Demanda de grandes escritórios sobe, mas suspensão de prazos afeta autônomos
Flávio Ferreira e Renata Galf
São Paulo
A suspensão dos prazos processuais e a criação do sistema de plantão no Judiciário em razão da crise do coronavírus colocam em risco a renda de milhares de advogados autônomos e de pequenos escritórios. Esses não têm contratos fixos e dependem da conclusão dos casos para receber os pagamentos.
Entre potenciais afetados estão os 47 mil advogados paulistas que atuam na defesa de pessoas de baixa renda, em convênio coma Defensoria Pública. Grande parte desse contingente depende dessa remuneração mensal, mas os valores só são pagos depois do julgamento dos processos.
Já para grandes escritórios - que podem atuar em sistema de trabalho remoto e têm mais estabilidade financeira a crise tem trazido grande demanda de trabalho de consultoria em algumas áreas.
O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) suspendeu na semana passada, devido à crise da pandemia, todos os prazos processuais do país (exceto em ações que envolvam a preservação de direitos e de natureza urgente) e instituiu um regime de plantão no Judiciário até 30 de abril - prazo que pode ser prorrogado.
O setor mais comprometido pela crise envolve a assistência jurídica pública gratuita para pessoas que não têm renda para pagar advogados e custas processuais.
Em SR a tarefa cabe à Defensoria Pública, instituição que recebe recursos do tesouro estadual, tem autonomia administrativa e funcional e conta com 777 defensores.
Como o número não é suficiente para atender à demanda, a instituição mantém convênio com a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) local para que 47 mil advogados possam trabalhar nas causas.
Luiz Eugênio Marques de Souza, da Comissão de Assistência Judiciária da OAB-SP, estima que a suspensão de atividades no Judiciário por um mês pode impedir pagamentos de até R$ 15 milhões aos profissionais vinculados.
O cálculo tem por base os valores mais recentes de repasses. "O maior problema é que não sabemos porquanto tempo isso ainda vai durar!'
Advogados autônomos e pequenos escritórios também sentem a ameaça da queda na remuneração. Só em São Paulo, das32mil sociedades, quase 15 mil são de profissionais que atuam individualmente, segundo a OAB-SP.
A advogada autônoma Daniele Monteiro, que mora em Campinas e atua em casos trabalhistas e previdenciários, não sabe como vai manter a renda nos próximos meses.
"É complicado, não tenho fundo de reserva. Trabalho apenas com ações de trabalhadores e só recebo quando os trabalhadores recebem" diz.
Ela conta que parte das audiências que foram canceladas estavam marcadas havia mais de seis meses. "Meus clientes estão preocupados. É uma angústia dizer que não tenho uma resposta agora, eles têm na gente uma esperança."
O impacto na entrada de novos processos também já está sendo sentido nos escritórios. "Alguns clientes já ligaram pedindo para não fazer pagamentos ou para pagar menos", conta Bruna Sillos, que tem um escritório com mais uma sócia em São Paulo.
"Todos estão inseguros, ninguém consegue assinar nada novo, ninguém quer entrar com nenhuma ação."
O Conselho Federal da OAB na última semana anunciou que criará um fundo emergencial para receber doações voltadas a advogados em crise financeira. OABs estaduais podem prorrogar prazos de pagamento das anuidades da ordem de março a maio.
Segundo o presidente da OAB-SP, Caio Augusto Silva
dos Santos, a entidade está debatendo medidas de apoio financeiro à classe - incluindo a demanda de governos priorizarem linhas de crédito para profissionais da a dvocada.
Nas grandes bancas jurídicas, por outro lado, a procura por informações sobre como proceder frente à crise se intensificou. São clientes com questões sobre proteção de dados digitais e trabalho remoto, revisões contratuais, dúvidas trabalhistas e tributárias.
O escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof, especializado em direito digital, teve um aumento de trabalho de 40% na área de proteção de dados, segundo o sócio-fundador Renato Opice Blum.
