PL 6.299/2002: um pacote do veneno na estrada do trabalho rural
Rodrigo Trindade
De todos os projetos em tramitação hoje no Congresso Nacional, o mais destrutivo e com fôlego de avanço chama-se PL 6.299/2002. Em resumo, pretende revogar lei atual, consolidar novo regramento dos produtos de controle ambiental e facilitar rotinas para uso dos venenos agrícolas. Praticamente toda a população tende a ser afetada, mas ninguém antes dos trabalhadores rurais.
A proposição estabelece diversos simplificadores para produção e utilização de agrotóxicos. Para começar, substituindo a palavra. Como no romance 1984, em que George Orwel apresenta a novilíngua (newspeak), que bane e fabrica vocábulos para ampliação do controle estatal, a nova lei prefere a expressão “produtos de controle ambiental”. Mas que fique claro: é sobre liberação de agrotóxicos que trata o projeto.
Diversas entidades da sociedade civil buscam intervir no debate legislativo e apresentar suas impressões sobre os efeitos que a facilitação de defensivos agrícolas pode acarretar. A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra participa desse esforço e apresentou nota técnica, com muitos dos dados tratados nesse artigo. Das muitas narrativas possíveis, apresentou a do trabalhador rural.
Não basta sugerir que pode fazer mal
O projeto centraliza no Ministério da Agricultura, tanto a avaliação de novos produtos, quanto a autorização de registros. Assim o faz em detrimento da atual estrutura tripartite de regulação estabelecida na Lei n. 7.802/1989. Preocupa a redução de responsabilidade de atuação de técnicos dos Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente na produção das necessárias análises que precedem a atualização de venenos.
A concentração em organismo apenas formalmente vinculado a orientações de produtividade agrícola amplia risco de aprovação de substâncias tendencialmente prejudiciais à saúde de aplicadores. Em estudo próprio, constatou-se que a ausência de fiscalização no acompanhamento técnico e no controle de agrotóxicos faz com que a tomada de decisão do agricultor seja baseada apenas na produtividade, sem levar em conta outros fatores, relativos à saúde e ao meio ambiente.[1]
Até hoje, regras sobre uso de agrotóxicos são estabelecidas a partir de orientações de saúde – não apenas para consumidores, mas relacionadas àqueles que irão manusear as substâncias. Afinal, o uso de agrotóxicos tende a produzir problemas de saúde muito mais intensos e imediatos em trabalhadores rurais que em consumidores.
Há diversos estudos que reconhecem nexo de causalidade entre exposição de agricultores a agrotóxicos e prejuízos à saúde. Em pesquisa com análise sanguínea de trabalhadores rurais, constatou-se que 50% dos entrevistados estavam intoxicados[3]. Os fatores de risco identificados foram ausência de uso dos equipamentos de proteção individual e curto intervalo de tempo entre as recorrentes manipulações dos agrotóxicos. A mesma pesquisa relacionou estes fatores e concluiu que agricultores desprotegidos têm chances de intoxicação aumentadas em 72%. Aqueles que entram em contato com o produto em um intervalo de tempo menor que 15 dias possuem 43% a mais de chances de intoxicação.
Conforme dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas, em 2008, os agrotóxicos agrícolas responderam por 5% das intoxicações e 33% das mortes humanas por intoxicações. Somando-se com os equivalentes domésticos, produtos veterinários e raticidas, os agrotóxicos foram responsáveis por 13% dos casos e 46% dos óbitos por intoxicações. Entre as intoxicações por agrotóxicos agrícolas, 24% ocorreram após exposições ocupacionais, porém, em tema conhecido pela recorrência do sub-registro, tais dados são apenas a parte visível do problema, e apenas podem ser contabilizados como os episódios mais graves.
