Uma análise a partir da obra de Charles W. Mills Crédito: Unsplash
Em 1997, Charles W. Mills escreveu o livro O contrato racial, abertamente inspirado no livro O contrato sexual, de Carole Pateman, e com quem escreveu posteriormente o livro Contrato e dominação.
Partindo da ideia de contrato social formulado por Jean-Jacques Rousseau, e também trabalhada por Hobbes, Kant, Locke, entre outros, onde pessoas iguais acordaram em estabelecer uma sociedade civil e um governo, e que todos nós aprendemos no curso de Direito, Charles W. Mills afirma que esse contrato não é um contrato feito por nós o povo, mas por nós o povo branco. Ele explica que o contrato social, teoria desenvolvida durante a colonização europeia sobre outros continentes, serviu tão somente para justificar os direitos, liberdades e autonomia do homem branco, conquanto os não-brancos eram nem sequer considerados humanos, sujeitos de direito, e por isso passíveis de dominação e exploração.
Mills defende ainda que ao longo dos séculos o contrato racial foi reescrito visando a continuidade da supremacia branca, ainda que não mais europeia, por diferentes mecanismos, não tão expressos quanto anteriormente, mas igualmente segregadores.
As pessoas brancas, especialmente homens brancos, são os herdeiros responsáveis pela manutenção desse contrato que é social, político e econômico, na medida que pessoas brancas ainda são as principais detentores do poder econômico e os responsáveis pela criação de leis que regulam, entre outras coisas a propriedade, dizendo quem pode ter o quê e o porquê.
Assim, a segunda fase do contrato racial consiste no que Mills chama de epistemologia da ignorância. Se antes a diferenciação racial era expressa e fundamentada com cientificismo, agora ela é feita por meio do silêncio, por uma suposta igualdade jurídica formal, igualdade em abstrato, mas que desconsidera a realidade de anos de privilégio branco. Dessa forma, não ver a raça é um ato racial em si mesmo, servindo a manutenção do status quo da branquitude.
Desde o ano passado o trabalho escravo vem tomando espaço na mídia. Primeiro com o podcast A mulher da casa abandonada que conta a história de uma brasileira que foi condenada nos Estados Unidos por manter uma mulher em trabalho escravo. Este ano tomou os noticiários a descoberta de mais de 200 trabalhadores terceirizados que trabalhavam em condições análogas à de escravo em vinícolas do Rio Grande do Sul, em seguida foi descoberta situação semelhante no interior de Goiás, São Paulo e Minas Gerais[1].
Essas histórias que têm em comum a escravidão contemporânea e a impunidade, perpassam também por dois julgamentos do STF, o sobre a competência criminal da Justiça do Trabalho e sobre terceirização, que demonstram bem como opera o Contrato Racial.
Primeiro a competência criminal. A Emenda Constitucional 45/2004 alterou a Constituição para, entre outras coisas, ampliar a competência da Justiça do Trabalho para julgar ações oriundas da relação de trabalho, bem como outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. Contra esse texto a PGR apresentou ADI deixando clara a sua preocupação principalmente no tocante à indevida abrangência de questões de natureza penal, decorrentes de relação de trabalho, pretendendo afastar qualquer sentido conducente ao exercício de competência criminal pela Justiça do Trabalho. Apontou que, além de aspectos formais de aprovação de uma EC, o direito do réu ser julgado pelo juízo natural, bem como um conflito de normas entre o art. 114 e o 109 da CF que dispõe sobre a competência da Justiça Federal para julgar as ações contra a organização do trabalho. Nesse ponto é importante destacar que mesmo no Código Penal, o crime de redução à condição análoga à de escravo trata-se de crime contra a liberdade individual e não contra a organização do trabalho.
Na condição de amici curiae, a ANPT e a Anamatra argumentaram que tal competência seria residual, não abarcaria os crimes contra a organização do trabalho e que os magistrados e procuradores do trabalho teriam mais condições de julgar tais casos, o STF entendeu que a competência seria da Justiça Federal, lançando mão de argumentos supostamente garantistas como do juízo natural, como se a competência não fosse algo definido pela Constituição antes mesmo do processo, ou como se o entendimento não fosse diverso em relação a crimes eleitorais, justamente em razão da agilidade e especialização da Justiça Eleitoral[2].
O Contrato racial operou no julgamento na medida em que todos os atores deixaram parte da realidade de fora do julgamento, a realidade é que nos casos de redução à condição análoga à de escravo é que quem comete o crime é geralmente branco e a vítima é negra. A Justiça do Trabalho, ainda que majoritariamente branca, é norteada pela defesa do hipossuficiente na relação de trabalho, que nos casos de trabalho escravo são em sua maioria negros. Contudo, a perspectiva da Justiça Federal não é a mesma, como fica evidente em recente reportagem do Intercept que mostra que em julgamento os desembargadores do TRF1 consideraram que os fiscais do Ministério Público do Trabalho são muito ardorosos, não tem a menor noção do que é o trabalho no meio rural, um exagero[3]. Ou seja, enquanto o estado trabalha arduamente para punir crimes cometidos por negros, prendendo-os as vezes só por serem negros, com homens brancos o punitivismo estatal é altamente contido, se o crime for contra negros, a punição é quase inexistente. Como apontou o ministro Lelio Bentes Corrêa em recente entrevista[4], não há uma pessoa presa no país por reduzir alguém à condição análoga à de escravo. O crime compensa a depender da cor do criminoso e de sua vítima.
