Para associação dos magistrados, medida do governo tira condições de subsistência dos trabalhadores e suas famílias. Estado deveria propor ações positivas, afirmam juízes e procuradores
São Paulo - A edição da Medida Provisória (MP) 927, que permite suspensão dos contratos de trabalho por até quatro meses, provocou reações imediatas do mundo jurídico, que condenou a iniciativa do governo. Para a presidenta da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Noemia Porto, a MP tira dos empregados as condições materiais mínimas para o enfrentamento do vírus e para a manutenção de básicas condições de subsistência e de saúde. Em resumo, lança trabalhadores à própria sorte.
Para a Anamatra, o governo, de forma inoportuna e desastrosa, simplesmente destrói o pouco que resta dos alicerces históricas das relações individuais e coletivas de trabalho. Além disso, sua medida tem impacto direto e profundo na subsistência dos trabalhadores e suas famílias, assim como atinge a sobrevivência de micro, pequena e médias empresas, com gravíssimas repercussões para a economia e impactos no tecido social.
Consultado, um desembargador se disse chocado com a lógica do governo. Há situações inconcebíveis para esses tempos, como suspensão contratual sem remuneração adequada, livre pactuação, prorrogação de instrumentos coletivos a critério do empregador, quando necessariamente precisaríamos de ações positivas do Estado em face da proteção aos empregos e à renda. Enfim, não ajudará, mas agravará as situações, analisa.
Auxílio econômico e desoneração
Para o juiz, ao contrário do que está sendo proposto, seria preciso elaborar medidas de auxílio econômico, mediante garantia de manutenção dos postos de trabalho, além de ações como desoneração de tarifas de água e luz. O mais importante: essa medida ignora a participação de sindicatos, como se não existissem. É absurdo, ignoram a participação na elaboração de instrumentos coletivos e adoção dessas medidas.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) também se manifestou contra a MP. A entidade vê com extrema preocupação medidas que ao reverso de manterem o fluxo econômico em mínimo andamento mesmo em meio à crise, interrompem abruptamente a circulação de recursos e expõe uma gama enorme da população a risco iminente de falta de subsistência.
Para o MPT, é plenamente equivocado imaginar um plano de capacitação em que o trabalhador ficará sem receber remuneração ou aporte assistencial do Estado. Em linhas gerais, tem-se um permissivo geral para a suspensão do contato de trabalho, sem qualquer tipo de remuneração ou indenização para o trabalhador, o que além de tudo, acelera a estagnação econômica, critica.
Negociação coletiva e proteção
Antes mesmo de a medida ser anunciada, o MPT havia elaborado uma nota técnica em que recomenda as negociações coletivas para acordar políticas e medidas de proteção ao emprego e de sustentação econômica das empresas. A nota é assinada pelo procurador-geral do Trabalho, Alberto Bastos Balazeiro, juntamente com o coordenador nacional da Promoção da Liberdade Sindical, Ronaldo Lima dos Santos, e a vice-coordenadora Carolina Pereira Mercante.
Os representantes do MPT requerem que sejam priorizados meios alternativos, tais como adoção de trabalho remoto; flexibilização da jornada; concessão de férias coletivas e individuais; concessão de licença remunerada; adoção de banco de horas; suspensão de contrato de trabalho com garantia da renda e outras medidas que garantam a manutenção da renda e salários aos trabalhadores, destaca o Ministério Público.
Se nenhuma dessas alternativas for suficiente, o MPT insiste na negociação coletiva, mesmo que seja para discutir medidas como planos de demissão voluntárias. Diante da situação excepcional, acrescenta, a negociação deve ser flexibilizada, dispensando, por exemplo, a obrigatoriedade de uma assembleia, que poderá ser feita virtualmente.
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Leia na íntegra a nota do MPT. E confira abaixo a manifestação da Anamatra:
A ANAMATRA - Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho -, representativa de quase 4 mil magistrados e magistradas do Trabalho de todo o Brasil, vem a público manifestar seu veemente e absoluto repúdio à Medida Provisória nº 927/2020, que dispõe sobre "medidas trabalhistas" a serem adotadas durante o período da pandemia Covid-19 ("coronavírus").