Dois órgãos ligados às Nações Unidas – Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Organização Mundial de Saúde (OMS) estimam que nos países em desenvolvimento, os agrotóxicos causam, anualmente, cerca de 70 mil intoxicações agudas e crônicas que evoluem para óbito. A essas, somam-se cerca de 7 milhões de doenças agudas e crônicas não fatais[4]. Também apontam que, as intoxicações por agrotóxicos matam um trabalhador rural a cada quatro horas[5].
A pretendida simplificação no processo de avaliação de risco é tendencialmente prejudicial à saúde dos trabalhadores rurais. É ilusório estabelecer que singela possibilidade de uso de equipamentos de proteção individual forme circunstância de exclusão do risco por parte de aplicadores.
Estudos também demonstram que 64% dos agricultores entrevistados não praticavam a leitura dos rótulos dos produtos[6] e a linguagem pouco acessível é um dos maiores entraves lançados no entendimento dos usuários[7]. Apenas 23,3% dos trabalhadores rurais costumam ler o receituário agronômico e 30% compreendem todas as informações contidas na bula dos agrotóxicos. Somente 36,7% revelam compreender totalmente as tarjas, e 20% entendem todos os desenhos presentes nos rótulos dos agrotóxicos[8].
A toxidade das substâncias manuseadas, aliadas ao desconhecimento sobre importância de proteção faz com que ainda haja baixos índices de uso eficiente de equipamentos de salvaguarda da saúde. Observações estatísticas mostram que a maior parte dos trabalhadores rurais conta com algum tipo de EPI, mas os utilizam de forma parcial e inadequada. Os EPIs utilizados, todavia, não são os que efetivamente neutralizam contato prejudicial com agrotóxicos: 99% dos produtores usam botas; 95% usam máscaras; 87,5% usam luvas; 63,6% usam calça e jaleco; 51,7% usam boné; 43,7% usam avental e 43,7% usam viseira. Em relação ao armazenamento dos agrotóxicos, 60% revelaram não sinalizá-los adequadamente. E mais, 70% não sabem diferenciar um agrotóxico contrabandeado de um agrotóxico legal[9].
A utilização extensiva de agrotóxicos significa grave problema de saúde pública em países subdesenvolvidos, especialmente aqueles que – como o Brasil – cada vez mais abrem mão da indústria nacional e retomam economia baseada no agronegócio.
Consta-se que trabalhadores rurais formam a parcela de brasileiros que mais sofre atualmente com uso de agrotóxicos. Qualquer medida legislativa que promova aumento do uso de substâncias de controle ambiental, simplificando processos de avaliação de risco, tende a ampliar riscos de adoecimento e morte.
Um notável (e evitável) passivo indenizatório
O principal motivo de contaminação, seja do meio ambiente, seja dos trabalhadores rurais e demais seres vivos, tem sido o uso desordenado e abusivo de agroquímicos, sem obtenção de certeza científica sobre existência de impactos[10]. No Brasil, que une amplíssimo uso de agrotóxicos com cultura de inadimplementos trabalhistas, temos um assustador robustecimento de passivos econômicos.
Toma-se o exemplo do herbicida glifosato, o agrotóxico com maior volume de vendas no Brasil e que até 2019 deve ter sua avaliação de toxidade refeita pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Desde 2008, o órgão arrasta processo de reanálise, sinalizando que há sérias divergências de estudos acerca da nocividade à saúde humana. Em 2013, a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) concluiu que a manipulação do produto é incapaz de causar câncer nos seres humanos e não indicou proibição de uso no país. Em 2015, a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC) afirmou o contrário, que o produto seria altamente nocivo[11].
A indecisão brasileira já vai superada no hemisfério norte e ações milionárias definem indenizações pelos efeitos cancerígenos do mesmo glifosato. Recentemente, a companhia Monsanto, produtora do veneno, foi condenada pela Justiça americana a pagar US$ 289 milhões (R$ 1,1 bilhão) a jardineiro com câncer. Após essa sentença, espera-se avalanche de processos milionários em casos análogos.
