O juiz Vitor Gambassi Pereira, da 23ª Vara do Foro Central Cível de São Paulo, de maneira incomum, reconheceu o vínculo empregatício entre um motorista de caminhão e uma empresa de varejo e atacado, antes de remeter o processo para a Justiça do Trabalho.
Para entender a origem desta decisão rara, é preciso voltar a 2020. Naquele ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a ação direita de constitucionalidade (ADC) 48, que confirmou a natureza comercial da contratação de autônomos para exercício da atividade de transporte de cargas e a competência da Justiça comum para análise de controvérsias. Na ocasião, era avaliada a constitucionalidade da lei 11.442/2007, que trata de transporte rodoviário feito por terceiros.
Ficou decidido que, como as relações abarcadas por essa lei são jurídico comerciais, as análises iniciais sobre essas questões não seriam responsabilidade da Justiça trabalhista ainda que envolvam potencial fraude trabalhista. Assim, compete à Justiça comum avaliar se estão presentes os elementos que caracterizam relação comercial ou de vínculo de emprego. Na segunda hipótese, o processo deve ser remetido aos tribunais especializados.
No caso julgado por Pereira, o caminho havia sido invertido. Aqui o caso é inusitado, porque a demanda se iniciou na Justiça especializada e, após sentença que reconheceu o vínculo trabalhista, o processo somente me foi remetido porque houve reclamação constitucional, sem que o TRT pudesse confirmar ou refutar a caracterização da relação trabalhista, afirmou o magistrado.
A reclamação foi julgada pelo ministro Dias Toffoli, do STF, que decidiu que o processo deveria ser reiniciado na Justiça estadual. O juiz estadual, então considerou: Ora, se o juízo trabalhista reconheceu o vínculo de emprego, desconsiderá-lo seria fazer da Justiça Estadual instância recursal da Justiça Trabalhista, até mesmo porque, insisto, o TRT não se debruçou sobre a questão, pois impedido previamente à sessão de julgamento.
Para descaracterizar a relação comercial e definir o vínculo de emprego, Pereira afirma que a empresa não poderia contratar trabalhadores autônomos para desempenhar sua atividade fim.
Se necessita diariamente de trabalhadores para realizar determinado serviço relacionado ao seu objeto social, não pode querer mascarar uma relação empregatícia sob o manto do trabalho autônomo ou através de pessoa jurídica. Inequívoca a intenção da ré de frustrar direitos trabalhistas, diz na decisão, em que considera nulo o contrato de prestação de serviços.
O magistrado também analisou os elementos que a CLT usa para definir o vínculo, como a onerosidade, a partir dos pagamentos informados; a habitualidade, já que o motorista esteve entre 1997 e 2016 cumprindo a função; a pessoalidade, já que não foi demonstrado que ele poderia deixar de comparecer ou ser substituído; a subordinação, já que o caminhoneiro precisava se inserir na dinâmica da empresa e era subordinado a funcionários. Por fim, ele afirma expressamente reconhecer o vínculo.
Para o juiz do Trabalho e ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) Guilherme Guimarães Feliciano, que também é professor da USP e colunista do JOTA, há um equívoco nessa sentença, induzido pela decisão do STF. O juiz estadual não pode reconhecer vínculo empregatício, pois não tem competência constitucional para isso. Ele próprio, na sentença, admite isso. Poderia apenas reconhecer que os elementos formais regulares da Lei n. 11.442/2007 não estão presentes; e, diante disso, remeter à Justiça trabalhista para que ela reconhecesse ou não o vínculo empregatício, comenta.
A decisão foi remetida à 61ª Vara do Trabalho de São Paulo. No TJSP o processo tem o número 0000584-92.2022.8.26.0100. Leia a íntegra da decisão.
Letícia Paiva