Guilherme Feliciano e José Pastore Foto: Agência O Globo Compartilhe por Concordamos em discordar
José Pastore, paulista, 83 anos
O que faz e o que fez: economista especializado em relações do trabalho, professor aposentado de economia da USP
Guilherme Feliciano, paulista, 45 anos
O que faz e o fez: juiz trabalhista e presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). É professor de Direito do Trabalho na Universidade de São Paulo (USP)
Se entrasse em vigor a "carteira de trabalho verde e amarela", proposta de Bolsonaro em que o trabalhador poderia optar por um regime no qual o contrato individual se sobrepõe à Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), quais seriam os direitos mantidos e quais seriam os "negociáveis"?
Guilherme Feliciano A princípio, a promessa é manter os direitos constitucionais, mas a maioria dos direitos trabalhistas já está constitucionalizada, como 13º salário, descanso semanal remunerado, férias, fundo de garantia, seguro-desemprego, limite da jornada de trabalho, salário mínimo. O que não está na Constituição é, por exemplo, o intervalo para almoço - a intrajornada - e o intervalo entre dois períodos de trabalho - a entrejornada. Ainda assim, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) entende que esses intervalos garantem a saúde do trabalhador. Ou seja, a regra tem raiz num direito constitucional. A intenção da nova carteira deve ser criar uma classe que não teria acesso a convenções e acordos coletivos, que garantem direitos como cesta básica, estabilidade convencional, direito a creche, redução da jornada. Mesmo assim, haverá uma discussão, porque é a Constituição que garante o direito a convenções e acordos obtidos pelos sindicatos.
José Pastore É claro que os direitos constitucionais do Artigo 7º deverão ser mantidos, porque se aplicam a todos os cidadãos brasileiros e devem ser respeitados. Pode ser negociado apenas o que está em lei ordinária, acordos ou convenções coletivas. No acordo coletivo, por exemplo, pode estar estabelecido que os empregados vão trabalhar de segunda a sexta, com sábados livres. Se a carteira for aprovada, poderiam passar a dizer: "Vamos trabalhar de segunda a sábado". Intervalo intrajornada também pode ser negociado, com redução do tempo de almoço.
Essa ideia precisaria passar pelo Congresso, em um projeto de iniciativa do governo. Seria necessário alterar a Constituição?
GF Se for feito por lei, minha leitura pessoal é que seria inconstitucional, porque quebra a isonomia entre os trabalhadores, que é um princípio constitucional. Se for uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), surge a discussão de como suprimir ou relativizar os direitos do Artigo 7º sem alterar diretamente o princípio da isonomia. Parece que a intenção é fazer por lei, para não contrariar o discurso de que não vão mexer em direitos constitucionais.
JP Depende do alcance pretendido. Se for mexer com algum direito constitucional, tem de ser por PEC. Mas a reforma trabalhista já diz que trabalhadores que ganham mais de R$ 11 mil e têm diploma universitário podem negociar seus contratos, porque são "hipersuficientes". Se for para mudar só a abrangência dessa hipersuficiência e estendê-la aos trabalhadores mais pobres, pode ser uma lei ordinária.
A proposta não cria uma casta de trabalhadores sem a proteção da lei?
GF A reforma já criou uma subclasse, a dos hipersuficientes econômicos, aqueles que ganham mais de R$ 11 mil e têm ensino superior e podem negociar seus contratos individualmente com o patrão. Convenhamos que quem ganha R$ 11 mil não é nenhum milionário, mas a reforma disse que quem ganha isso não precisa da proteção do sindicato. Nossa visão é que esse ponto da reforma é inconstitucional e fere a isonomia. Bolsonaro quer, agora, extinguir esse limite de renda e permitir que exista uma classe de trabalhadores que possa negociar seus contratos.