Enquanto o Brasil discute como facilitar o uso do produto, outros países definem sua proibição. Na França, o ministério da Transição Ecológica reconheceu o potencial de danos do processo americano e prometeu erradicar o glifosato até 2021.
No Brasil, a região com maior uso de agrotóxicos é o noroeste do Rio Grande do Sul. De acordo com o Inca (Instituto Nacional de Câncer), o Rio Grande do Sul também é o Estado com a maior taxa de mortalidade pela doença. Em recente reportagem da BBC, estudo realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) comparou o número de mortes por câncer da microrregião de Ijuí com as registradas no Estado e no país entre 1979 e 2003 e constatou que a taxa de mortalidade local supera tanto a gaúcha, que já é alta, como a nacional. Não parece que os dados sejam apenas fruto de coincidência.
O futuro
Os agrotóxicos não se limitam ao uso do setor agropecuário, mas vêm se espalhando por diversos setores produtivos nacionais. Também são largamente utilizados na construção e manutenção de estradas, tratamento de madeiras para construção e armazenamento de grãos e sementes. Mas são os trabalhadores rurais os profissionais que lidam diariamente com os compostos químicos e seguem como alvos imediatos dos piores efeitos na vida humana.
A necessidade de produção em massa em ambiente de extrema competição mercadológica, faz vermos como natural a busca por medidas de eficiência e praticidade na atividade agrícola. É difícil imaginar rápida e universal abolição de agrotóxicos, mas é urgente a definição do valor da vida dos trabalhadores rurais. Recentemente, entraram em pauta campanhas contra a experimentação de cosméticos em animais. Podemos pensar na preservação de seres vivos mais próximos, e que também se encaminham para a experimentação dos piores venenos.
[2] BEDOR, C. N. G. et al. Vulnerabilidades e situações de riscos relacionados ao uso de agrotóxicos na fruticultura irrigada. São Paulo: Rev. bras. Epidemiol. vol. 12, n. 1, p. 39-49, 2009.
[3] SOARES, W.; ALMEIDA, R. M. V. R.; MORO S. Trabalho rural e fatores de risco associados ao regime de uso de agrotóxicos em Minas Gerais, Brasil. Cad Saúde Pública, v. 19, n. 4, p. 1.117–1.127, jul-ago/2003.
[4] García JE. Acute poisoning from pesticides: human and economic costs. Rev Panam Salud Publica. 1998;4(6):383-7. PMid:9924514.
[5] Brunton LL, Knollman BJC, Chabner BA. Goodman & Gilman: as bases Farmacológicas da Terapêutica. 12. ed. São Paulo: McGraw Hill; 2012
[6] OLIVEIRA-SILVA, J. J., et al. Influência de fatores socioeconômicos na contaminação por agrotóxicos, Brasil. Revista de saúde pública, v. 35, n. 2, p. 130-135, Magé-RJ,
[7] SIQUEIRA, S. KRUSE, M. H. L. Agrotóxicos e a saúde humana: contribuição dos profissionais do campo da saúde. Revista da Escola de Enfermagem. São Paulo: USP, v. 42, n. 3. P. 584-90, 2008.
[8] BOHNER et al. O Impacto ambiental do uso de agrotóxicos no meio ambiente e na saúde dos trabalhadores rurais. Revista Eletrônica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria. V. 8, 2013. Disponível em https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/8280
[9] BOHNER et al. Op. Cit.
[10] MARTINS, Mauê Ângela Romeiro. O trabalhador rural e os agrotóxicos in Direito Agrário e Agroambiental organização CONPEDI/UFS; Coordenadores: Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Luiz Ernani Bonesso de Araújo, Nivaldo dos Santos – Florianópolis: CONPEDI, 2015. Disponível em https://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/65p3z0rs/uN6pi6CKdTen0PZJ.pdf
[11]Glifosato não será proibido no Brasil, pelo menos até 2019. http://blogs.canalrural.com.br/ultimasdebrasilia/2017/08/16/glifosato-nao-sera-banido-no-brasil-pelo-menos-ate-2019/