No cenário mundial de uma emergência na saúde pública, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) faz importante alerta sobre os impactos do novo coronavÍrus também no mundo do trabalho[1] Segundo o Diretor-geral da OIT, referindo-se à covid-19, "isso não é mais apenas uma crise global da saúde, é também uma grande crise do mercado de trabalho e econômica que está causando um enorme impacto nas pessoas."[2]
A OIT anunciou que milhões de empregos poderão ser perdidos em todo o mundo, afirmando que o quadro dependerá "dos desenvolvimentos futuros e de medidas políticas", admitindo o risco, em alto grau, de que até o final do ano o número de desempregados "seja significativamente maior" do que a sua previsão inicial, que era de 25 milhões[3]. Para além da questão do desemprego, registrou-se também preocupação com o subemprego e a pobreza no trabalho. Desemprego, subemprego e pobreza no trabalho são fortes causadores de erosão social. Segundo as projeções, a covid-19 fará "desaparecer 6,7% das horas de trabalho no segundo trimestre de 2020, o que equivale a 195 milhões de trabalhadores em tempo integral no mundo".
O alerta do organismo internacional indicou a necessidade de uma política internacional coordenada para a contenção do colapso social e econômico, a exemplo do que ocorreu com a crise financeira de 2008-2009, a qual, na época, aumentou o desemprego global atingindo 22 milhões de pessoas. Uma política internacional eficiente possui componentes muito claros, construídos a partir da experiência e da análise dos impactos provenientes das sucessivas crises mundiais.
As medidas sugeridas estão baseadas em três pilares, sendo eles a proteção dos(as) trabalhadores(as) no local de trabalho; o estímulo à economia e ao emprego; e o apoio a postos de trabalho e a renda. Na lógica de uma política internacional coordenada, a OIT também listou a ampliação da proteção social e o apoio à manutenção de empregos (ou seja, trabalho com jornada reduzida, licença remunerada, e outros subsídios) e aos benefícios fiscais e financeiros, inclusive para micro, pequenas e médias empresas. Além disso, a avaliação preliminar propõe medidas de política fiscal e monetária, como empréstimos e apoio financeiro a setores econômicos específicos[4].
Nenhuma solução adequada e abrangente, no entanto, prescindirá do diálogo social, que é um dos pilares da OIT, na sua conjugação tripartite, ou seja, uma ferramente poderosa que envolve governos, trabalhadores, empregadores e seus representantes[5], exatamente como indica a Convenção nº 144 do mesmo organismo internacional. Portanto, os sindicatos são importantes atores reguladores do mercado e fazem parte da solução em momentos de crise, e não do problema.
A OIT alerta, ainda, que certos grupos serão afetados desproporcionalmente pela crise do emprego, o que poderá aumentar a desigualdade. Entre os mais vulneráveis estão aqueles que trabalham sem a devida proteção social e com baixa remuneração, como os mais jovens, os idosos, as mulheres e os migrantes.
A recente Resolução 1/2020, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos -- CIDH, intitulada "Pandemia e Direitos Humanos nas Américas", exorta os Estados-membros, em seu item 5, a assegurarem o respeito aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais de sua população e recomenda que garantam rendas e meios de subsistência a todos os trabalhadores, priorizando a proteção dos empregos, dos salários, da liberdade de associação e da negociação coletiva, bem como outros direitos, laborais e sindicais[6]
Todos esses temas, de certo modo, estiveram presentes na nota pública sobre a Medida Provisória nº 936/2020, que institui "Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda", publicada pela Anamatra, que ressaltou a importância, com base no art. 146 da Constituição, de medidas que estabeleçam "um regime diferenciado para as micros e pequenas empresas, que podem ser beneficiadas com a suspensão de débitos de natureza fiscal creditícia e administrativa", indicando-se a pertinência de um grande pacto de desoneração, com o objetivo de que consigam, como contrapartida, manter os empregos. Além disso, houve destaque na nota sobre a necessidade de as medidas legislativas estarem voltadas aos mais vulneráveis e serem juridicamente justas, ressaltando-se a irredutibilidade salarial como garantia inerente à dignidade humana (CF, art. 7º, VI). Na citada manifestação, a entidade alertou que acordo individual para a redução salarial "viola a autonomia negocial coletiva agredindo, primeiro, o sistema normativo que deve vincular todos os Poderes Constituídos e, segundo, a Convenção nº 98 da OIT, que equivale a norma de patamar superior ao das medidas provisórias"[7].
Não é demais ressaltar, que, desde de 2017, a OIT vem alertando o Brasil de que a prevalência do negociado sobre o legislado para a redução ou eliminação de direitos, sem a especificação das situações em que isso pode ocorrer, ou a insistência em pactos individuais, violam a Convenção nº 98 da OIT, que trata do direito de sindicalização e de negociação coletiva, o que foi reiterado no relatório da Comissão de Peritos para a Aplicação das Convenções e das Recomendações (CEACR), lançado em fevereiro de 2020, para as discussões da Conferência Internacional do Trabalho[8].
Em decisão liminar na ADI 6363 MC-DF, o Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, ressaltou a essencialidade do diálogo social, segundo as normas internacionais e as diretrizes da OIT. A referida ação, que teve o julgamento antecipado, com previsão para o dia 16 de abril de 2020, questiona a constitucionalidade de artigos da MP nº 936/2020, que tratam sobre a possibilidade de redução da jornada de trabalho e do salário e a suspensão de contratos de trabalho mediante acordo individual. O Ministro Ricardo Lewandowski, considerando a excepcionalidade do momento e a grave pandemia que atinge todos os países, deu interpretação conforme ao § 4º do art. 11 da Medida Provisória nº 936/2020 à Constituição, para conferir o "mínimo de efetividade" ao diploma constitucional. Na decisão, constou que os acordos individuais previstos na MP nº 936/2020, para a redução de jornada de trabalho e de salário ou para a suspensão temporária do contrato de trabalho deverão ser comunicados pelos empregadores ao sindicato dos empregados, para que possa haver a deflagração do processo de negociação coletiva, importando o silêncio em anuência da entidade sindical com o acordo formalizado. O principal fundamento exposto pelo Ministro foi a possível violação dos direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores, previstos na Constituição, como a redução da jornada de trabalho e a redução salarial, que somente podem ocorrer mediante negociação coletiva (art. 7º, VI e XIII)[9].
No julgamento dos Embargos Declaratórios interpostos da referida decisão, o Ministro Ricardo Lewandowski deixou claro que foram mantidos íntegros os artigos da Medida Provisória e que os acordos individuais formalizados em razão do referido diploma passarão a valer imediatamente, todavia, no caso de a entidade sindical dos trabalhadores identificar a violação de direitos, poderá deflagrar o processo de negociação coletiva e o empregado, posteriormente, aderir ao acordo coletivo ou à Convenção Coletiva de Trabalho, "os quais prevalecerão sobre os acordos individuais, naquilo que com eles conflitarem, observando-se o princípio da norma mais favorável"[10].
É inegável a importância de órgãos de controle para que sejam coibidos abusos e oportunismos, a pretexto da calamidade pública. O STF, como guardião da Constituição, terá o grande desafio de preservar os direitos e garantias fundamentais, como verdadeiros escudos da cidadania, e que não estão suspensos ou tampouco podem ser fragilizados. O que estará em discussão também será qual é o grau de prestígio ao diálogo entre os atores sociais, segundo o modelo tripartite recomendado pela OIT, que o STF afirmará ou negará.