Todos os dias milhares de entregadores autônomos tomam as ruas para levar até a casa das pessoas produtos que foram comprados com um clique, pelo computador ou celular. Nos últimos meses, com a explosão do comércio online, esse "exército" ganhou o reforço de trabalhadores que ficaram desempregados em meio à pandemia.
O início da quarentena fez sumir os passageiros do motorista de Uber Ulisses da Silva Melo, 30 anos. "As coisas começaram a se complicar, então achei essa opção. É o que está me dando sustento hoje", diz. "Com Uber, eu conseguia tirar mais, mas também gastava mais e dependia muito da sorte", conta.
Melo é uma das dezenas de pessoas que deixam todas as manhãs o pátio do Mercado Livre na Vila Guilherme (zona norte), onde a reportagem esteve na última terça-feira (1).
Vitor Oliveira, 22, já trabalhava como entregador, mas levando comida. Manteve no período no noturno e agora tem outra ocupação. "Faz mais de dois meses já. De manhã, faço Mercado Livre e, à noite, Ifood", afirma.
A pandemia também afetou corridas dos passageiros de Vando Souza, 26. Há três meses, ele decidiu investir em um caminhãozinho e passou a trabalhar como entregador de compras online. "O ganho é maior. Livre, consigo de R$ 4.500 a R$ 5.000 por mês", diz.
Além da nova forma de sustento, Souza também abriu vaga para quem ficou sem trabalho na pandemia. O aeroportuário Luan Cardoso, 21, virou o ajudante que ele precisava no caminhão. "Eu trabalhava no check-in de uma companhia aérea. Veio a pandemia e ficamos desempregados, eu e mais 500 funcionários", diz Cardoso.
O Mercado Livre diz que trabalha com uma malha logística diversificada, que inclui mais de 70 parceiros (empresas).
Horário mais flexível
A assistente administrativa Ingrid Soares, 21 anos, viu o emprego ir embora em março com a chegada da pandemia ao Brasil. "Falaram que a demanda iria diminuir e os mais novos, como eu, fomos mandados embora", conta.
Sobraram as prestações de uma Ford Ecosport e também o tempo disponível fora do período de aulas da faculdade. Foi então que, há três meses, ela se tornou entregadora de produtos vendidos pela internet.
Por volta das 7h, o carro de Ingrid já está lotado de mercadorias rumo às casas dos clientes do Mercado Livre. Uma jornada que vai terminar no meio da tarde. "Tem dias que cheguei às 14h30 em casa. Em outros, às 17h. Mas é uma carga horária legal e dá tempo de fazer a faculdade à noite", afirma Ingrid.
A assistente administrativa conta que foi a dificuldade que a levou a se tornar transportadora de produtos vendidos em plataformas online, algo no qual nunca havia pensado anteriormente. Ingrid diz que os ganhos são diários e que, no mês, bruto, consegue algo em torno de R$ 3.200 a R$ 3.400. "Livre, dá para tirar uns R$ 2.200. Em meio à pandemia, está valendo a pena", conta.
Novo modelo diminui a quilometragem
O crescimento do comércio online permitiu também que motoristas acostumados a rodar dezenas de quilômetros diariamente fincassem ponto em um único local na cidade.
Em um estacionamento na avenida Rio Branco (região central), Francisco Rodrigues Amorim, 63 anos, tem uma van que serve como agência de envio. "Devo ter uns 50 sellers [vendedores], que vêm trazer os produtos vendidos", diz. Dali, as mercadorias são levadas para o centro de distribuição e, só então, seguem para as casas dos clientes, por meio dos entregadores.
Amorim, que trabalhou no Sedex, diz que a mudança foi para melhor. "Tenho menos manutenção. Nos Correios, eu rodava até 80 km por dia. Aqui, nada."
'Volume de entregas cresceu 7 vezes'
Fundador e executivo da Asap Log, que atende a gigante Via Varejo e está em mais de 500 cidades, Rafael Mendes diz que houve uma explosão no número de novos cadastros para trabalhar como entregador.
Atualmente, são 4.000 pessoas exercendo a função na sua empresa. "O volume de pedidos aumentou sete vezes. Agora, em agosto, a quantidade de novos cadastros foi histórica", diz.
Mendes conta que todo o processo de seleção da Asap é feito pela internet e leva em conta a disponibilidade da pessoa, o tipo de veículo que tem e a região onde quer trabalhar.
Informais estão longe de qualquer cobertura, diz juíza
Presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), Noemia Porto vê com preocupação a situação dos entregadores.
"Na cadeia produtiva da informalidade, eles estão na pior posição. Movimentam a economia para sobreviver, mas longe de qualquer cobertura trabalhista e previdenciária", afirma Noemia.
A juíza diz que o Brasil se comprometeu com uma agenda internacional para prover trabalho decente para a população. "Trabalho decente não é ter qualquer ocupação, qualquer vaga, qualquer coisa na economia informal para sobreviver. No plano internacional, é desenvolvido sob a proteção de normas jurídicas, normas da preservação do ambiente laboral e com patamares de igualdade."