Aos trabalhadores, pois, a Selic é uma incorreção Foto: Mauro Burlamaqui/SCO/STF
Em 18 de dezembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou as ADCs 58 e 59, e ADIs[1] 5867 e 6021, que tinham como tema a (in)constitucionalidade da TR como índice de correção monetária de dívidas trabalhistas.
Determinou que, até que sobrevenha solução legislativa, os créditos trabalhistas terão os mesmos índices de juros e correção monetária aplicados às condenações cíveis em geral. Será utilizado o IPCA-E para correção monetária e, a partir da citação do réu, a taxa Selic (CC, 406), a qual engloba correção monetária e juros de mora.
Na seara trabalhista, juros e correção monetária contam (contavam) com regras próprias (e distintas): parágrafo 7º do art. 879 da CLT e Lei 8.177/ 91, art. 39 caput e § 1º. Por lei, aplicar-se-ia a Taxa Referencial (TR) como índice de correção monetária (o mesmo da poupança), ou o IPCA (no período de vigência da MP 905/19), e os juros de mora em 1% ao mês, esses contados a partir do ajuizamento da reclamatória trabalhista (CLT, 883).
Ao decidir sobre juros, tema não debatido na ação, embora mantendo a ratio decidendi observada na ADI 4.357-DF e RE 870947/SE (de que a TR não serve como índice de correção monetária), o STF impôs severa revisão na forma como os institutos jurídicos (juros e correção monetária são temas indiscutivelmente distintos) serão aplicados na Justiça do Trabalho.
Por um lado, foi afastada a TR, a fim de resguardar o IPCA-E antes da citação; em relação aos juros de mora, que eram de 1% ao mês, deixa de aplicar lei própria e expressa sobre o tema (Lei 8.177/ 91, art. 39 caput e § 1º), pois esses e a correção monetária, após a citação, são substituídos pela Selic.
Não tratou do período de vigência da MP 905/19 (quando o IPCA-E foi reconhecido legalmente como índice de correção monetária de débitos trabalhista seu art. 28 alterou o art. 634-A, §3º da CLT). E mais, não diferenciou ajuizamento da ação e citação, esquecendo-se da especificidade trabalhista do art. 883 da CLT.
Ainda, repercutiu na súmula 439 do TST (correção monetária do dano moral a partir do arbitramento). E mais, criou situação assimétrica entre débitos trabalhistas privados e da Fazenda Pública.
Nessas linhas, trataremos exclusivamente de demonstrar que a decisão, infelizmente, não atende ao real escopo da correção monetária, preservar o valor real da moeda diante da inflação, e em atenção ao direito de propriedade, à reparação integral da lesão e, até, em último grau, à coisa julgada (a fim de que o bem jurídico entregue em fase de execução corresponda àquele concedido em conhecimento).
Para tanto, comparemos dívida trabalhista nova (para evitar regras de transição), pública e privada, bem assim como produto do mercado financeiro, e como os índices repercutiriam em uma dívida trabalhista nos últimos três meses do ano de 2020.
Por força do julgamento da ADI 4.357-DF e do RE 870947/SE (STF, Tema 810), o credor trabalhista da Fazenda Pública conta com correção monetária pelo IPCA-E, acrescidos (TST, s. 200) de juros moratórios (L 9.494/97, 1º-F) fixados sobre o índice de remuneração da caderneta de poupança (atualmente 70% da Selic L. 8.177/91, 12, II, b), a partir da propositura da ação (CLT, 883). Essa situação se mantém até o pagamento do precatório excluída a incidência de juros no período de graça constitucional (CF, 100).
Já o devedor privado, por força do recente julgado, terá situação distinta e extremamente privilegiada. Existirão dois momentos de cálculos da correção monetária: o primeiro na fase pré-judicial[2], em que essa se dará pelo IPCA-E (sem juros), e, posteriormente, ajuizada ação trabalhista, após a citação, incidirá sobre a dívida a taxa Selic (conjugando-se, nesse índice, juros e correção monetária).
Observemos os meses de outubro, novembro e dezembro de 2020. Matematicamente, teríamos, para a Fazenda Pública, correção monetária (IPCA-E) de 0,94%, 0,81% e 1,06%, respectivamente. Se citada, incidiria, sobre a dívida, já corrigida, juros de 0,1156%, 0,1101% e 0,2111% (70% da taxa Selic), com a sistemática da s. 200 do TST.
O devedor privado teria a mesma condição antes da citação. Contudo, citado, passa a ser devido, entre juros e correção monetária, 0,1652%, 0,1573% e 0,1730% (Selic).
Indo além: por interpretação sistemática das orientações do STF ao tratar da TR como índice de correção (ações acima citadas), podemos considerar que 30% da Selic reflete correção (já que a lei refere que os juros, para a Fazenda Pública, são de 70% da Selic e não é racional supor que o particular pague juros inferiores aos juros públicos).
Comparemos, então, a real correção monetária imposta à dívida trabalhista particular (30% da Selic) com dois populares índices oficiais de inflação, IPCA-E e IGP-M, nos já meses definidos. Esses, respectivamente, atingiram 0,94% e 0,81% e 1,06%, e 3,23%, 3,28, e 0,96%.
A correção monetária pela Selic (presumindo que 70% sejam juros e 30% efetiva correção), seria de 0,04956%, 0,04719% e 0,0519%, ou seja, irrisória, quase nula, não cumprindo, pois, com sua finalidade jurídica de manutenção do poder de compra do montante devido ao trabalhador.
O que se verifica, do exposto, é uma total desigualdade entre dívidas trabalhistas públicas e privadas. A tradição jurídica pátria sempre foi privilegiar a dívida estatal, ao argumento do interesse público na sua rolagem (permitindo investimentos em setores de interesse social), da necessidade de previsão orçamentária (precatórios) e da certeza do adimplemento. Pela primeira vez na história jurídica contemporânea o credor público é privilegiado face o privado.
A decisão, além disso, impõe severo desprestígio à tutela estatal de direitos trabalhistas, pois os juros e correção monetária (em tese, somados na taxa Selic), são brutalmente inferiores à mera correção monetária devida antes da citação. E mais, recomenda a inadimplência:
Caso o empregador opte por usar o saldo devido ao empregado para realizar um investimento seguro, poderia adquirir debêntures da empresa de energia Eneva[3], rating AAA (o do Brasil é BB-/B, ou seja, segundo os analistas da Standard&PoorŽs a Eneva é mais sólida), que pagam IPCA mais 3,6% a.a. Terá, nos três meses da comparação (outubro a dezembro/20), vantagem econômica de 3,22% (IPCA + juros de 0,3% a.m. Selic).
Ou seja, a cada mês que o devedor trabalhista atrase o pagamento, terá lucro maior (1,07% ao mês, no exemplo acima) do que os juros moratórios de 1% previstos na L. 8.177/91 que foi considerada historicamente superada, por desproporcional à realidade econômica contemporânea, no obiter dictum do voto vencedor do julgamento ora em comento.
Aos trabalhadores, pois, a Selic é uma incorreção.