Golpistas sobem rampa do Palácio do Planalto durante invasões em Brasília.
"[...] Não preciso dizer o que estou pensando, ou o que está em jogo. Você sabe como você deve se preparar, não para um novo Capitólio, ninguém quer invadir nada. Mas sabemos o que temos que fazer antes das eleições" (Jair Bolsonaro, live do dia 7/7/2022 )
A data de 8/1/2023 definir-se-á, doravante, como o dia brasileiro da vergonha. Estará marcada na História do Brasil como a data em que terroristas domésticos pretenderam, com a complacência de algumas figuras públicas, civis e militares, implementar um golpe de Estado empregando ações violentas e destrutivas contra pessoas e coisas nas sedes dos três Poderes e em suas imediações.
"Terroristas", a propósito, é definição típico-penal que talvez não se ponha, à luz dos estritos termos do art. 2º da Lei 13.260/2016 (que estabelece, como elementar do tipo penal de terrorismo, uma especial intenção de agir, a saber, "por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião"); mas certamente se põe, se tomarmos em conta o sentido recorrente da expressão nos usos do direito internacional público e dos tratados internacionais, como, p. ex., a Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo (Assembleia Geral das Nações Unidas, 9.12.1999; Brasil, Decreto n. 5.640/2005), que compreende ato terrorista como qualquer ato "com intenção de causar a morte de ou lesões corporais graves a um civil, ou a qualquer outra pessoa que não participe ativamente das hostilidades em situação de conflito armado, quando o propósito do referido ato, por sua natureza e contexto, for intimidar uma população, ou compelir um governo ou uma organização internacional a agir ou abster-se de agir" (art. 2º, "b"). Ademais, também será uma expressão apropriada se, à maneira do que já ensaiam alguns penalistas, as autoridades judiciárias brasileiras compreenderem, em sede de interpretação extensiva - admissível em direito penal, por não configurar analogia "in malam partem" -, que os atos de vandalismo do último dia 8, ao tempo em que pretendiam subverter a ordem política democrática, expressavam também todo o ódio das hordas agressoras contra os eleitores do atual Presidente da República (ou, como há pouco disse Maierovitch, contra os democratas...)[1]. Ou seja: atos motivados, sim, por discriminação (contra o politicamente divergente). Mas isso é outra história.
É claro que os responsáveis diretos por esses graves atentados, sejam eles quem forem, devem e precisam ser punidos, observado o devido processo legal e os limites da participação de cada um (Código Penal, art. 29); afinal, não se respondem a violações da ordem democrática com novas violações às garantias democráticas. Tão importante quanto isso, entretanto, é saber como chegamos a esse cenário trágico, de conspurcação da democracia e de destruição de símbolos e valores republicanos, além de inúmeras obras de arte que integram - ou integravam - o patrimônio cultural brasileiro (CRFB, art. 216). E, nesse caminho, identificar também os responsáveis indiretos: autores intelectuais financiadores, instigadores, incitadores. E nada há aqui, diga-se claramente, de punitivismo ilegal: é da letra estrita do Código Penal que "[o] ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado"; logo, "a contrario sensu", são todas condutas puníveis, nos ensejos desse fatídico 8 de janeiro, porque, afinal, os crimes não apenas foram tentados, como foram, a rigor, consumados (v., e.g., artigos 359-L e 359-M do CP, i.e., crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e crime de golpe de Estado; pertencem ambos, aliás, àquela raríssima categoria de crimes que só admitem a modalidade tentada, assim punida como forma consumada). Tudo isso, claro, a par das próprias responsabilidades civis, administrativas e políticas que se possam delinear.
Nessa ordem de ideias, a hipótese imediata que se põe, e já ocupa a grande mídia e as instituições, é a da possível responsabilidade do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro. É indiscutível que, ao longo do quadriênio, o ex-mandatário não raramente se afastou dos ditames dos artigos 2º e 37 da Constituição Federal, alimentando esdrúxulas e progressivas tensões com os Poderes Judiciário e Legislativo. A partir de certo momento, os antagonismos com setores do Congresso foram aliviados, o que envolveu, entre outras "concessões", a leniência para com o assim chamado "orçamento secreto". Já com o Judiciário independente, persistiu o ânimo de promover sucessivas e graves crises por meio de ameaças, difamações e calúnias contra seus membros.
