Duas medidas provisórias (MPs) e a revogação de 75 portarias, dois anos após o início da reforma trabalhista, mudaram as regras para trabalhadores no primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro. As mudanças previstas na reforma da Previdência, aprovada em 2019, também terão um impacto para o grupo, a médio e longo prazo, por dificultarem o acesso ao benefício integral.
Chamada MP da carteira de trabalho verde e amarela, a proposta que faz diversas alterações na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), inclui a taxação de seguro-desemprego e a redução do poder do Ministério Público do Trabalho (MPT) precisa ser votada até 20 de fevereiro de 2020 para não perder a validade.
Por ser uma medida provisória, todas as mudanças incluídas no texto já estão em vigor, mas precisam do aval do Congresso para manterem a eficácia após esse prazo. A lógica é contrária à tramitação de um projeto de lei, que precisa ser aprovado por comissões e pelo plenário da Câmara e do Senado para entrar em vigor, com maior transparência e possibilidade de discutir o conteúdo proposto.
Parte dessas mudanças já estava em proposta anterior, chamada de “MP da liberdade econômica”, enviada pelo ministro Paulo Guedes e pelo presidente em abril. O texto original não incluía mudanças trabalhistas, que foram acrescentadas pelo relator, deputado Jerônimo Goergen (PP-RS) e, em parte, rejeitadas pelo Congresso.
Na avaliação da presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho), Noemia Garcia Porto, ambas as MPs foram usadas de forma abusiva por não respeitarem previsões constitucionais, como o fato de tratarem de matéria urgente e relevante. “O que a gente notou em 2019 foi um retorno ao passado. Essa tentativa de fazer a medida provisória cumprir o papel do que seriam projetos de lei. Isso é muito agressivo para democracia”, afirmou Porto ao HuffPost Brasil.
A jurista também lembra que não foi respeitada a proibição de parlamentares incluírem os chamados “jabutis” ― temas diferentes da proposta original ― na MP da liberdade econômica, e aponta controvérsias da MP da carteira de trabalho verde e amarela.
“Toda argumentação seria para tentar resolver um problema de empregabilidade dos jovens até 29 anos. Mas embutiram mudanças graves na legislação do trabalho que não têm nenhuma relação com a empregabilidade do jovem”, afirmou a presidente da Anamatra. “O que justifica, por exemplo, aumentar a jornada de trabalho dos bancários? O que justifica intensificar contrato individual entre trabalhadores e empregadores em temas como jornadas? Nada justifica isso. Há um abuso evidente.”
Devido à falta de consenso sobre a MP da carteira verde e amarela, é possível que o texto perca a validade no Congresso e o governo envie um projeto de lei com o mesmo conteúdo.
Se isso ocorrer, Porto diz que o Congresso deve olhar para as relações jurídicas do período em que a medida ficou em vigor. “Estamos vendo o solavanco de normas jurídicas causando um ambiente de insegurança jurídica, o que é contraproducente para a economia. Não gera nenhum tipo de inserção qualificada dos trabalhadores no mercado de trabalho. São medidas açodadas e que não têm nenhum saldo positivo até agora”, afirmou.
Um dos principais articuladores dessa agenda é o secretário especial da Previdência, Rogério Marinho, relator da reforma trabalhista no governo de Michel Temer. Alinhado a Paulo Guedes e com bom trânsito no Congresso, ele defende a redução de obrigações do empregador e do acesso do trabalhador à Justiça do Trabalho.
A reforma relatada por Marinho em 2017 enfraqueceu sindicatos, estabeleceu que acordos coletivos valem mais do que a legislação e criou nova modalidades de emprego, como o trabalho parcial (com jornada reduzida) e o contrato intermitente, em que há pouca previsibilidade de jornada e de remuneração. No mesmo ano, o Congresso também aprovou a lei da terceirização, que permitiu que as empresas terceirizassem suas atividades-fim.
Justiça do Trabalho
Com a reforma, o trabalhador passou a ter de pagar os custos do processo e os honorários advocatícios caso perca a causa na Justiça do Trabalho, ainda que parcialmente. Como resultado, o número de ações trabalhistas caiu, o que atende a uma demanda dos empregadores. De acordo com o Tribunal Superior do Trabalho (TST), houve uma redução de 36% nas ações trabalhistas entre janeiro e setembro de 2018 em relação ao mesmo período de 2017.