Na contramão de medidas protetivas do emprego e da renda que vêm sendo adotadas pelos principais países atingidos pela pandemia - alguns deles situados no centro do capitalismo global, como França, Itália, Reino Unido e Estados Unidos-, a MP nº 927, de forma inoportuna e desastrosa, simplesmente destrói o pouco que resta dos alicerces históricos das relações individuais e coletivas de trabalho, impactando direta e profundamente na subsistência dos trabalhadores, das trabalhadoras e de suas famílias, assim como atinge a sobrevivência de micro, pequenas e médias empresas, com gravíssimas repercussões para a economia e impactos no tecido social.Em pleno contexto de tríplice crise - sanitária, econômica e política , a MP nº 927 lança os trabalhadores e as trabalhadoras à própria sorte. Isso acontece ao privilegiar acordos individuais sobre convenções e acordos coletivos de trabalho, violando, também, a Convenção nº 98 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A medida, outrossim, torna inócua a própria negociação, ao deixar a critério unilateral do empregador a escolha sobre a prorrogação da vigência da norma coletiva. Afirma-se a possibilidade de se prolongar a suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses, sem qualquer garantia de fonte de renda ao trabalhador e à trabalhadora, concedendo-lhes apenas um "curso de qualificação", que dificilmente poderão prestar em quarentena, e limitando-se a facultar ao empregador o pagamento de uma ajuda de custo aleatória, desvinculada do valor do salário-mínimo. A norma, outrossim, suprime o direito ao efetivo gozo de férias, porque não garante, a tempo e modo, o adimplemento do 1/3 constitucional. Também como se fosse possível institucionalizar uma "carta em branco" nas relações de trabalho, a referida MP obstaculiza a fiscalização do trabalho, conferindo-lhe natureza meramente "orientadora".Ao apenas pedir o sacrifício individual das pessoas que necessitam do trabalho para viver, a MP nº 927 indica que soluções que impliquem em pactos de solidariedade não serão consideradas, tais como a taxação sobre grandes fortunas, que tem previsão constitucional; a intervenção estatal para redução dos juros bancários, inclusive sobre cartão de crédito, que também tem resguardo constitucional; a isenção de impostos sobre folha de salário e sobre a circulação de bens e serviços, de forma extraordinária, para desonerar o empregador.A Medida Provisória nº 927 retira dos trabalhadores e das trabalhadoras as condições materiais mínimas para o enfrentamento do vírus e para a manutenção de básicas condições de subsistência e de saúde. E, na contramão do que seria esperado neste momento, não promove qualquer desoneração da folha ou concessão tributária - com a exata e única exceção do FGTS, parte integrante do salário. Há omissão, que se converte em silêncio injustificável, quanto à proteção aos trabalhadores e às trabalhadoras informais. É notável a desconsideração sobre a justiça e a progressividade tributárias. Ademais, a forte, e necessária participação estatal, assumindo parte dos salários, não aparece como solução.As inconstitucionalidades da Medida Provisória nº 927 são patentes. A Constituição de 1988 deve ser invocada sobretudo nos momentos de crise, como garantia mínima de que a dignidade dos cidadãos e das cidadãs não será desconsiderada. A Constituição confere à autonomia negocial coletiva, e aos sindicatos, papel importante e indispensável de diálogo social, mesmo, e mais ainda, em momentos extraordinários. Estabelece a irredutibilidade salarial e a garantia do salário-mínimo como direitos humanos. Adota o regime de emprego como sendo o capaz de promover a inclusão social. Insta ao controle de jornada como forma de preservação do meio ambiente laboral, evitando que a exaustão e as possibilidades de auto e de exploração pelo trabalho sejam fatores de adoecimento físico e emocional.A presente crise não pode, em absoluto, justificar a adoção de medidas frontalmente contrárias às garantias fundamentais e aos direitos dos trabalhadores. Impor a aceitação dessas previsões, sob o argumento de que ficarão todos desempregados, não é condizente com a magnitude que se espera do Estado brasileiro. Os poderes constituídos - Executivo, Legislativo e Judiciário e a sociedade civil são corresponsáveis pela manutenção da ordem constitucional. Em momentos como o presente é que mais se devem reafirmar as conquistas e salvaguardas sociais e econômicas inscritas, em prol da dignidade da pessoa humana e do trabalhador e da trabalhadora, do desenvolvimento sócio-econômico e da paz social.
Redação RBA