Decisões podem represar até R$ 1 bi por mês em pagamentos de ações trabalhistas
Liminares sobre índice de correção confundem meio jurídico e dão nó na Justiça do Trabalho
Decisões do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), têm o potencial para represar, por mês, o pagamento de até R$ 1 bilhão em causas ganhas por trabalhadores. As liminares tratam de correção monetária.
As medidas foram dadas em meio à pandemia do novo coronavírus. Mesmo com a alegação do ministro de que a segunda decisão esclarece o impasse, permanece no meio jurídico a polêmica sobre o tema.
No sábado (27), o ministro mandou suspender todos os processos relacionados a índices de correção. A medida, desde então, deu um nó na Justiça do Trabalho.
Em despacho de quarta-feira (1º), Gilmar afirmou que as ações prosseguem, mas somente as que usam a TR, hoje zerada.
O ministro vetou a aplicação do IPCA-E -o índice é mais vantajoso para o empregado e que equivale à taxa trimestral do IPCA-15, que tem a mesma metodologia do IPCA, mas com período de coleta de preços diferente.
Como negou o pedido para reformar a decisão, conforme solicitado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), a confusão prossegue. Segundo ele, a liminar anterior continua válida em sua totalidade.
Na prática, quase todas as ações exigem correção. Ela incide sobre indenizações de horas extras, férias, depósitos no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) ou 13º.
O empregado tem direito ainda a 1% de juro por mês. Em 12 meses, os juros chegam a 12% mais TR, que hoje é zero, ou IPCA-E, acumulado em 1,92% até junho. A TR, como determina a reforma trabalhista, tem sido ignorada.
Dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST) levantados pela Folha de S.Paulo mostram que existem hoje 970 mil ações à espera de sentença na primeira instância.
Somam-se a esse número 2,5 milhões de processos já em fase de execução -quando o trabalhador recebe o que lhe é de direito. A quantidade tem se mantido estável desde janeiro de 2018.
De janeiro daquele ano a maio de 2020, foram pagos, por meio de execuções, R$ 29,1 bilhões -a média mensal de R$ 1 bilhão.
Nesse imbróglio, Gilmar tentou fazer esclarecimentos, que mais confundiram a questão, dizem juízes. Segundo ele, "deve ficar claro" que a decisão de sábado "não impede o regular andamento de processos judiciais".
A (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) se agilizou para entender o que o ministro do Supremo escreveu. De acordo com a presidente da entidade, Noemia Porto, a decisão é contraditória.
Noemia Porto, da Anamarta, disse que há um desafio: "Como os juízes vão dar andamento a processos se, em liminar monocrática em ação declaratória, o ministro suspende os processos e, respondendo ao recurso da PGR, conclui que mantém a própria decisão? Inviável isso".
A entidade também entrou com recurso no STF para tentar reverter a decisão de Gilmar. O pedido da Anamatra ainda não foi respondido.
Para Antonio Carlos Frugis, sócio do Soto Frugis Advogados, a nova liminar do ministro destrava a Justiça.
"Ficou claro que ele havia mandado suspender tudo, depois reformou [a decisão], mas disse que não reformou. Talvez o ego não quis admitir", afirmou.
Para o professor de direito do trabalho da USP Guilherme Feliciano, o esclarecimento "não resolve a questão principal, que é a da inconstitucionalidade da TR". "O ideal é que o plenário se manifeste o quanto antes."
A liminar de sábado conseguiu unir órgãos dos mais variados setores. Centrais sindicais, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), PGR e entidades de juízes e procuradores pressionam o STF.
Seis centrais divulgaram uma nota
Os presidentes de CUT, Força Sindical, UGT, CTB, CSB e NCST afirmaram que a liminar "é inaceitável".
A CUT entrou no Supremo com pedido de amicus curiae -amigos da corte- para participar do julgamento da ação da Consif (Confederação Nacional do Sistema Financeiro). Nela, Gilmar concedeu a medida cautelar.
O processo foi ajuizado em 2018. Gilmar viu agora urgência no pedido. O mérito do caso terá de ser analisado pelo plenário do STF, e ainda não há data para julgamento. As atividades voltarão em agosto.
A Consif pediu que a TR seja declarada constitucional. A entidade afirmou que o IPCA-E somado ao juro leva ao "enriquecimento sem causa" do trabalhador.
Na segunda-feira (29), em outra ação, o TST, composto de 27 ministros, ia declarar a TR inconstitucional. Com maioria formada, faltavam ser colhidos 3 votos. O julgamento foi suspenso.
Os ministros da corte trabalhista argumentam que o Supremo já declarou inconstitucional a TR para corrigir precatórios -dívidas públicas reconhecidas em decisão judicial. A lógica, então, se estenderia a créditos trabalhistas.
No pedido da Consif, Gilmar acatou então como argumentos os efeitos do novo coronavírus na economia e o julgamento do TST.
"As consequências da pandemia se assemelham a um quadro de guerra e devem ser enfrentadas com desprendimento, altivez e coragem, sob pena de desaguarmos em quadro de convulsão social", escreveu o ministro.
Na terça-feira (30), o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, teve uma audiência com o presidente do STF, Dias Toffoli, para tratar do assunto. A entidade estimava que até 89% dos processos em fase de execução seriam afetados.
A OAB apresentou recurso à corte. "O cenário resultante da concessão da tutela incidental [liminar] ameaça produzir uma virtual interdição do ramo trabalhista do Poder Judiciário", escreveram no pedido Santa Cruz e mais seis advogados.
Já o procurador-geral da República, Augusto Aras, no recurso rejeitado, rechaçou os argumentos de Gilmar.
De acordo com ele, o ministro "não apresentou fundamentação apta a justificar de forma específica e suficiente os motivos pelos quais a epidemia da Covid-19, o julgamento de arguição de inconstitucionalidade pelo TST e a garantia do princípio da segurança jurídica impõem, conjuntamente e com urgência, a suspensão de todos os processos judiciais".
O procurador-geral pediu que Gilmar volte atrás. Caso a demanda não fosse atendida, com não foi, Aras pediu a limitação da abrangência da cautelar, o que Gilmar fez.
O pleito da Consif ganhou o apoio da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Confederação Nacional do Transporte (CNT).
A Consif, no pedido da cautelar, disse ser "razoável e proporcional" o uso da TR.
A entidade afirmou que, no contexto de pandemia, o IPCA-E mais juro gerará "endividamento, também sem causa, ao devedor trabalhista".