Para o presidente da ANPT (Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho), Ângelo Fabiano Farias da Costa, a redução na judicialização não é o resultado de menos conflitos.“O acesso à Justiça tem obstáculos depois da reforma trabalhista. Diminuiu muito [o número de ações] não porque diminuiu o conflito, mas porque se criaram situações em que o trabalhador pede três, quatro coisas, ganha duas e sai devendo”, diz Costa.
Ele aponta que, além da dificuldade de arrumar um emprego, há a fragilização dos vínculos de trabalho, de forma que os trabalhadores têm menos direitos. ”[E mesmo] quando têm direitos, é muito mais barato dispensar hoje um trabalhador”, afirma.
Na avaliação do especialista, as mudanças incluídas nas MPS que limitam a atuação do Ministério Público do Trabalho (MPT) agravam esse cenário. “Para fechar o caixão, querem ‘tirar o Estado do cangote do empregador’ tirando o poder do Ministério Público do Trabalho e da fiscalização do trabalho”, aponta.
“Há hoje dificuldade no plano individual para o trabalhador acessar a Justiça; no plano dos sindicatos, que sem financiamento não conseguem representar trabalhadores; e as instituições trabalhistas do Estado estão tendo sua atuação diminuída e engessada. Dessa forma, fica muito mais fácil para o mau empregador descumprir direitos, reduzir direitos e gerar concorrência desleal”, completa Costa.
De acordo com a MP da carteira verde e amarela, os Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), acordos entre Ministério Público do Trabalho e empresas, terão validade limitada ao máximo de dois anos. A prerrogativa de interditar atividade ou equipamento e de embargar obra passa para a autoridade máxima regional em matéria de inspeção do trabalho, em vez dos auditores do trabalho. De acordo com o presidente da ANPT, muitas vezes esse cargo é indicado por políticos, de modo que “poderia haver influência política para não interditar uma obra ou equipamento”.
A equipe econômica também limitou o valor das multas em R$ 100 mil e o valor passa a ser destinado a uma conta única do Tesouro Nacional. Antes, os recursos visavam à reconstituição dos bens lesados. “Tem que haver uma relação entre o que foi lesionado e a destinação da multa. Ir para uma conta única do governo parece uma forma de gerar receita para o governo federal, sem qualquer controle, interferindo na atuação do MPT”, critica Ângelo Costa. O especialista também ressalta que uma medida provisória não poderia tratar de matéria de direito processual.
Quanto à necessidade de modernização da legislação trabalhista, argumento dos defensores das mudanças legais, os especialistas concordam com alterações, mas de forma a garantir direitos. “Para nós, modernizar não é pura e simplesmente diminuir direitos. Há vários temas da atualidade que exigiriam, com urgência, marcos regulatórios para discussão no Congresso Nacional”, afirma a presidente da Anamatra.
Entre os temas que precisam de atenção do Legislativo são apontados os trabalhadores de aplicativos; novas profissões, como youtubers; o trabalho infantil artístico e no setor desportivo e a melhoraria da segurança do trabalho. “Permanecemos como quarto país do mundo no ranking de acidentes do trabalho. Isso mostra que nossos marcos regulatórios de proteção ambiental não estão sendo suficientes para dar conta desse fenômeno. Estão aí as tragédias de Mariana e Brumadinho”, ressalta Noemia Garcia Porto.
Geração de empregos
O principal argumento a favor das mudanças era o de gerar mais emprego. Apesar de uma leve queda, de 11,6% em novembro de 2018 para 11,2% em novembro de 2019, a taxa de desemprego segue persistente e as vagas criadas são precárias.
No terceiro trimestre de 2017, a taxa de informalidade do mercado de trabalho era de 40,5%. No mesmo período de 2019, passou para 41,4%. Entram nessa categoria quem tem emprego sem carteira de trabalho, como ambulantes.
Houve um aumento também no desalento, quando as pessoas desistem de procurar emprego. Os dados são do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Por outro lado, os anos de 2018 e 2019 voltaram a registrar saldo positivo de vagas, de acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), revertendo parte do quadro negativo dos três anos anteriores. Entre novembro de 2017 a setembro de 2019 foram gerados 962 mil postos de trabalho, mas o número ainda é abaixo da previsão do governo Temer com a reforma trabalhista, de 6 milhões de empregos.
