Por Luciana Paula Conforti
Em março de 2016, texto do diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil, Silvio Caccia Bava, trouxe uma série de questionamentos acerca da agenda imposta pelo sistema financeiro e pelas grandes corporações, trazendo como mote "a busca pela ocupação do centro do debate político com temas que não questionam sua hegemonia e seus interesses" [1].
O texto discute a interdição na sociedade do debate democrático sobre diversos temas, como o controle ou não da política econômica; sobre Estado mínimo ou de bem-estar social; juros altos para beneficiar o setor financeiro ou juros baixos para dinamizar o investimento produtivo, a industrialização, o emprego e o mercado interno; aumento do salário mínimo para incentivar o mercado interno e melhorar a vida dos trabalhadores ou redução do salário mínimo e da cobertura da Seguridade Social para aumentar a competitividade brasileira em relação à concorrência internacional, entre outras questões.
Inspirado em "o mercado das ideias", de Noam Chomsky, o autor questiona a imposição à sociedade de visões de mundo que ocultam a interpretação do real, com constantes transformações e adaptação das formas de controle político e, principalmente, das narrativas que o sustentam.
A propósito dos questionamentos sobre se realmente existe um "mercado de ideias", interessante destacar texto da Professora Ana Frazão, da UnB, com análise do artigo Ideas have consequences: the impact of Law and Economics on American Justice, escrito por Elliot Ash, Daniel Chen e Suresh Naidu, no qual os autores discorrem sobre os efeitos do movimento Law and Economics no judiciário norte-americano, com enfoque no Manne Economics Institute for Federal Judges, "curso intensivo de economia, criado por grandes empresas e fundações, responsável pelo treinamento de 40% dos juízes federais americanos entre 1976 e 1999, baseado no laissez-faire, defendendo o amplo uso da análise econômica do direito".
Segundo Ana Frazão, ao analisar 380.000 decisões, "os autores identificaram que o movimento Law and Economics tem consequências políticas diretas, com grande poder de influência sobre as cortes americanas, cujos efeitos são o maior número de decisões judiciais que podem ser consideradas conservadoras, alinhadas com a postura ideológica do movimento" [2].
Tais reflexões se encaixam perfeitamente na análise dos contornos que envolveram a aprovação da Lei 13.467, de 13/7/2017, conhecida como "Reforma Trabalhista" - discussões sobre sua (não) aplicação e o "Caso Brasil" nas Conferências Internacionais da Organização Internacional do Trabalho - OIT.
Com promessas de "modernização" das relações de trabalho, a Reforma Trabalhista brasileira demonstrou o aumento das irregularidades trabalhistas e a precarização do trabalho humano, além de maior vulnerabilidade dos trabalhadores, devido à deliberada tentativa de descaracterização do caráter protetivo do Direito do Trabalho, com afronta à Constituição e violação a convenções internacionais do Trabalho.
Em pesquisa divulgada, The Intercept Brasil sustenta que das 850 emendas que foram apresentadas à comissão especial da "Reforma Trabalhista", 292 (34,3%) foram integralmente escritas por lobistas de associações que reúnem grandes doadores de campanha; e dessas emendas, 153 (52,4%) foram aceitas pelo relator e integraram o texto aprovado pelo Congresso Nacional. Ainda segundo a pesquisa, as emendas foram protocoladas por 20 deputados integrantes da base do governo e que sequer compunham a comissão especial, como se tivessem sido elaboradas por seus gabinetes - porém foram integralmente redigidas nos computadores de representantes de confederações patronais [3].
Como se sabe, o texto original da proposta encaminhada pelo governo previa a alteração de apenas sete artigos da CLT, mas a lei aprovada, em regime de urgência, promoveu a mudança e inclusão de dispositivos, representando mais 200 mudanças, em 117 artigos da legislação trabalhista alterados.
Discute-se sobre a existência de lobby no Congresso Nacional e inobservância de princípios éticos. Quanto ao tema, deve-se ter em conta os malefícios gerados pela aceitação de interferências, da imposição de interesses privados e contrários ao interesse público, o que afronta princípios constitucionais, como a moralidade e eficiência administrativas (artigo 37). Trata-se de compliance, impondo-se a conformidade com a integridade, não só no que diz respeito a posturas dos agentes públicos ou daqueles que exercem funções públicas, como também a obrigação de respeitar leis, regras e procedimentos para a tomada de decisões.
