Advogado e professor de direito do trabalho, Flávio Nunes defende que Justiça analise acordos firmados entre empregador e empregados que prevaleçam sobre a legislação vigente (Foto: Olavo Prazeres)
Com uma tramitação recheada de polêmicas, o pacote com mais de cem alterações na Consolidação das Leis trabalhistas (CLT) conhecido como Reforma Trabalhista entra em vigor amanhã, dia 11. Nesta sexta-feira, um dia antes, um calendário de mobilização nacional convocado por centrais sindicais promete levar às ruas trabalhadores insatisfeitos com a nova Lei 13.467/2017. Uma das principais mudanças introduzidas pela lei, que foi proposta pelo Governo do presidente Michel Temer (PMDB) e validada pelo Congresso, é a possibilidade de que negociações, acordos e convenções firmados entre empresas e empregados - individual ou coletivamente - possam se sobrepor a alguns itens definidos pela legislação trabalhista.
A prerrogativa permitida pela Reforma Trabalhista de que o negociado prevaleça sobre o legislado não é ilimitada, no entanto. Patrões e trabalhadores não poderão construir entendimentos que ameacem direitos constitucionais como as férias - que, agora, poderão ser fracionadas em até três períodos -, e o recebimento de 13º salário. Acordos sobrepostos à legislação trabalhista, porém, já poderão ser consumados a partir de amanhã, possibilitando, por exemplo, negociações que impliquem a redução do intervalo de descanso ou para refeição para um prazo mínimo de 30 minutos. Para que algumas situações acordadas entre as partes tenham validade, entretanto, é preciso respeitar algumas formalidades, como realização de assembleia e formalização junto ao Ministério do Trabalho.
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Apesar da clara intenção do Governo federal de flexibilizar as relações entre empregador e empregado, o advogado e professor de direito do trabalho atuante em Juiz de Fora, Flávio Filgueiras Nunes, considera que tais acordos não podem significar a mitigação de direitos previamente afiançados pelos trabalhadores. Sobre a possibilidade de o negociado prevalecer sobre o legislado, o especialista afirma que cada situação deva ser avaliada com cautela.
Negociação e apreciação judicial
"A relação de emprego é uma relação naturalmente desequilibrada entre o capital e o trabalho. Temos lados com poderes distintos, e esta negociação nunca é harmônica. A Justiça do Trabalho vai ter um papel fundamental na análise destes acordos. As mudanças permitem uma maior possibilidade de negociação, mas isto não estará livre de uma apreciação judicial. O papel de juízes, desembargadores e ministros do trabalho é justamente analisar se houve lesão aos direitos dos trabalhadores. Temos que lembrar que esta reforma não pode prevalecer sobre os princípios orientadores dos direitos do trabalho e também sobre nossa Constituição. Direitos trabalhistas são irrenunciáveis. Nas situações em que esta negociação tentar retirar direitos já conquistados, certamente, a Justiça do Trabalho terá o papel de invalidar estas negociações", considera Flávio.
O profissional do direito do trabalho criticou a celeridade como foram conduzidas as discussões em torno da legislação que alterou a CLT em sua essência, com a ratificação de mais de cem adequações, adaptações e mudanças. Entre o início da tramitação da proposta na Câmara dos Deputados e a aprovação final pelo Congresso se passaram cerca de sete meses. "Fica claro que a principal intenção do projeto foi flexibilizar a jornada, permitindo um maior tempo de permanência dos empregados nos ambientes de trabalho e à disposição dos empregadores. Mas a flexibilização traz, como 'contrapartidas', alguns encargos para os trabalhadores. Este tempo poderá ser negociado com compensações que podem ser, agora, semanais, mensais e anuais, sem refletir necessariamente em horas extraordinárias. Para o empregador, maior flexibilização e poder de gestão. Para o trabalhador, maior ônus quanto à sua permanência no ambiente de trabalho e às consequências que isto traz em sua vida, em suas relações familiares e sociais", avalia o professor.
Home office e trabalho intermitente
Apesar de crítico em vários aspectos da legislação, Flávio destaca pontos positivos da nova lei. Entre eles, a previsão e a regulamentação da atividade exercida na residência do trabalhador - prática conhecida como o teletrabalho, trabalho remoto ou home office - e a jornada intermitente, que permite às empresas contratar um funcionário de forma esporádica e pagá-lo apenas pelo período em que prestou seus serviços. Apesar da análise positiva, o especialista considera que a regulamentação deveria ser mais aprofundada e sugere que, por exemplo, a do trabalho intermitente fosse autorizada apenas para determinados segmentos da economia, cujas características justifiquem tal prática. Como exemplo, o advogado citou o setor de hotelaria, que, em várias regiões do país, tem caráter sazonal.
Anamatra aponta restrição do acesso à Justiça
O texto da Reforma Trabalhista segue provocando discórdia e leitura distinta em setores distintos e de relevância na construção da discussão nacional. Até em um mesmo segmento, há posicionamentos de entidades e personalidades de destaque bastante opostos, incluindo na Justiça do Trabalho, exatamente o setor responsável por fazer valer as legislações que tratam das relações trabalhistas, bem como direitos e deveres de empregadores e empregados. Recentemente, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) defendeu que a Lei nº 13.467 demandará interpretação cuidadosa dos magistrados do Trabalho, de forma a respeitar preceitos definidos pela Constituição e por convenções e tratados internacionais em vigor na ordem jurídica brasileira. Por outro lado, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Granda Martins Filho, tem rebatido críticas à reforma e chegou a declarar na mídia nacional que é necessário reduzir e flexibilizar direitos trabalhistas para garantir a geração de empregos.