Entenda as mudanças para trabalhadores em 2019
1) Fim do Ministério do Trabalho
O governo de Jair Bolsonaro extinguiu o Ministério do Trabalho, criado em 1930. A maior parte da estrutura foi incorporada à pasta da Economia, sob o comando de Paulo Guedes.
Cabia ainda ao Ministério a fiscalização e controle da legislação trabalhista pelas empresas, como o cumprimento da quota de deficientes, além da criação das Normas Regulamentadoras (NRs) relativas à segurança e medicina do trabalho, definição de diretrizes de registro profissional, seguro-desemprego e abonos salariais.
A pasta também presidia o conselho do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) e geria o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
2) Fim dos colegiados trabalhistas
Editada em agosto por Rogério Marinho, a Portaria 972/19 extinguiu 75 portarias que criaram colegiados como a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti) e a Comissão Tripartite da Convenção 174 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Ratificado pelo governo brasileiro em 2001, o tratado se refere à adoção de medidas para prevenção de grandes acidentes industriais.
O deputado Ivan Valente (PSol-SP) chegou a apresentar um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para derrubar a portaria do Ministério da Economia, mas o texto não foi votado pela Câmara.
3) Flexibilização do ponto do trabalhador
Estabelecimentos com menos de 20 trabalhadores não precisam registrar os horários de trabalho dos funcionários. Também passou a ser permitido o ponto por exceção, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho. Nessa modalidade, o trabalhador só registra se houver algum tipo de mudança no turno, como trabalhar horas a mais.
Para o presidente da ANPT, a medida, em vigor com a MP da liberdade econômica, prejudica o trabalhador. “Na maioria das vezes, isso vai gerar um não controle de ponto. Com isso vai trabalhar mais e ganhar menos do que se tivesse um controle devido”, diz Costa.
4) Empresas sem controle
A MP da liberdade econômica passou de 10 para 20 trabalhadores o número máximo para empresas serem obrigadas a um controle formal. Para a presidente da Anamatra, a medida é controversa porque se relaciona a medidas de segurança e prevenção de acidentes. “Um dos indicadores claros de acidentes é a intensificação do trabalho. Se não controla a jornada, você potencializa esse adoecimento”, afirma Noemia Garcia Porto.
5) Acesso a bens dos empresários
Outra mudança trazida pela MP da liberdade econômica foi dificultar o acesso a bens dos sócios de empresas quando há condenação da empresa em sentença transitada em julgado. A legislação anterior facilitava a responsabilização de empresários quando as empresas comandadas por eles estavam inadimplentes com trabalhadores.
6) Livre iniciativa
Também deve haver uma discussão no campo jurídico sobre a previsão da MP da liberdade econômica para que o princípio da livre iniciativa prevaleça nas disputas. “A Constituição, em todo momento, fala em valor social do trabalho e da livre iniciativa. Qualquer medida de incentivo à livre iniciativa vai ter de estar conjugada com o patamar de valorização social do trabalho”, afirma a presidente da Anamatra.
De acordo com a jurista, os impactos da nova lei devem ser sentidos nos tribunais em 2020 porque, em geral, os trabalhadores iniciam ações judiciais após o fim do contrato com o empregador.
7) Trabalho aos domingos
Excluída do texto final da MP da liberdade econômica, a ampliação do trabalho aos domingos voltou na MP da carteira verde e amarela. Os trabalhadores têm direito a um domingo de folga a cada 4 semanas. Na indústria, o prazo é de 7 semanas. O objetivo do descanso aos domingos é para que o trabalhador possa conviver com familiares.
8) Taxação do seguro-desemprego
Para compensar a redução da contribuição patronal com o INSS nas vagas destinadas a jovens, a MPda carteira verde e amarela passa a descontar 7,5% sobre o benefício do seguro-desemprego. Com a mudança, esse valor vai para a aposentadoria daquele contribuinte.
9) Fim do registro profissional
A MP da carteira verde e amarela acabou com a obrigatoriedade de registro de trabalho para profissões que não tenham conselhos ou ordens de classe. São elas: aeronauta, arquivista, atuário, corretor de seguro, estatístico, guardador e lavador de carros, jornalista, músico, químico, radialista, secretário e sociólogo.
10) Jornada dos bancários
Além de permitir a abertura de agências bancárias aos sábados, a MP da carteira verde e amarela também estabelece que a jornada dos bancários será de oito horas diárias, em vez de seis horas. Aqueles que exercem a função de caixa permanecem com a carga horária de até 30 horas semanais.
Por Marcella Fernandes