CompartilharEmailTwitterImprimirO Judiciário deve procurar oferecer igualdade de oportunidade na execução das políticas públicas, para atingir a cidadania e dignidade da pessoa humana, especialmente quando se trata de povos e comunidades tradicionais. Para tanto, em relação ao depoimento especial de crianças e adolescentes pertencentes a esses povos, juízes e juízas devem levar em consideração as normativas existentes e incluir a análise antropológica e a presença de intérpretes para a realização da escuta protegida.
Essa foi a conclusão do diagnóstico desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), apresentado nesta sexta-feira (11/2), durante o Encontro "Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência - Comunidades Tradicionais". Segundo a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Lívia Peres, o diagnóstico apontou as dificuldades enfrentadas pelos Tribunais de Justiça da Bahia, do Amazonas, de Roraima e do Mato Grosso do Sul, que fizeram parte do projeto-piloto que estudou como esses depoimentos estavam sendo colhidos junto às comunidades tradicionais, como povos indígenas, quilombolas, ciganos e povos de terreiro.
Partindo da premissa da Resolução CNJ n.299/2019, que regulamentou o sistema de garantias de direito, previsto pela Lei da Escuta Protegida (Lei 13.431/2017), a ação fez o levantamento de dados, também considerando as previsões da Resolução CNJ n.287/2019, que trata dos indígenas em âmbito criminal. "O foco do projeto na região norte foram os indígenas e, ao verificar as situações de violência, percebeu-se que na maioria dos casos elas são cometidas por parentes consanguíneos das crianças. Por isso, foi preciso também ter esse contexto da criminalização indígena", explicou a juíza.
O diagnóstico identificou medidas para a redução de possíveis efeitos traumáticos, que foram reunidas no "Manual Prático para Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais", que, entre outras orientações, indica a presença de intérprete na oitiva - de preferência da mesma etnia e do mesmo gênero da criança -, para que possa possibilitar a compreensão dos procedimentos; a adequação do protocolo brasileiro de entrevista forense, para contemplar o modo de fala e de livre narrativa das vítimas; e a capacitação desses entrevistadores e magistrados.
"É inviável pensar na adequação de um protocolo para todos os povos. No caso concreto, os tribunais terão de adequar as orientações, a fim de garantir a comunicação efetiva. É preciso lembrar que essa é uma minoria que precisa de tratamento adequado e diferenciado para que possamos chegar à cidadania e, de fato, garantir a isonomia", disse Lívia Peres.
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Realizado para divulgar e debater o Manual de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes Pertencentes a Povos e Comunidades Tradicionais, o Encontro foi promovido pelo Fórum Nacional da Infância e da Juventude do Conselho Nacional de Justiça (Foninj/CNJ), responsável também por elaborar o protocolo a ser observado pelos tribunais estaduais e federais.
Durante a abertura do evento, a presidente do Foninj, conselheira Flávia Pessoa, disse que o Manual apresenta os parâmetros que devem ser observados para atendimentos culturalmente adequados e para a tomada de depoimento especial das crianças de comunidades tradicionais. "O Manual é sensível à diversidade das infâncias e juventudes existentes no âmbito de cada coletivo étnico e social e estáÌ atento às múltiplas configurações que o fenômeno da violência assume em seus territórios, além de considerar as particularidades locais".
A conselheira ressaltou ainda que para efetivar o direito dessas crianças e adolescentes à proteção integral e não revitimização, o material busca compatibilizar as normativas nacionais e internacionais com a legislação que garante os direitos diferenciados dos povos e comunidades tradicionais: o direito às suas culturas, tradições, formas de vida, línguas, conhecimentos e práticas, territórios, bem como aos seus próprios modos de proteção e de cuidado com a infância e a juventude e de resolução de conflitos em seus contextos comunitários. "O objetivo é orientar medidas para garantir que, no contexto da realização do depoimento especial, crianças e adolescentes tenham condições de apresentar suas narrativas de forma segura, protegida e acolhedora", afirmou a conselheira.
O conselheiro Richard Pae Kim disse que ainda há muitos gargalos para que a Lei do Depoimento Especial seja efetivamente estabelecida no país. Destacou que há avanços, mas ainda é preciso melhorar os resultados na ponta, com instalações adequadas para a realização do depoimento, pessoas capacitadas e, agora, conforme orientação do Manual, a presença de intérpretes e laudo antropológico para minimizar as barreiras da escuta protegida. "Precisamos ter o fluxo adequado de atendimento e de colheita de depoimento especial, além da construção de normativas em todas as áreas das políticas públicas - seja no âmbito da educação, da saúde, ou da assistência".
Para Pae Kim, o objetivo é trabalhar pela proteção dos mais vulneráveis, como as crianças, de forma a transformar positivamente a vida de cada uma das vítimas, com a realização da Justiça. "O tempo urge e é inadiável a necessidade de se colocar a lei em prática. Esperamos que o Manual que construímos e suas recomendações possam efetivamente alcançar aqueles que necessitam ser ouvidos; e que suas vozes, seus contextos, sua cultura e aspectos sociais sejam compreendidos e respeitados pelo Sistema de Justiça".
Direitos humanos
Para o representante adjunto do PNUD no Brasil, Carlos Arboleta, a garantia dos direitos humanos é prevista pela Agenda 2030, incluindo crianças e adolescentes. Nesta perspectiva, como afirmou Arboleta, não há como se pensar em redução de desigualdades sem garantir esses direitos às vítimas ou testemunhas de violência. "Precisamos ter ferramentas para que possam apresentar suas narrativas de forma segura, protegida e acolhedora, que são condições iniciais para a efetividade do sistema de Justiça. Instituições que oferecem uma garantia qualificada a esse direito contribuem para a proteção integral, a não revitimização desses indivíduos e alcança melhores resultados na construção de sociedades mais pacíficas, justas e inclusivas".
O presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (Abraminj), desembargador José Antonio Daltoé Cezar, afirmou que a violência contra crianças e adolescentes não é um problema só do Brasil, mas está presente em todas as comunidades, inclusive nas tradicionais. "Estamos num projeto que deu certo. No mundo todo, o Brasil é o país que mais tem equipamentos para realizar esse tipo de trabalho. São mais de mil, uma das melhores legislações no mundo, mais de dois mil profissionais capacitados para fazer o depoimento especial. E nosso viés nesse projeto é a proteção de todas as crianças."
Já o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins, parabenizou o CNJ pela produção do Manual e afirmou que é preciso efetivar os direitos diferenciados para essa comunidade, de forma a "fortalecer a política de diversidades na infância".
Também participaram da cerimônia de abertura o subprocurador-geral da República, Alcides Martins; o representante do Conselho Federal da OAB, Daniel Blume Pereira de Almeida; o diretor de Cidadania e Direitos Humanos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), André Eduardo Dorster Araújo; a presidente do Colégio de Coordenadores da Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça, Noeli Salete Tavares Reback; o presidente do Fórum Nacional de Justiça Protetiva (Fonajup) Hugo Zaher; e a presidente do Fórum Nacional da Justiça Juvenil (Fonajuv), Lavínia Tupy Vieira Fonseca.