JP Mas hoje já não existe casta? Na realidade, existem muitas castas, cruéis, de trabalhadores que não têm proteção nenhuma. O trabalhador fica velho e não tem aposentadoria. Fica velho e não tem auxílio-doença. Não existe uma casta mais cruel que essa, da informalidade. Com a "carteira de trabalho verde e amarela", as partes podem ignorar por completo a CLT, o que cria um diferencial. Seria um incremento do que previu a reforma trabalhista, um avanço na flexibilização.
Em que circunstâncias um acordo entre trabalhador e empregador pode se sobrepor à lei?
GF Para os trabalhadores que não são hipersuficientes, um acordo individual só pode prevalecer sobre a lei se melhorar a condição do trabalhador. Assim como um acordo coletivo ou convenção só pode melhorar a lei, e esta só pode avançar em relação à Constituição. Se a lei diz que as horas extras serão remuneradas em 50%, dá para fazer um acordo individual aumentando, mas não diminuindo. Existe um princípio de proibir o retrocesso social.
JP O trabalhador hoje não pode negociar praticamente nada com seu empregador. Com a "carteira verde e amarela", seria criado um "passo" entre a informalidade e a CLT. O informal não tem proteção, o "verde e amarelo" já teria alguns direitos a ser negociados, o carteira azul teria outros direitos.
A reforma trabalhista teve saldo positivo até agora?
GF Quando a reforma começou a tramitar, os defensores vinham com a promessa de gerar emprego, de diminuir a insegurança jurídica e a quantidade de ações na Justiça do Trabalho. Se foram criados empregos formais, foi por causa do avanço que houve na economia, e foram cerca de 300 mil em um ano, um terço do que se projetava. Os postos de trabalho informal aumentaram em quase 1 milhão. Então, a promessa de diminuir a informalidade foi um fracasso. A insegurança jurídica aumentou, porque não se sabe quais trechos da reforma serão mantidos ou alterados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A diminuição de ações trabalhistas aconteceu mesmo, especialmente por causa da regra que determina que, se perder, o trabalhador deve pagar. Se eu perder, vou sair devendo, então desisto de entrar com uma ação. Houve uma queda de 45% de ações novas. Mas, à medida que a reforma e seu entendimento se consolidarem, esse patamar pode voltar a ser o que era antes.
JP Muito positivo. Primeiro, reduziu enormemente o conflito trabalhista. Cada ação que entra na Justiça do Trabalho vem com bem menos pedidos que antes. Ficou mais barato para a empresa administrar uma ação desse tipo. É mais barato contratar um advogado para defender três pleitos que 30. Além disso, a reforma está abrindo a possibilidade de outras maneiras de contratação, estabelecendo jornadas de trabalho diferentes, muito mais flexíveis. Os juízes têm mais tempo para analisar os casos, as sentenças estão se tornando melhores, de mais qualidade. Nas Varas, há mais acordos do que havia antes. Os valores negociados nos acordos têm sido até 25% mais altos.
É melhor criar vagas de emprego intermitente, com menos proteções legais, ou não criar vaga nenhuma?
GF O trabalho intermitente deveria colocar na formalidade o trabalhador que faz bico, mas isso não aconteceu. Em termos líquidos, descontando das vagas criadas as que foram extintas, foram muito poucos contratos de trabalho intermitente: 41 mil vagas em um ano. A questão é que há trabalhadores registrados como intermitentes que nunca são chamados para trabalhar. Vão viver de bico, e não há controle sobre isso. Ou seja, é contabilizado como formal um trabalhador que vive na informalidade - um absurdo. É uma má política de números, que só serve para inflar o saldo de vagas ocupadas.
JP Se não se cria vaga nenhuma, ficamos no desemprego. Isso compromete renda e dignidade. Como a legislação é engessada, o que a sociedade tem feito é criar vagas informais. Uma pequena ou média empresa, que não tem muita certeza se vai vender seu produto, quer contratar informalmente. Nesse caso, o trabalhador tem zero direito. Mas a mudança na lei não consegue gerar emprego. O que gera emprego é crescimento e investimento. A lei só pode criar condições favoráveis para gerar modalidades de emprego se a empresa tiver dinheiro para contratar, o que se dá por outros motivos.