Por conta de uma mudança aprovada na Reforma Trabalhista, a indenização por danos morais aos trabalhadores vítimas do rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho (MG), está limitada a 50 vezes o salário que recebiam atualmente. A regra, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo ex-presidente Michel Temer, passou a valer em novembro de 2017. Antes, a indenização por dano moral poderia ser maior.
"É uma das maiores tragédias trabalhistas da história do país. A grande maioria das vítimas são trabalhadores que perderam suas vidas nas dependências da empresa", afirma o procurador-geral do Ministério Público do Trabalho, Ronaldo Fleury. "Mas as indenizações às famílias de todos os que estavam trabalhando na Vale estão limitadas a 50 vezes o salário deles graças à Reforma Trabalhista."
Na Reforma Trabalhista, o artigo 223-G da lei 13.467/2017 estabeleceu que haveria uma gradação para a concessão do dano moral que levaria em conta uma série de fatores. E, com base em uma escala de gravidade, ficou estabelecido patamares de indenização. Para danos morais gravíssimos, o teto é de 50 salários do trabalhador.
A limitação para 50 vezes o último salário da vítima é duramente criticada por sindicatos, procuradores e juízes. Em dezembro, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade 5870 contra esse teto no Supremo Tribunal Federal. A procuradora-geral da República Raquel Dodge pronunciou-se no caso a favor do pedido da Anamatra, ou seja, pela inconstitucionalidade da regra. O relator do caso é o ministro Gilmar Mendes.
"A Anamatra vinha alertando que, nos casos envolvendo acidentes de elevada gravidade, as limitações estabelecidas pela Reforma Trabalhista para as indenizações extrapatrimoniais gerariam um quadro de extrema injustiça. Com esse horrível quadro de Brumadinho, a reforma passa a representar um contexto de iniquidade às famílias que pretendam reclamar em juízo pelos óbvios danos morais decorrentes da morte de seus entes queridos", afirma o presidente da Anamatra, Guilherme Feliciano. Segundo ele, isso reforça a inconstitucionalidade dessa regra ao ferir o princípio da dignidade humana, a independência técnica do magistrado para fixar indenização em relação aos elementos concretos do caso e a isonomia de medir as pessoas por seu salário.
"Você coloca um preço na vida. O sofrimento de perder um parente custa no máximo esse valor. Isso é complicado até pelo caráter pedagógico para a empresa. Uma das funções do dano é que, sem causar enriquecimento ilícito, tenha uma função pedagógica para que o empregador atue para nunca mais voltar a causá-lo", explica Ivandick Rodrigues, professor de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogado trabalhista.
De acordo com ele, além do dano moral, há o dano material. A família de um trabalhador morto pode pedir uma pensão mensal vitalícia sob a justificativa de que ele ou ela sustentava a casa. Esse valor vai sendo reduzido à medida em que os filhos atingem a maioridade. Mas a indenização pela perda perda da pessoa conta agora com esse limite, uma antiga demanda de setores empresariais.
O mesmo artigo da Reforma Trabalhista prevê que a indenização dobre no caso de reincidência, mas apenas entre "partes idênticas". Ou seja, poderia valer apenas para os trabalhadores atingidos por Mariana que sobreviveram e, agora, estavam e Brumadinho.
Esse teto de 50 vezes o salário (tomando como referência o salário mínimo válido hoje, de R$ 998,00, equivale a R$ 49.900,00) poderia ser maior se o Congresso Nacional tivesse aprovado a Medida Provisória que amenizava algumas mudanças da Reforma Trabalhista. De acordo com o professor do Mackenzie, na MP havia um dispositivo que tomava como base para o teto não o salário do trabalhador, mas o limite dos benefícios da Previdência Social, ou seja, R$ 5.645,80. Nesse caso, o teto a ser pago seria de R$ 282.290,00. Ainda baixo para o preço de uma vida, mas com um mínimo indenizatório cinco vezes maior que o de hoje.
Vale lembrar que essa mudança estava para ser feita no Senado Federal, mas a instituição abriu mão de sua função de casa revisora para acelerar o processo de aprovação da Reforma Trabalhista, passando o texto que veio da Câmara sem modificações e fechando um acordo com Michel Temer para o encaminhamento de uma MP. O problema é que ela acabou caducando porque a Câmara dos Deputados não a analisou a tempo.
Pior, o texto da Medida Provisória afirmava que os parâmetros, inclusive dos 50 salários, "não se aplicam aos danos extrapatrimoniais decorrentes de morte". Ou seja, caso a MP tivesse sido aprovada, os trabalhadores mortos não teriam essa limitação.
Tragédia humana, ambiental e trabalhista
Com dezenas de mortos confirmados e mais de 200 desaparecidos, o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho (MG), deve se configurar como uma das maiores tragédias trabalhistas do país. Ao que tudo indica, a maioria dos mortos serão de empregados da empresa ou de suas terceirizadas, cuja saúde e segurança estavam sob responsabilidade direta da mineradora.
"Há uma tragédia que envolve o meio ambiente natural, mas há também uma relacionada ao meio ambiente do trabalho", explica o presidente da Anamatra. "A despeito das responsabilidades criminais a serem apuradas, esse evento configurou um dos maiores e mais graves acidentes de trabalho do país. Portanto, há uma responsabilidade trabalhista que deve investigada e configurada."
A queda de um avião ou o incêndio em uma casa de shows também envolvem questões trabalhistas, mas essa dimensão acaba encoberta pelo fato do número de vítimas que estavam trabalhando no momento dessas tragédias ser pequeno em relação ao total. Em Brumadinho, ocorreu o inverso.
"Quando é feito um plano de contingenciamento e de emergência, deve-se calcular qual o curso da lama em caso de rompimento. Se foi bem feito, mostraria que era exatamente onde estava o refeitório e a administração. Não há duvida que houve negligência da empresa", afirma Fleury.
De acordo com o procurador-geral do Trabalho, "o MPT adotará medida judiciais como adotou no caso da Samarco, ainda pendente de julgamento". Ele informa ter criado um grupo para agilizar medidas de correção e responsabilização. "Essa tragédia demonstra a precariedade das condições de trabalho a que estão expostos os trabalhadores no Brasil e a imprescindibilidade dos órgãos de defesa dos direitos sociais."
Em nota, a Procuradoria-Geral do Trabalho afirmou que foram demandadas medidas preventivas após o caso de Mariana que poderiam ter ajudado a evitar essa nova tragédia, mas que a empresa não as atendeu, entre elas, a verificação da estabilidade da mina, condições segurança do trabalho e realização de estudos e projetos exigidos pelos órgãos fiscalizadores. Por conta disso, foi proposta uma ação civil pública que ainda se encontra em análise pela Justiça.
Um trabalhador da mineração que perdeu a filha em Brumadinho e pediu para não ser identificado afirmou que ela vivia com medo, mas não tinha alternativa de emprego na região, então ela continuava trabalhando.
"É certo que virão demandas por reparações de danos materiais e morais atinentes a trabalhadores diretos e terceirizados, e que deverão ser julgadas pela Justiça do Trabalho", afirma o presidente da Anamatra. "Se as reparações de danos viessem aos moldes das deferidas nos Estados Unidos, para usar uma comparação recorrente, seriam bilionárias."