Por Luciana Paula Conforti
Por ocasião da 109ª Conferência Internacional do Trabalho, realizada pela Organização Internacional do Trabalho em 2021, virtualmente, a Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) apresentou propostas para os debates da Comissão de Desigualdade no Mundo do Trabalho, especialmente voltadas à redução das desigualdades de gênero e raça no mercado de trabalho brasileiro, incluindo a ratificação da Convenção 190 da OIT pelo Brasil e sua aplicação em conjunto com a Recomendação 206, além da consideração das tarefas de cuidado como potenciais excludentes das oportunidades de crescimento socioprodutivo das mulheres.
Em 2019, a associação constituiu, de forma permanente, a Comissão Anamatra Mulheres, que tem por objetivo implementar estudos e debates da temática "equidade de gênero", tanto no âmbito da representação associativa, quanto no sistema de Justiça, a fim de impulsionar as ações políticas da entidade, além de promover reflexões sobre os impactos da desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Desde a sua constituição, a comissão realiza eventos, faz publicações para o esclarecimento de direitos e planeja ações concretas para a redução das desigualdades de gênero.
No encontro realizado pelos líderes do grupo de Nações do G-20, em outubro de 2021, em Roma, houve o compromisso de que adotarão abordagens políticas centradas nas pessoas em seus planos de recuperação da pandemia da Covid-19. A Declaração destacou o compromisso das (dos) líderes em garantir condições de trabalho seguras e saudáveis, trabalho decente para todas as pessoas, justiça e diálogo social, por meio do fortalecimento dos sistemas de proteção social, a fim de reduzir as desigualdades, erradicar a pobreza, apoiar as transições e reintegração de trabalhadoras e trabalhadores nos mercados de trabalho e promover o crescimento inclusivo e sustentável. Referida declaração reafirmou o compromisso dos países com a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas, como previsto no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 da Agenda 2030 da ONU, incluindo a melhoria da quantidade e qualidade do emprego feminino, com atenção especial para as disparidades salariais entre homens e mulheres e erradicação da violência de gênero, entre outras medidas[2].
Com relação à Agenda 2030 da ONU, importante destacar, ainda, o ODS8, sobre trabalho decente e desenvolvimento econômico, já que a desigualdade de renda e de oportunidades prejudica o crescimento econômico e o alcance do desenvolvimento sustentável, criando ciclo vicioso que impede o aumento das perspectivas de mudança desse quadro, com a melhoria do estudo, da qualificação e consequentemente, alcance de empregos de qualidade[3].
Na Declaração do Centenário da OIT para o Futuro do Trabalho, por ocasião da Conferência Internacional do Trabalho de 2019, quando foi aprovada a Convenção 190 e a Recomendação 206, houve compromisso expresso com um mundo do trabalho livre de violência e de qualquer tipo de assédio.
A aprovação da Convenção 190 da OIT foi histórica. É o primeiro tratado internacional para o enfrentamento das violências e assédio no mundo do trabalho, com o reconhecimento de que tais condutas levam à violação de direitos humanos e são ameaça à igualdade de oportunidades e incompatíveis com o trabalho decente. A norma entrou em vigor em junho de 2021 e já foi ratificada por vários países, entre os quais a Argentina e o Uruguai.
A Convenção 190 da OIT define a violência e o assédio como "um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis ou ameaças", como uma "ação que se manifesta de uma vez só ou repetidamente" e que "tem por objeto provocar, provoca ou é suscetível de provocar dano físico, psicológico, sexual ou econômico". O texto amplia bastante a caracterização e abrangência, traz conexão entre os conceitos, mas também interdependência, ao utilizar a expressão "violência e assédio" como gênero, no "mundo do trabalho" e não no local de trabalho, abarcando todos os tipos de violência e assédio: abuso verbal, assédio sexual, violência doméstica, violência física, violência psicológica, assédio moral, violência estrutural, assédio organizacional, assédio virtual, ameaça, perseguição, violência de gênero e assédio em razão de gênero.
Em maio de 2020, a OIT destacou a relevância da Convenção 190, no contexto da pandemia da Covid-19, trazendo exemplos de denúncias recebidas em vários países, com sugestões de contribuições para o contorno da crise e prevenção de novas situações. Referida convenção Internacional foi apontada pela OIT como um dos elementos-chave da resposta e das medidas de recuperação da crise causada pela Covid, face à necessária prevenção e o indispensável combate do crescimento da violência e do assédio moral e sexual no trabalho, de forma mais abrangente, com a inclusão de todas as pessoas do mundo do trabalho. Houve atenção especial aos setores e profissões que estão mais expostos às violências e ao assédio; destacou-se a importância da atenuação do impacto da violência doméstica no mundo do trabalho; da prevenção e do combate à ciberperseguição; a garantia da proteção das pessoas que trabalham na economia informal; a garantia de maior igualdade e não discriminação das pessoas em situação de vulnerabilidade; a adaptação e implementação de medidas no local de trabalho em matéria de violência e assédio; a importância de se assegurar comunicação segura, justa e efetiva, recursos adequados e eficazes e a da importância da melhoria dos dados relacionados à temática[4].
Como já era previsto, a pandemia exacerbou as desigualdades existentes e revelou deficiências nos sistemas sociais, políticos e econômicos, inclusive em relação ao acesso a serviços de saúde e de proteção social. Mulheres com responsabilidades familiares, trabalhadoras (es) informais, famílias de baixa renda e jovens estão, particularmente, entre os mais afetados. Desde o início da crise, houve um aumento significativo da violência doméstica.