"Há questões sobre dados pessoais que podem sofrer vulnerabilidades em função do aumento no número de conexões e sobre a questão mais atual, de dados de saúde", diz.
Flávio Pereira Lima, do escritório Mattos Filho, conta
que no momento a preocupação tem sido mapear possíveis cenários e analisar o efeito da pandemia em cada contrato.
"Em um cenário extremo como esse é preciso mudar a forma de resolução desses conflitos, encontrar soluções negociadas em que todos percam menos", afirma.
O escritório Demarest, por exemplo, criou uma plataforma com conteúdos jurídicos sobre as medidas que vêm sendo tomadas frente à crise e suas repercussões jurídicas. Segundo a advogada e sócia do escritório Maria Helena Bragaglia, é preciso cuidado na hora de rever um contrato.
"Muita gente já está querendo usar o coronavírus como caso de força maior, para minimizar obrigações, mas isso não é automático", diz.
O escritório Lobo de Rizzo organizou webinars para empresários. Entre os temas ab ordados estão impactos trabalhistas e contratuais e repercussões no direito de ir e vir.
O contato com clientes via palestras online também foi adotado pelo Souto Corrêa. Na manhã da última sexta (20), advogados da firma, todos em home Office, se revezaram para tirar dúvidas de cerca de 300 clientes, no Brasil e no exterior.
Entre os autônomos, Daniele Monteiro também diz estar recebendo dúvidas dos clientes. "Mas como eu vou cobrar por informações que envio pelo WhatsApp?", diz.
Apesar da incerteza econômica, ela acredita que manter o Judiciário funcionando normalmente não é boa opção. Advogados previdenciários que atendem pessoas mais velhas ou sem acesso à internet não teriam opção de se comunicar virtualmente com seus clientes, forçando ambos ao contato social, segundo ela.
Maira Machado, que é autônoma e atua em causas de direito criminal e de família, conta que até receber a confirmação do cancelamento de audiências viveu um impasse.
"Eu tinha quatro testemunhas de defesa para levar, e uma delas era filho de uma enfermeira. Comecei a me preocupar por ter que escolher entre exercer uma defesa efetiva e colocar a saúde das pessoas em risco", afirma.
Para além das testemunhas, a advogada Caroline Marchi, do Machado Meyer, aponta que mesmo dar andamento a processos eletrônicos pode ser complicado, já que nem sempre é possível ter acesso a documentos ou até mesmo realizar os pagamentos exigidos durante o processo.
Para lidar com a nova rotina, enquanto a crise persistir, cada um tem criado estratégias distintas. A advogada Amanda Claro, que tem escritório em São Paulo com outras duas advogadas, conta que tem feito reuniões virtuais diárias.
"Estamos tentando levar o trabalho como se não houvesse suspensão, e tentar passar essa tranquilidade para os clientes", relatou.
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"Em um cenário extremo é preciso encontrar soluções negociadas em que todos percam menos"
Flávio Pereira
escritório Mattos Filho
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"Muita gente já está querendo usar o coronavírus como caso de força maior, mas isso não é automático"
Maria Helena Bragaglia
escritório Demarest
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"A área tecnológica está com uma demanda forte"
Renato Opice Blum
escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof
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"Com as medidas das empresas, nem sempre é possível ter acesso a documentos necessários para os processos"
Caroline Marchi
escritório Machado Meyer
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Entenda a medida do CN) e seus efeitos
Qual foi a decisão do CNJ?
O Conselho Nacional de Justiça determinou na última quinta-feira ( 19 ) a suspensão de todos os prazos processuais do país e a criação de sistema de plantão judiciário pelo menos até o próximo dia 30 de abril por causa da crise gerada pela pandemia do novo coronavírus.
O que significa a suspensão dos prazos?
Durante a suspensão, os prazos dos processos judiciais deixam de correr. Quando os prazos forem retomados, eles voltam a contar de onde pararam.