De outro lado temos o julgamento sobre a terceirização. O STF considerou lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas[5], mesmo quando presente todos os elementos caracterizadores da relação de emprego. A OIT tem como princípio fundamental de que trabalho não é mercadoria[6], contudo o produto que as empresas terceirizadas vendem é justamente o trabalho humano, são gerenciadoras de mão de obra, assim como os capitães do mato. Como dito acima, os trabalhadores resgatados pelo MPT trabalhavam como terceirizados. Não é coincidência, a divisão produtiva mitiga a resistência dos trabalhadores e a consciência de classe, como aumenta a vulnerabilidade e a exploração, além de dificultar a responsabilização dos beneficiários da força de trabalho. Nesse julgamento, mesmo com inúmeros dados de como a terceirização precariza o trabalho e expõe os trabalhadores a mais riscos, o STF reconheceu a liberdade dos agentes econômicos, brancos, e afirmou que a terceirização não enseja por si só a precarização do trabalho[7].
Ou seja, basicamente o STF reconheceu o caráter precarizante da terceirização, mas não necessariamente porque quem está no topo do mercado de trabalho não é tão afetado por esse modelo de divisão do trabalho. Em outras palavras, aplicou a epistemologia da ignorância e deixou de falar sobre quem é mais afetado pela terceirização, qual a cor dessas pessoas, se em pleno século 21 é razoável acreditar em igualdade formal, mesmo sendo um fato histórico que pessoas negras foram escravizadas justamente por atores econômicos e até hoje sofrem com a exploração, a exclusão social, econômica e jurídica.
A certa altura de Wills fala que o peixe não vê a água, e brancos não veem a natureza racial da política branca porque é natural para eles, o elemento por meio do qual eles se movem[8]. Não é possível afirmar se os ministros do STF sofrem de cegueira, mas não ver a raça, ou torná-la uma questão marginal ao trabalho quando inegavelmente é central, é um ato racial em si mesmo. No laissez faire não há lugar para a emancipação daqueles que foram historicamente excluídos, não há lugar para a emancipação racial, não há lugar para a justiça social.
Apontar o contrato racial que é subliminar, está nas entrelinhas do contrato social, e que por outro lado é a realidade inequívoca, é reconhecer não só a realidade, como a importância de teóricos negros, muito bem representados no Brasil por pessoas como Silvio Almeida, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, e também dizer ao Direito do Trabalho: Vamos lá, amigão, levanta.
[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023 03/terceirizacao-favorece-o-trabalho-analogo-ao-escravo-no-pais
[2] https://www.conjur.com.br/2021-jun-01/romulo-moreira-competencia-criminal-justica-eleitoral
[3]https://www.intercept.com.br/2023/04/03/exagero-e-realidade-rustica-leia-o-que-escrevem-desembargadores-e-juizes-ao-inocentar-patroes-acusados-de-trabalho-escravo/
[4] Disponível em:
[5] RE 958252 Tema 725 da tabela de repercussão geral.
[6]https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/americas/ro-lima/ilo-brasilia/documents/genericdocument/wcms_336957.pdf
[7] Ementa: Direito do Trabalho. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Terceirização de atividade-fim e de atividade-meio. Constitucionalidade. 1. A Constituição não impõe a adoção de um modelo de produção específico, não impede o desenvolvimento de estratégias empresariais flexíveis, tampouco veda a terceirização. Todavia, a jurisprudência trabalhista sobre o tema tem sido oscilante e não estabelece critérios e condições claras e objetivas, que permitam sua adoção com segurança. O direito do trabalho e o sistema sindical precisam se adequar às transformações no mercado de trabalho e na sociedade. 2. A terceirização das atividades-meio ou das atividades-fim de uma empresa tem amparo nos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, que asseguram aos agentes econômicos a liberdade de formular estratégias negociais indutoras de maior eficiência econômica e competitividade. 3. A terceirização não enseja, por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do trabalhador ou desrespeito a direitos previdenciários. É o exercício abusivo da sua contratação que pode produzir tais violações. ()
(ADPF 324, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-194 DIVULG 05-09-2019 PUBLIC 06-09-2019)
[8] Tradução livre de The fish does not see the water, and whites do not see the racial nature of a white polity because it is natural to them, the element in which they move. Página 76.
Anna Clara Gontijo Balzacchi