Pesquisa do Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva, com apoio da Laudes Foundation (2020), intitulada "Percepções sobre violência e o assédio contra mulheres no trabalho", com o objetivo de fomentar o debate sobre as situações de violência e assédio vivenciadas pelas mulheres nos ambientes de trabalho, baseada na Convenção 190 da OIT, demonstra que a maior parte das entrevistadas trabalha para o sustento próprio e da família e não, propriamente, para realização pessoal ou profissional, 76% já sofreu algum tipo de violência ou assédio no trabalho e que "a sobrecarga das mulheres com os cuidados com a casa e os/as filhos/filhas se tornou ainda mais evidente na pandemia". Referida pesquisa, evidenciou, ainda, que "além de uma série de desafios vivenciados para conseguir trabalhar, as mulheres precisam lidar com uma realidade cotidiana no trabalho pelo fato de serem mulheres: constrangimento e assédio moral e sexual"[5].
Diante de tal quadro, é necessário o estabelecimento de políticas públicas inclusivas e voltadas à melhoria do mercado de trabalho das mulheres e melhor preparo das meninas, para maior equilíbrio e erradicação das desigualdades, nos campos laboral, produtivo e econômico, afastando os efeitos perversos da ausência de igualdade de oportunidades e a violência contra a mulher, em todos os campos.
Como se sabe, barreiras são impostas à ascensão feminina no mercado de trabalho, especialmente aos cargos de chefia e a salários equânimes aos dos homens, como a divisão sexual do trabalho e a ausência de oferta de cargos e empregos para as mulheres, entre outros obstáculos, que impõem limites à inserção socioprodutiva e ao desenvolvimento pessoal, com restrição do potencial de geração de riqueza de mais da metade da população brasileira, segundo dados do Observatório da Diversidade e da Igualdade de Oportunidades no Trabalho no Brasil[6].
Nesse contexto, é preciso superar a visão apenas a partir da pobreza de renda. A visão bidimensional da pobreza, englobando renda e tempo, tem demonstrado ser capaz de enfrentar, de forma mais eficaz, as questões de gênero envolvidas na pobreza. Ao redor de todo o mundo, na maioria das pesquisas de usos dos tempos feitas, as mulheres aparecem como "pobres de tempo". Esse dado demonstra que não adianta apenas aumentar as vagas para esse grupo social, se elas não tiverem condições de efetivo acesso. Além disso, pensar a pobreza a partir do tempo também facilita a inclusão das questões atinentes às tarefas de cuidado.
A respeito das tarefas de cuidado, importante citar as conclusões do relatório da Oxfam Brasil (2020), denominado "Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade". O documento tece críticas ao "sistema econômico sexista e falho, que valoriza mais a riqueza de um grupo de poucos privilegiados, na sua maioria homens, do que bilhões de horas dedicadas ao trabalho mais essencial - o do cuidado não remunerado e mal pago, prestado principalmente por mulheres e meninas em todo o mundo". Destaca, ainda, que "a pesada e desigual responsabilidade por esse trabalho de cuidado perpetua as desigualdades de gênero e econômica"[7].
Entre as propostas apresentadas pela Comissão Anamatra Mulheres à Comissão de Desigualdade no Mundo do Trabalho da OIT, destaca-se a observância da transversalidade no trabalho, chamando-se a atenção para os reflexos que o atravessamento por raça, gênero e outros marcadores geram na inclusão de grupos sociais vulnerabilizados. A transversalidade é um princípio das Nações Unidas que precisa ser mais apropriado na esfera laboral. Outra proposta a ser destacada, é o estímulo à criação, nos países membros, de normativa e estrutura de apoio à trabalhadora vítima de assédios e violências no trabalho. O assédio sexual e moral têm se mostrado como violências corriqueiras no mercado de trabalho feminino, cuja superação ainda exige amplo trabalho de conscientização para a sua identificação, já que muitos casos de assédios ainda não são vistos como tais ou não são denunciados. No entanto, o assédio se coloca como causa de interrupção de carreiras de mulheres, com consequência na lentidão da ascensão, menores salários, entre outros fenômenos.
Assim, é imprescindível destacar a relevância e inafastabilidade da ratificação da Convenção 190 da OIT pelo Brasil e a sua implementação conjugada com a recomendação 206, em todos os níveis, com o reforço das medidas de prevenção no local de trabalho e garantia de políticas públicas, por meio de sistema de avaliação e gestão dos riscos, que levem em consideração a violência e o assédio, incluindo a violência doméstica e a ciberperseguição, como já identificou a OIT[8]. É importante, também nesse ponto, ampliar o conhecimento sobre a violência e o assédio no mundo do trabalho, com a divulgação de dados específicos a esse respeito. Nesse quadro, relevante a disponibilização de apoio técnico aos governos e às organizações de empregadores e de trabalhadores sobre a inclusão da Convenção 190 da OIT e da Recomendação 206 nas medidas de resposta à recuperação da crise da Covid, incluindo aporte às autoridades competentes para aprofundar as análises da legislação e das práticas nacionais, para superar as lacunas existentes.
Face ao exposto, a Anamatra, em conjunto com o Ministério Público do Trabalho, OIT, ONU Mulheres e a Coalizão Empresarial pelo Fim da Violência contra as Mulheres e Meninas, que reúne 127 empresas, entre outras instituições, aderiram ao ato público convocado pela Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, que será realizado no dia 09 de março de 2022, no Salão Negro da Câmara, em defesa da ratificação da Convenção 190 da OIT pelo Estado brasileiro. A Casa legislativa já encaminhou à Presidência da República, com o apoio de diversos parlamentares, a indicação de assinatura da norma internacional (INC 1483/2021).
Assim, espera-se que o Poder Executivo assine a Convenção 190 da OIT e que sua tramitação no Congresso observe o procedimento previsto na Constituição para as emendas constitucionais (artigo 5º, § 3º), já que uma convenção internacional sobre direitos humanos.