O Supremo Tribunal Federal (STF) tem em sua agenda da próxima quinta-feira (08), um aguardado julgamento sobre a existência de vínculo empregatício, nos moldes previstos pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), entre um entregador e a plataforma Rappi.
Para além de bater o martelo sobre este caso específico, os dez dos 11 ministros da corte que vão participar da sessão — Flávio Dino ainda não tomou posse — podem definir o futuro do trabalho por aplicativos no país. O tema é para lá de controverso e até hoje não foi objeto de regulamentação efetiva nem pelo Congresso Nacional, nem pelo governo federal.
Mais do que cravar se a relação entre trabalhadores e aplicativos deve ou não obedecer às regras da CLT, o julgamento de quinta-feira pode até mesmo retirar da Justiça do Trabalho a competência de analisar casos semelhantes.
Ao longo do ano passado, ministros do STF derrubaram em medidas individuais diversas decisões de magistrados trabalhistas que mandavam plataformas assinarem a carteira de motoristas e entregadores. Numa tentativa de pacificar o entendimento sobre o tema, Alexandre de Moraes remeteu a análise de uma ação envolvendo a Rappi ao plenário da corte, para que todos os ministros possam se pronunciar.
'Esvaziamento da Justiça do Trabalho'
Se prevalecer o entendimento de que as plataformas são meras "intermediadoras" entre prestadores de serviço e consumidores finais, as queixas de motoristas e entregadores deixarão de ser uma questão trabalhista e passarão a ser apreciadas pela chamada "Justiça comum".
"Isso seria um esvaziamento muito profundo da nossa competência, garantida pela Constituição", afirma Luciana Conforti, presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra).
Na prática, isso quer dizer que um contrato firmado por um entregador de aplicativo e uma plataforma seria tratado da mesma maneira que um compromisso de compra e venda de um produto assinado por um vendedor e um consumidor.
Outra possibilidade é a de que os ministros do STF decidam pela não existência de vínculo empregatício, como previsto na CLT, mas se manifestem pela necessidade de criação de uma legislação específica sobre o tema. Nesse caso, a Justiça do Trabalho manteria sua prerrogativa de julgar processos sobre esse tema.
Em nota enviada à coluna, a Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia) -- entidade representativa das plataformas líderes de mercado, como Uber e iFood -- afirma que "o formato estabelecido pela CLT não se adequa à realidade de trabalho criada pelas plataformas tecnológicas" e acrescenta que "há várias decisões judiciais neste sentido".
O texto informa ainda que a entidade "defende a construção de um modelo regulatório do trabalho intermediado por plataformas tecnológicas".
'Trabalho em apps não tem nada a ver com terceirização'
Para derrubar as decisões da Justiça do Trabalho que apontam vínculo empregatício de plataformas com motoristas e entregadores, os ministros do STF comumente usam um entendimento de 2020 da instância máxima do judiciário que libera as terceirizações. Geralmente, esse argumento é combinado com a justificativa de que nem toda relação de trabalho precisa ser protegida de acordo com o que manda a CLT.
O tema, inclusive, gerou uma crise entre a suprema corte e a Justiça do Trabalho. Em dezembro, o ministro Luiz Fux subiu o tom e chegou a mandar ofício ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que o órgão abrisse investigações disciplinares contra magistrados trabalhistas por descumprimento do precedente do STF que reconhece outras modalidades de trabalho, para além da CLT.
"A questão é que os juízes do Trabalho não estão dizendo que não concordam com o precedente do STF que liberou a terceirização. O que eles estão dizendo é que a relação entre plataformas e trabalhadores não tem nada a ver com esse precedente", explica a presidente da Anamatra.
Por lei, para haver uma terceirização, é preciso haver três partes: o trabalhador, a empresa tomadora e a empresa prestadora do serviço. "Isso é contrário até à alegação das próprias plataformas, porque elas dizem que não terceirizam nada, elas dizem que apenas intermediam", complementa Luciana Conforti.
O julgamento de quinta-feira é exemplo de uma estratégia adotada pelas plataformas nos últimos anos. Para evitar que os processos movidos por entregadores e motoristas sejam analisados pela segunda e pela terceira instância da Justiça do Trabalho, as empresas vêm pulando etapas e recorrendo de decisões de primeiro grau diretamente ao STF.
Segundo os críticos dessa estratégia, a suprema corte não tem estrutura e nem vocação para analisar esses pedidos. O ministro Edson Fachin é relator de um processo em que se discute a constitucionalidade dessas apelações feitas pelos aplicativos.
Na avaliação de Lydiane Machado e Silva, vice-presidenta da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), também entende que o julgamento de quinta-feira vai além da discussão sobre vínculo empregatício e tem como pano de fundo justamente a atuação da Justiça do Trabalho.
"O art. 114 da Constituição da República de 1988 estabelece que é a Justiça do Trabalho o foro competente para analisar as questões correlatas às relações de trabalho", afirma a procurador. "Ou seja, se a alegação inicial for a de existência de vínculo de emprego, é essa Justiça especializada que tem o condão de, à luz da legislação, dizer se há ou não a referida modalidade de contrato", finaliza.