Ainda no Parlamento, os discursos para convencer os trabalhadores e a sociedade sobre os "benefícios" da "Reforma Trabalhista", basicamente eram no sentido de que a "rigidez" das leis trabalhistas e o "arcaico código do trabalho" atrapalhavam o crescimento e o desenvolvimento econômico do país; de que patrões e empregados ficavam impossibilitados de negociar termos e condições de trabalho, mesmo que ambos quisessem; de que a Justiça do Trabalho excedia os seus limites ao deixar de aplicar a lei, "inventando interpretações"; de que a CLT trazia alto custo às empresas e impedia a geração de empregos.
As promessas de que a "Reforma Trabalhista" traria o aquecimento do mercado de trabalho não se concretizaram. Pouco tempo após o início da vigência da nova lei, ocorreram demissões em massa de trabalhadores para a contratação como intermitentes e o índice de desemprego não diminuiu significativamente, já que, mesmo antes da pandemia da Covid-19, que aprofundou o quadro de desocupação da população, alcançava mais de 12 milhões de pessoas, com registro de alta no trimestre encerrado em fevereiro de 2020 [4].
Desde a aprovação das alterações na CLT, juízas e juízes do Trabalho passaram a ser agredidos em sua independência judicial, caso não apliquem, de forma literal, a "Reforma Trabalhista", inclusive com novas ameaças de extinção da Justiça do Trabalho [5].
Além de alguns pontos da "Reforma Trabalhista" ferirem a Constituição, como o acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV), violam Convenções Internacionais do Trabalho, como já observado pela Comissão de Peritos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) [6], nos relatórios lançados para as 106ª, 107ª e 108ª Conferências Internacionais do Trabalho.
Quando a "Reforma Trabalhista" ainda estava em tramitação no Congresso Nacional, foi objeto de inserção nas discussões da 106ª Conferência Internacional do Trabalho, feita em 2017, tendo a Comissão de Peritos da OIT, na oportunidade, alertado o Brasil de que a redação do então projeto de lei feria as Convenções nº 98, nº 151 e nº 154 da OIT, sobre direito de sindicalização e de negociação coletiva.
Resumidamente, a Comissão de Peritos da OIT identificou ofensa às citadas Convenções Internacionais do Trabalho pela prevalência "do negociado sobre o legislado", principal mote da "Reforma Trabalhista", em possível desrespeito aos direitos mínimos protegidos pela legislação trabalhista. Os peritos observaram que as convenções e acordos coletivos prevalecem sobre a lei em 14 temas (artigo 611 - "a" da CLT) e que tais temas relacionam-se com diversos aspectos da relação laboral e compõem lista não taxativa de matérias, o que possibilita a derrogação, por meio de negociação coletiva, de todas as disposições legais, com a única exceção, em tese, dos direitos laborais consagrados na Constituição, de acordo com a previsão do artigo 611-B da CLT. Segundo os relatórios dos peritos, o objetivo geral das convenções mencionadas é a promoção de negociação coletiva que resulte em condições de trabalho mais favoráveis do que as previstas na legislação.
À época, por ainda se tratar de proposta legislativa e existir a possibilidade de ser alterada pelo Congresso Nacional, a discussão sobre "o caso Brasil" foi postergada para o ano seguinte pela OIT e, ao contrário do que divulgado na época pelo relator da Reforma, o país continuou a ser monitorado pelo organismo internacional [7].
Na 107ª Conferência Internacional do Trabalho, feita em 2018, a OIT voltou a apreciar "o caso Brasil", não mais como um projeto de lei, mas com a "Reforma Trabalhista" aprovada pelo Parlamento. A discussão sobre "o caso Brasil" gerou forte resistência não só dos empregadores, mas do próprio governo, tendo o então Ministro do Trabalho tecido acusações aos peritos e críticas ao sistema de funcionamento da OIT, o que expôs o país diante dos demais estados-membros que integram o centenário e respeitadíssimo organismo internacional [8].
A OIT foi criada em meados do século 20, como parte do Tratado de Versalhes e tem por objetivo fundamental propor e articular o funcionamento de um sistema normativo internacional de proteção ao trabalho digno. O organismo internacional integra o sistema da Organização das Nações Unidas e é o único com estrutura tripartite, que envolve as representações de governos, entidades sindicais de empregadores e de trabalhadores nas discussões.
Na Conferência Internacional do Trabalho de 2018, o Brasil foi incluído na short list dos 24 países com suspeita de impor as piores condições de trabalho, tema que desperta grande interesse na OIT devido não só ao descumprimento das normas internacionais do trabalho, mas também à possibilidade de dumping social.
