Em meio à polêmica das alterações promovidas pela reforma trabalhista, o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Guilherme Feliciano, admite a necessidade de uma atualização das leis do trabalho, mas não em um processo apressado e sem discussão como o governo fez.
A consequência disso, na opinião do magistrado, é que uma série de itens acabou ficando exposta a acusações de inconstitucionalidade, de modo que a segurança jurídica, tão apregoada como uma das justificativas para as alterações, acabou não sendo atingida e, pior ainda, foi reduzida. “Antes, a [Consolidação das Leis do Trabalho] CLT era previsível. Agora, vamos ter que esperar para as novas regras serem pacificadas. Esse problema não é culpa da magistratura do trabalho, mas de uma lei feita às pressas e eivada de inconstitucionalidades”, avalia.
DCI: O ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Guilherme Caputo, afirma que a reforma terá mais dificuldade de passar nas primeiras instâncias do que no TST e na segunda instância. Isso revela uma divisão no Judiciário trabalhista?
A Justiça do Trabalho tem 24 regiões e, às vezes, é possível perceber uma primeira instância mais conservadora do que o próprio tribunal superior em algumas delas. Acho difícil dizer que a magistratura de primeiro grau seja mais progressista que o segundo e o TST. Em alguns casos é o contrário. O TST, desde 2012, tem sido extremamente progressista na modificação das suas súmulas. Algumas das novidades introduzidas pelo tribunal superior em suas súmulas, è época, foram objeto direto da reforma, que praticamente reproduziu o texto do verbete, mas colocando uma partícula negativa. De certo modo, a reforma foi uma reação à postura progressista do TST.
DCI: Dentro do que foi alterado na CLT, quais são os pontos que o senhor considera inconstitucionais?
Quem acompanhou a 2ª Jornada da Anamatra percebeu que foram apontadas mais de dez inconstitucionalidades. Se essas questões são ou não contrárias à Constituição, caberá ao Judiciário dizer ou em controle concentrado no Supremo Tribunal Federal [STF] ou ainda no controle difuso, em que cada juiz decide em caso concreto.
No STF, já temos cinco ações diretas atacando quatro questões, entre elas a do acesso à Justiça, porque a reforma atrapalha o trabalhador mais pobre a ter a integralidade dos seus direitos. A Constituição diz que, para o pobre, o acesso à Justiça é gratuito e integral. Porém, agora quem tem menos recursos pode ganhar R$ 15 mil em nove pedidos, mas perder no décimo, em que ele pedia R$ 100 mil por uma doença do trabalho, por exemplo. Nesse caso, o empregado terá que pagar honorários de sucumbência em até 15%, sendo que 15% de R$ 100 mil são R$ 15 mil, então o que ele ganhou nas outros pedidos já foi anulado. Somando-se ainda aos R$ 5 mil que são o preço médio da perícia, ele teria que pagar mesmo tendo obtido vitórias.
Fora isso, vamos ver no controle difuso a questão de jornada de 12 [horas trabalhadas] por 36 [de descanso] por acordo individual. A MP anda bem quando diz que em geral será por acordo coletivo, que é como diz a Constituição, mas aí vem o adendo de que se for no setor de saúde também pode ser por acordo escrito. Isso não pode, porque a Constituição não abriu exceção.
DCI: A MP mostra uma tentativa de corrigir os problemas apontados pelos juízes?
Sim. Vários pontos que a Anamatra questionou foram acolhidos na MP 808. A possibilidade de estabelecer jornada 12 x 36 por acordo individual foi restringida. Além disso, a questão das gestantes e lactantes, que na versão original ficavam expostas, como regra, a ambientes insalubres, agora se inverteu. Mas como o governo não abriu discussão com a sociedade civil organizada, vários outros pontos escaparam. A MP 808 avançou, mas a Lei 13.467/2017 [que instituiu a reforma] continua cheia de inconstitucionalidades.
DCI: Uma crítica à própria reforma é que não foi amplamente debatida. O senhor endossa essa tese?
Endosso completamente. O Código de Processo Civil (CPC) de 2015, que é uma lei bem recente, foi debatido por cinco anos e depois ainda teve uma vacatio legis, aquele período de um ano em que a lei ainda não está em vigor para que as pessoas possam se adaptar. O CPC é tecnicamente muito bem construído. A reforma trabalhista, em contrapartida, foi uma lei que alterou quase toda a legislação do País, mas tramitou por reles quatro meses, com vacatio legis de 120 dias e discussão mínima.
DCI: Muito se fala que a reforma vai ser judicializada com esses debates pós-aprovação. Quanto tempo vai demorar para termos algo pacificado e a CLT voltar a ser previsível no País?
Pois é, falaram tanto em segurança jurídica e agora o que temos? Antes, a CLT era previsível. Agora, vamos ter que esperar para as novas regras serem pacificadas. Esse problema não é culpa da magistratura do trabalho, mas de uma lei feita às pressas e eivada de inconstitucionalidades. O Judiciário fará o controle do que é constitucional e o que não é. O STF já tem cinco [Ações Diretas de Inconstitucionalidade] ADIs e o julgamento delas depende da agenda da presidente Cármen Lúcia. Já no primeiro e segundo grau, até essas questões chegarem ao TST para pacificação, demorará de dois a três anos.
DCI: Qual a sua opinião acerca da maneira como o presidente do TST, Ives Gandra Filho, vem se manifestando a respeito da reforma?
Para mim, há um excesso de mídia em manifestações que ele faz e que não são majoritárias nem no TST. Quando se discutiu lá atrás a terceirização, circulava um documento assinado por 18 dos 27 ministros dizendo que terceirização de atividade-fim não era adequada. Apesar disso, na condição de presidente, ele passa a impressão de que aquela fala é institucional da magistratura do trabalho. Essas manifestações acirraram as discussões dentro da Justiça Trabalhista.
DCI: Na sua opinião, haverá alguma possibilidade de acordo entre o segmento da sociedade que lutou por essa reforma e quem está insatisfeito com a nova lei?
Acho que a melhor solução para essa conciliação seria algo menos polêmico como uma Medida Provisória, mas o governo não chamou a sociedade civil para o debate. Chamou apenas os próprios quadros técnicos e os sindicatos para discutir especificamente a questão da contribuição sindical. A partir de agora haverá muito debate. Quando chegarmos a um novo estágio, os conflitos entre quem apoia e quem não concorda vão diminuir, mas o momento atual é de disputa de sentidos.
DCI: Seria possível fazer uma modalidade de trabalho com menos horas, mas sem esses problemas?
Seria. Nós propúnhamos em um anteprojeto de lei um regramento dos direitos fundamentais do trabalhador terceirizado. Isso permitia a terceirização por know how e não por solapamento de direitos. E uma reforma com base no negociado sobre o legislado poderia ocorrer, mas não sem uma reforma sindical.
DCI: Em que termos seria essa reforma?
Teria que extinguir a contribuição sindical, mas de forma progressiva, discutindo-se o que viria no lugar. Além disso, temos que permitir mais de um sindicato de cada categoria por base regional. O Brasil tem 17 mil sindicatos, dos quais 50% nunca negociaram nem um acordo coletivo. Então existem por quê? Na Alemanha, não há 100 sindicatos e o país não tem unicidade sindical nem contribuição obrigatória, mas o sistema funciona.