A recente liminar, deferida pelo ministro Gilmar Mendes, que suspendeu todos os processos que envolvam a discussão sobre aplicação da TR ou do IPCA-E na correção monetária dos créditos trabalhistas, traz à baila um tema que impacta tanto o meio jurídico quanto o panorama socioeconômico e institucional. E isso de forma inesperada e surpreendente.
A TR, ou Taxa Referencial, foi criada em 1991, com a finalidade de orientar as taxas de juros vigentes no País num contexto hiperinflacionário, de modo a desindexar a economia e evitar que a inflação do mês anterior influenciasse o seguinte. É utilizada no cálculo de rendimento de títulos públicos, caderneta de poupança e empréstimos habitacionais. Em lapidar julgamento do já longínquo ano de 1992 -- ADI 493/DF --, o próprio Supremo Tribunal Federal pontificou que a TR constitui mero reflexo das flutuações do custo primário da captação de depósitos a prazo fixo, que não se confunde com o índice-reflexo da variação do poder aquisitivo da moeda.
A natureza da TR, portanto, prende-se à remuneração de operações de crédito, sendo totalmente inadequada para o ajuste do valor real da moeda. Recorde-se que a TR, zerada desde setembro de 2017, acumula uma variação de apenas 4,37% entre janeiro de 2015 e maio de 2020, ao passo que a inflação medida pelo IPCA-E, no mesmo período, chegou a 31,33%. Fácil verificar que a questão sobre a correção de valores reconhecidos na justiça, sem o devido cuidado, descamba da análise técnica para contemplar outros interesses -- o de pagar menos aquilo que se deve pela falta de correção.
Sob tais premissas, e lastreado no direito fundamental à propriedade, insculpido no art. 5º, XXII, da Constituição Federal, o mesmo STF, em decisões proferidas nas ADIs 4357 e 4425, reafirmou o precedente de 1992, confirmando a impossibilidade da adoção da TR como fator de atualização monetária dos créditos de precatórios. Pelos mesmos fundamentos, julgou improcedente a RCL 22012, relativa aos créditos trabalhistas em geral. Por sua vez, o Pleno do Tribunal Superior do Trabalho (ArgInc 479-60.2011.5.04.0231) declarou a inconstitucionalidade do art. 39 da Lei 8177/91, que impusera a TR como suposto índice de correção monetária dos créditos trabalhistas. Assim, em decisões colegiadas, com amplo e longo debate, a segurança jurídica foi sendo construída em torno do direito a uma correção em índice adequado (que não a TR).
A reforma trabalhista de 2017, contudo, atreveu-se a insistir na distorção da natureza da TR e na Inconstitucionalidade de sua adoção como suposto critério de atualização monetária dos créditos trabalhistas. Evidentemente, nunca em benefício dos credores.
Como se sabe, dois anos e meio depois, o propalado intuito daquela reforma -- reativar a economia e gerar empregos -- não se concretizou, mesmo considerando apenas o período pré-pandemia. É a previsível consequência de um debate apressado e sem pluralismo. Há que se extrair as lições deste episódio, e voltar a permear o debate das questões atinentes ao mundo do trabalho, sob a ótica de todos os interesses envolvidos -- do capital, do trabalho e o interesse público.
Assim, a necessidade de preservação da atividade econômica não pode justificar a desconsideração da natureza preferencial e alimentar do crédito trabalhista, muito menos que seja tratado como um crédito de segunda classe em relação às demais categorias, uma vez que dele depende diretamente a sobrevivência do trabalhador e de sua família. A própria atividade econômica, sem a recomposição da renda, perde a perspectiva de uma recuperação rápida e plena.
A extravagante unilateralidade no exame da questão em liminar, num fim de semana, em processo em curso há dois anos, e às vésperas do recesso no STF, abala a segurança jurídica. Além disso, há o risco adicional de perda de credibilidade da população nas decisões judiciais, na medida da frustração gerada por uma prestação da justiça que determina a entrega de um valor, mas que a corrosão inflacionária reduza à metade. Pior: sob risco de paralisia, a Justiça do Trabalho, que tem sob sua responsabilidade aproximadamente seis milhões de processos de execução e conhecimento, além de reflexa moratória a devedores certificados e mesmo contumazes, terá em si represados bilhões de reais, produzindo efeito cascata em dezenas de milhões de relações jurídicas e econômicas, no macro e no microcosmo, de consequências sociais comparáveis a uma hecatombe. Pensões alimentícias e alugueres inadimplidos, mútuos e faturas de cartões de crédito não pagos, cheques de compra de víveres devolvidos, desespero, fome e instabilidade social.
A tríplice crise -- sanitária, política e socioeconômica -- vivida pelo País em tempos de pandemia tem enfatizado a importância do fortalecimento das instituições republicanas e da efetividade da Constituição que as engendrou. Nesse tão grave contexto, é imperioso prestigiar, em sua plenitude, a imprescindível atuação da Justiça do Trabalho como ponto e fator de equilíbrio. Com seu profissionalismo e sensibilidade, a Justiça vem respondendo como sempre o fez: dedicando máximo empenho na solução dos conflitos atinentes às relações individuais e coletivas de trabalho, da forma mais abrangente, isto é, tanto sob o prisma da necessidade de preservação da atividade econômica quanto, sobretudo, à luz do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana. A surpresa da liminar abala este equilíbrio.
No enfrentamento do mérito, o Supremo Tribunal Federal, sabedor dessa importância, haverá de se pautar por estes mesmos paradigmas, reafirmando sua própria e nobre missão, mitigando conflitos de interesses de modo a equilibrar justiça e segurança, criar conceitos e validar normas simultaneamente comunicáveis a todos os agentes socioeconômicos.
*Noemia Porto, presidente da Anamatra; Luís Eduardo Fontenelle, conselheiro fiscal da Anamatra e presidente da Amatra 17 (ES)
Noemia Porto e Luís Eduardo Fontenelle*