Considerando as alegações do governo de que a discussão sobre "o caso Brasil" era prematura e em face da controvérsia estabelecida, sobre se o país tinha ou não submetido às alterações legislativas à participação das entidades sindicais de trabalhadores, a OIT concedeu prazo para que o Brasil prestasse informações detalhadas sobre a "Reforma Trabalhista".
Apesar do exposto, na época o governo divulgou oficialmente a inverídica informação de que a OIT reconheceu que a "Reforma Trabalhista" brasileira cumpre as convenções internacionais do Trabalho [9], no que foi contrariado por entidades sindicais de trabalhadores e pela Anamatra - Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho [10].
Diante da controvérsia, procurada para esclarecer os fatos, a OIT confirmou que apenas solicitou novos esclarecimentos e que o "caso Brasil" ainda seria apreciado [11].
No ano de 2019, a matéria foi novamente incluída nas discussões da 108ª Conferência Internacional do Trabalho, em situação muito semelhante à do ano anterior. O país continuou constando da short list e, após a manifestação do governo, foi concedido novo prazo para que o Brasil apresentasse informações completas. Assim, na época, o tema também não chegou a ser apreciado pela OIT.
No ano de 2020, considerando a pandemia da Covid-19 que impôs medidas de restrições sanitárias em nível mundial, não houve a Conferência Internacional do Trabalho; porém, o "caso Brasil" continuou constando das memórias dos peritos para as discussões no evento, posteriormente cancelado.
No ano de 2021, em que pese o "caso Brasil" novamente integrar a lista dos 40 países que poderiam ter as violações a convenções internacionais apreciadas na Conferência Internacional, não foi selecionado para integrar a short list, com os 24 casos.
Apesar de o país não ter integrado a short list em 2021, a exemplo do que ocorreu nos anos anteriores, o "caso Brasil" continua em apreciação pela OIT, uma vez que ainda não houve qualquer manifestação do organismo internacional a esse respeito. Em outras palavras, a não inclusão do Brasil na lista dos 24 casos com graves violações a normas internacionais neste ano não significa que a OIT apreciou a observância do Brasil às Convenções 98, 151 e 154 da OIT. Mas apenas que, no momento, não houve consenso entre as entidades sindicais de trabalhadores e de empregadores para a referida discussão, diante da existência de casos considerados mais urgentes e que necessitam de apreciação imediata, como o caso da Colômbia, por situações peculiares que têm ocorrido no país.
Destaca-se que, para a continuidade da apreciação do "caso Brasil" nas próximas Conferências Internacionais, os peritos da OIT requereram diversas providências e informações, algumas já solicitadas anteriormente e não respondidas pelo governo brasileiro.
A título de demonstração, podem ser citadas: 1) necessidade de alteração do artigo 611-A da CLT, com a redação dada pela Reforma Trabalhista, para deixar claras as situações em que as negociações coletivas prevalecerão sobre a lei e com que alcance, assim como, o pedido de informações precisas sobre o número de acordos e convenções coletivas realizadas após as alterações legislativas; 2) necessidade de alteração do parágrafo único, do artigo 444 da CLT, acerca da prevalência de acordos individuais sobre negociações coletivas para os empregados com diploma de nível superior e salário superior ao dobro do teto da Previdência Social; 3) informações sobre negociações coletivas formalizadas por entidades que representem trabalhadores autônomos; d) informações acerca do alcance e efeitos concretos dos artigos 620 e 623 da CLT, sobre a prevalência de acordos coletivos em relação às convenções coletivas de trabalho e nulidades de cláusulas convencionais que contrariam normas de política econômico-financeira do governo ou política salarial vigente no país, respectivamente.
Diante de tal quadro, é evidente que o Brasil continua na lista dos 40 países com casos sob a apreciação da OIT, sendo necessário que as informações sejam prestadas e complementadas pelo governo brasileiro, a fim de que a matéria possa ser efetivamente conhecida pelo organismo internacional.
Nesse cenário, importante refletir sobre guerra de ideias ou disputas de narrativas, sobre a interpretação do real ou imposição da visão de mundo, com base na agenda do mercado financeiro e no interesse das grandes corporações. Na mesma esteira, deve-se refletir sobre a aplicação irrestrita de dispositivos da "Reforma Trabalhista" que violam a Constituição e normas internacionais do trabalho, sobretudo as convenções fundamentais da OIT, como a de nº 98, de observância obrigatória pelos 187 estados-membros, entre eles o Brasil, como membro fundador.