Ao longo do governo, o ex-presidente Jair Bolsonaro chegou a ser denunciado várias vezes por parlamentares e instituições da sociedade civil, pela suposta prática de crimes comuns e de responsabilidade, sob o olhar aparentemente indiferente do Congresso Nacional - os pedidos de impeachment jamais caminharam[2] - e do Procurador Geral da República. Evidente que o Ministério Público, como "dominus litis" - e, nesse caso, o PGR -, não está obrigado a oferecer denúncias em todos os casos; e é de rigor reconhecer-lhe a independência técnica, como sempre defendemos para os juízes, desembargadores e ministros. Nada obstante, dentro da liberdade de cátedra e de opinião técnica (LOMAN, art. 36, III, in fine), é preciso registrar que, para a gravidade dos atos e das condutas perpetradas - incluindo a participação em comícios nos quais se pedia a "intervenção militar", ainda em 2019, e as falas públicas, em plena Avenida Paulista (7/9/2021), brandindo que os ministros do STF deveriam "se enquadrar ou pedir pra sair" e afirmando, em alto e bom som, que o ex-Presidente já não cumpriria as respectivas decisões judiciais -, esperava-se bem mais que ainstauração de procedimentos superficiais que, não raro, serviram apenas a conclusões aligeiradas sobre a impertinência das representações e denúncias. Aliás, no dia 8 de setembro, após os graves episódios ocorridos no Dia da Independência, o PGR afirmava que os referidos atos, havidos em Brasília e São Paulo, não teriam passado de "(...) uma festa cívica com manifestações pacíficas", reveladoras da "expressão de uma sociedade plural e aberta, características de um regime democrático"[3], sendo certo que, à altura, víamo-nos já às voltas com tentativas de bloqueios, na Esplanada dos Ministérios, capitaneadas por caminhões de grande porte vindos em caravana depois de convocações presidenciais que remontavam ao mês de agosto,[4] com o declarado propósito de ocupar o Congresso e a sede do Supremo Tribunal Federal,[5] conforme divulgado à época. Eis algo que somente agora começa a mudar,[6] ao menos aparentemente; e algo que diz muito sobre a conveniência e a juridicidade, como costume constitucional, da lista tríplice do Ministério Público Federal para a escolha do PGR.
O então presidente do Supremo Tribunal Federal, aliás, chegou a cogitar de uma GLO (procedimento de garantia de lei e da ordem) naquele nefasto 7/7/2021, tal a gravidade dos fatos. O mesmo Min. Fux, em entrevista à imprensa escrita,[7] revelou que "a entrada de um caminhão no prédio do STF poderia causar a própria implosão da sede", destruição - quase completa - que se concretizou nesse último 08/1/2023. O desastre se anunciara (e bastante).
Mas não foi só. Em 2022, com auxílio de alguns de seus ministros, o ex-presidente confirmou as ameaças de 2021, chegando a dizer que "não haveria eleições" se as regras não forem as que ele pretendia que fossem implantadas e adotadas, a pretexto de uma auditagem de votos (que, diga-se com clareza, sempre foi possível em nível eletrônico). E, não bastasse o reforço de ataque às urnas eletrônicas, sempre de forma sistemática e articulada com as mídias "paralelas" (a soldo ou a reboque do delírio miltitudinário), o ex-Presidente silenciou ao perder as eleições, sem reconhecer a vitória do adversário, reforçando entre seus seguidores a falsa convicção de que as eleições teriam sido fraudadas. Eis o caldeirão fervente que engendrou os inexplicáveis acampamentos em frente a quartéis, pedindo "intervenção militar" ou "intervenção federal com Bolsonaro no poder" (i.e., golpe de Estado) - algo inexplicavelmente tolerado a bem da "liberdade de expressão" - e culminou com os deploráveis atos de oito de janeiro.
Alfim, como cereja para essa torta repulsiva de hostilidades antidemocráticas, descobriu-se há pouco uma escandalosa minuta de decreto de Estado de Defesa que alcançaria todo o "espaço geográfico" do TSE - e somente ele -, com autorização para a quebra dos sigilos de comunicações dos seus ministros e possibilidade de extensão aos tribunais regionais eleitorais. Mas, como é de praxe, far-se-iam presentes os vernizes enganosos da traição à democracia, como, p. ex., a previsão de "comunicação ao Presidente do STF" - isto após quebrar o sigilo de ao menos três dos membros da Corte constitucional (que, nos termos do art. 119, I, "a", da CRFB, devem compor o TSE) - e o "convite" à participação da sociedade civil e da comunidade das nações, que seria dirigido à Ordem dos Advogados do Brasil, à Organização das Nações Unidas e à Organização dos Estados Americanos, mas somente após a apresentação do relatório final da indigesta "comissão de regularidade eleitoral", formada essencialmente por membros do Ministério da Defesa (incluído o próprio Presidente da República, concorrente do pleito...).
Já passa da hora de conter essa maré montante que se desenhava há quatro anos e que deitou indiscutíveis raízes nas falas e condutas do ex-Presidente da República, que agora nega qualquer responsabilidade pelos atos de tantos quantos agiram debaixo do seu nome e da sua figura (inclusive literalmente).[8] Corrigir a disfuncionalidade institucional que se instaurou na República exige, neste momento, não só a expedita resolução dos procedimentos criminais referentes aos atentados gravíssimos contra a democracia, mas também o imediato julgamento do mérito da ADPF 881, ajuizada pela Conamp, que trata da possibilidade de reconhecimento do crime de prevaricação por parte de membros do Ministério Público (e, por extensão, de outras carreiras jurídicas, como a própria Magistratura),[9] para que a comunidade jurídica tenha diante de si, com toda clareza, quais são os lindes exatos entre o livre convencimento motivado e o "interesse ou sentimento pessoal" (CP, art. 319).
