposta venha a prosperar na atual composição da Câmara: “Não há compromisso da nossa parte com a aprovação do projeto”, resume o deputado Domingos Sávio, do PL. Procurado por CartaCapital, Marinho não deu retorno até a conclusão desta reportagem.
Apesar das preocupações generalizadas com a perda de direitos trabalhistas, o sentimento é de vitória entre os trabalhadores que participaram do processo de negociação que culminou na apresentação do PL dos motoristas de aplicativo: “O Brasil tornou-se um exemplo para o mundo. O debate da proteção aos trabalhadores por aplicativos e plataformas é mundial. Este é o primeiro caso que conheço de um país que regulamenta por meio de lei a proteção a esses trabalhadores”, avalia Sérgio Nobre, presidente nacional da CUT. Para Wagner Menezes, secretário nacional de Transportes e Logística da central sindical, o foco agora será na pressão sobre o Congresso: “Já estamos nos articulando com lideranças dos trabalhadores e sindicatos para conversar com os líderes de bancadas e cobrar a aprovação do projeto. Mas é preciso que todos os trabalhadores se empenhem nessa mobilização”.
Menezes avalia que a aprovação do PL será “um avanço importantíssimo para a classe trabalhadora não só na questão salarial, mas também na social. A categoria precisava dessa regulamentação”. Segundo o sindicalista, o próximo passo é regulamentar o trabalho dos entregadores de comida por aplicativo: “Sabemos das condições precárias e da exploração que as plataformas exercem sobre esses trabalhadores”. Presidente do Sindicato dos Motoristas de Aplicativos do Estado de São Paulo, Leandro Cruz afirma ter gostado do resultado final das negociações entre governo, plataformas e empregados: “O trabalhador queria autonomia com direitos, e isso está contemplado no PL. Estamos regulamentando uma profissão que hoje não existe, isso é importante para nós”. Sobre o vínculo empregatício, Cruz diz esperar a decisão do STF: “Está nas mãos do Judiciário”.
Em relação aos entregadores de comida, Lula e Marinho prometeram uma definição “em breve”. Na cerimônia de apresentação do projeto, o presidente disse esperar que “agora outros setores sentem à mesa” e fustigou as empresas: “A iFood não quer negociar, mas vamos encher o saco deles”. Marinho também mencionou a Mercado Livre como exemplo de companhia inflexível: “As empresas dizem que o padrão de negociação não cabe em seu modelo de negócio”, lamentou o ministro. Em nota, o iFood afirma “não ser verdadeira a fala do ministro” e garante “querer negociar uma proposta digna para os entregadores”. A empresa diz que “participou ativamente do grupo de trabalho formado para discutir o tema”. Já a Mercado Livre afirma que, “diferentemente do que foi dito, está aberta ao diálogo e atua de diferentes formas nessa agenda setorial”.