Os prazos foram zerados?
Não, isso aconteceria caso tivesse sido determinada a interrupção dos prazos, o que não ocorreu.
Porquanto tempo os prazos estão suspensos?
Da data de publicação da resolução, que ocorreu em 19 de março, até o dia 30 de abril deste ano. A depender da avaliação nacional diante da pandemia, a medida poderá ser prorrogada.
A decisão vale para processos eletrônicos?
Sim, a suspensão vale tanto para processos físicos como eletrônicos.
Os prazos de todos os processos estão suspensos?
Não, os prazos continuam valendo para processos de natureza urgente e que envolvam a preservação de direitos, como concessão de habeas corpus, questões envolvendo a guarda de menores de idade, prisão domiciliar, invasões de propriedade.
Como será definido quais processos são de natureza urgente?
Essa decisão caberá a cada juiz. Segundo a presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), Noemia Porto, que integrou o comitê, adotou-se um conceito amplo, pois seria muito difícil para o CNJ antever todas as medidas concretas que poderiam ser considerados urgentes.
Segundo Renata Gil Videira, presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), situações envolvendo a crise do coronavírus poderão ser consideradas de caráter urgente, o que pode incluir desde questões trabalhistas até questões envolvendo transporte de pessoas.
Ela deu como exemplo a colação de grau antecipada concedida a alunos do sexto ano de medicina no Piauí, para que eles possam participar do edital do programa Mais Médicos.
A quais órgãos se aplica a determinação?
A todo o Poder Judiciário.
As únicas exceções são o STF (Supremo Tribunal Federal) e a Justiça Eleitoral, que continuam com prazos correndo.
Com os prazos suspensos, os processos ficam parados?
Não. O fato de os prazos estarem suspensos não significa que os processos ficarão parados. Magistrados e servidores continuarão trabalhando em regime de plantão. O que fica paralisado são as datas para que as partes (defesas ou Ministério Público, por exemplo) recorram de uma decisão ou tenham prazo para apresentar uma manifestação.
Como os prazos para as partes deixam de contar, porém, a tendência é que os processos parem em algum momento. Caso um juiz decida, por exemplo, que uma empresa deve indenizar um funcionário,
O prazo para que esse pagamento ocorra (salvo se o caso for considerado urgente), só passa a correr quando os prazos forem retomados. Portanto, enquanto a empresa não realizar o pagamento, este processo ficará parado, apesar da decisão do juiz.
Por que os prazos foram suspensos mesmo para processos eletrônicos?
A avaliação foi de que, com as medidas tomadas em diferentes estados para evitar deslocamento da população, o próprio contato entre partes e advogados para o devido andamento do processo estaria prejudicado.
Inicialmente a posição do presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, era de que apenas processos físicos deveriam ter seus prazos suspensos.
No entanto, após debate entre os presidentes das OABs estaduais, Santa Cruz afirmou que houve entendimento de que seria melhor suspender o prazo de todos os processos.
Noemia Porto aponta que não se sabe se os sistemas teriam condições técnicas de operar normalmente com todos trabalhando remotamente. "Já temos sistemas instáveis, não sabemos como vai ser a manutenção deles quando todos trabalham remotamente", disse.
Os prazos de prescrição também estão suspensos?
Segundo a assessoria do CNJ, os prazos prescricionais, que são levados em conta para que uma acusação caduque, também ficam suspensos.
No entanto, a resolução não menciona esses prazos especificamente.
Para o presidente da Ajufe (Associação dos Juizes Federais do Brasil), Fernando Mendes, que integrou o comitê, eles não estão suspensos. "Há hipóteses legais em que a suspensão do processo acarreta a suspensão do prazo prescricional. Mas a mera suspensão dos prazos não tem esse efeito automático", afirmou. Já Renata Gil tem o entendimento de que os prazos de prescrição também estão suspensos.