A independência técnica dos órgãos judiciais e ministeriais deve ser preservada, como bastião secular da democracia. Por outro lado, a leniência e a condescendência para com a quebra da institucionalidade democrática, assim como os respectivos incentivos, diretos ou indiretos, devem ser repudiados, punidos e proscritos da vida pública brasileira. As zonas nebulosas precisam ser ingentemente iluminadas. E, para isso, já não há tempo de espera.
*Guilherme Feliciano, juiz do Trabalho, é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho no biênio 2017-2019
*Germano Silveira de Siqueira, juiz do Trabalho, foi presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho no biênio 2015-2017
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[1] MAIEROVITCH, Wálter. Responsabilização de Bolsonaro se aproxima: por que presos são terroristas. Opinião. UOL Notícias, 13 jan. 2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/walter-maierovitch/2023/01/13/bolsonaro-responsabilizacao-atos-golpistas.htm . Acesso em: 13 jan. 2023.
[2] Sobre a presença de condições objetivas para o impeachment de Jair Bolsonaro, ainda no ano de 2021, vale revisitar a nota pública emitida por dezenas de professores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, na qual se reconhecia, entre outras coisas, que, "ante a certeza de que tais erros continuarão sendo cometidos, doravante com o sacrifício de outras milhares de vidas, os subscritores entendem necessário e urgente que se instaure o procedimento legal para o impedimento de S.Ex.ª o presidente da República, entre outras razões, porque incurso no preceito do art. 85, VI, in fine, da Constituição (por afirmar abertamente, em programa de televisão, que está deliberadamente "descumprindo" decisão do STF com relação às competências para o combate à Covid-19); nos preceitos do art. 85, III, c.c. art. 196 da Constituição e do art. 7º, n. 9, da Lei 1.079/1950 (por atentar, com seus atos e palavras, contra o direito social e difuso à saúde pública, também em relação à Covid-19); nos preceitos do art. 85, V, c.c. art. 37, caput, da Constituição (por violar o princípio da impessoalidade, desfavorecendo abertamente órgãos de imprensa que não lhe são gentis); nos preceitos do artigo 85, IV, da Constituição e do art. 7º, ns. 6, 7 e 8, da Lei 1.079/1950 (pela participação pessoal em manifestações antidemocráticas que pediam, entre outras coisas, a "intervenção militar" e o "fechamento" do Congresso e do STF); e nos preceitos do artigo 85, II, da Constituição e do artigo 6º, n. 5, da Lei 1.079/1950 (pela ameaça de retaliação, em fala e nota pública, a eventual decisão do STF que lhe apreendesse o telefone celular), entre outros". Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/professores-de-direito-da-usp-pedem-o-impeachment-de-bolsonaro/. Acesso em 14 jan. 2023.
[3] Disponível em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/09/08/para-aras-7-de-setembro-foi-expressao-de-uma-sociedade-plural-e-aberta.htm. Acesso em 13 jan. 2023.
[4] Disponível em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/09/08/para-aras-7-de-setembro-foi-expressao-de-uma-sociedade-plural-e-aberta.htm. Acesso em 13 jan. 2023.
[5] Havia participantes que imaginavam "demitir" e agredir integrantes desses órgãos; outros comemoraram a falsa promessa que de que Bolsonaro teria decretado estado de sítio. Disponível em
Anamatra na Mídia
Sobre o democraticídio e os seus remédios
Fonte: Estadão.com.br[6] Cfr., por todos, https://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-pede-ao-stf-inclusao-do-ex-presidente-jair-bolsonaro-em-inquerito-que-apura-incitacao-a-atos-antidemocraticos. Acesso em 14 jan. 2023.
[7] Disponível em https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2022/08/entrevista-a-historia-nao-vai-perdoar-aqueles-que-nao-defendem-a-democracia-diz-o-presidente-do-stf-luiz-fux.ghtml. Acesso em 13 jan. 2023.
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[8] Cfr. https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/01/15/interna_politica,1445244/video-mostra-homem-com-camisa-de-bolsonaro-quebrando-relogio-de-dom-joao-vi.shtml. Acesso em 14 jan. 2023.
[9] Veja-se, p. ex., o que se deu recentemente, no âmbito do CNJ, em razão de decisão judicial que autorizava empresário bolsonarista a reerguer sua barraca em frente a unidade militar em Belo Horizonte, que levou inclusive ao afastamento administrativo do magistrado. Cfr. https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/09/corregedor-do-cnj-afasta-juiz-de-mg-que-autorizou-bloqueio-de-bolsonarista-em-bh.ghtml , acesso em 14 jan. 2022.