O presidente da Anamatra, o juiz Guilherme Feliciano, considera que alguns pontos da nova lei podem violar a garantia constitucional do cidadão quanto à proteção judiciária. Feliciano criticou o entendimento de que caberá à Justiça do Trabalho apenas a análise de formalidades pertinentes às negociações entre empregadores e empregados. "Não é possível pensar em norma jurídica sem pensar em interpretação/aplicação da fonte formal do direito. Os juízes examinarão a constitucionalidade e a legalidade dos conteúdos dos acordos e convenções coletivas, como não poderia deixar de ser."
De certa forma, a fala de Feliciano é uma previsão de que os juízes do trabalho não devem abrir mão de sua prerrogativa legal de fazer valer os diversos preceitos orientadores da Justiça do Trabalho. Desta maneira, o magistrado critica ainda o que aponta como outras inconstitucionalidades da Reforma Trabalhista, como os entraves econômicos à proteção processual que podem impactar no acesso do cidadão à Justiça. Para ele, a reforma imputa ao reclamante o dever de arcar, por exemplo, com honorários e despesas relacionadas a procedimentos periciais, mesmo quando o trabalhador não possua condições financeiras para tal. "A efetividade da jurisdição decorre do devido processo legal. O processo judicial é um espaço do diálogo, de efetiva distribuição de cidadania, de modo que nenhuma compreensão da nova legislação deve conduzir a um processo judicial inefetivo, tíbio, demorado."
PGR vai ao STF
Advogado e professor de direito do trabalho, Flávio Nunes Filgueiras também considera que a reforma apresenta viés de inconstitucionalidade. Em especial, em regras que podem restringir ou desestimular a busca de trabalhadores por seus direitos por meios de questionamentos apresentados à Justiça do Trabalho. Ele destaca que a Procuradoria-Geral da República (PGR) já fez o primeiro questionamento relacionado ao acesso à Justiça. Em agosto, a PGR, ainda sob o comando de Rodrigo Janot, entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) tentando derrubar itens da reforma que, aos olhos do órgão, violam garantias constitucionais de amplo acesso à Justiça. Entre os pontos atacados pela PGR está o trecho que responsabiliza a parte vencida pelo pagamento de honorários periciais, ainda que a pessoa seja beneficiária da Justiça gratuita.
Gandra: há quebra de rigidez Gandra, presidente do TST, não vê vieses de inconstitucionalidade e defende a prevalência da negociação coletiva (Foto: Divulgação TST)
Na contramão do posicionamento defendido pela Anamatra, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), o ministro Ives Gandra Martins Filho, tem feito declarações públicas que denotam apoio às novas regras definidas pela Reforma Trabalhista, como a possibilidade de que negociações entre as partes prevaleçam sobre previsões legais, mas minimizou posicionamento atribuído a ele, na mídia nacional nos últimos dias, de que seria necessária a redução de direitos como forma de fomento à geração de empregos.
"Com relação à associação entre redução de direitos e geração de empregos que ensejou a manchete da entrevista (dada ao jornal 'Folha de S. Paulo'), ressalto que minhas afirmações não podem ser avaliadas isoladamente. Ao longo da entrevista, fiz uma análise abrangente da questão, que não foi integralmente publicada. Sempre ressaltei a importância de, em uma negociação coletiva, compensar eventual redução de direito com alguma vantagem de natureza social, de forma que o patrimônio jurídico do trabalhador, como um todo, não seja afetado", considerou, em nota divulgada pelo TST.
Contudo, na entrevista citada, Gandra afirmou que não vê no texto vieses de inconstitucionalidade e defendeu o aspecto principal da reforma que, para ele, prestigia a negociação coletiva exatamente por quebrar a rigidez da legislação. "Não é demais lembrar que é a própria Constituição Federal que permite a redução dos dois principais direitos trabalhistas, que são o salário e a jornada, desde que se faça por negociação coletiva, o que supõe a concessão de vantagem compensatória e a transitoriedade da redução, para superar crise econômica", afirmou, uma vez mais por meio de nota.
Governo ainda pode readequar trechos da lei Para Feliciano, da Anamatra, os juízes deverão continuar examinando a constitucionalidade dos acordos (Foto: Divulgação/Anamatra)
Às vésperas da entrada em vigor da reforma trabalhista, ainda há expectativa de alteração de alguns itens constantes no texto aprovado pelo Congresso por meio de medida provisória que deve ser editada pela Presidência da República nas próximas horas. Tal adequação foi prevista pelo Governo federal quando da tramitação da matéria no Congresso, por meio de sinalização do presidente Michel Temer (PMDB) de que pontos controversos do texto seriam alterados por vetos presidenciais - o que não ocorreu - ou por MP. Tal compromisso foi selado para evitar mudanças no texto que pudesse tornar a tramitação da proposta no Poder Legislativo mais lenta. Durante a semana, o líder do Governo no Senado, o senador Romero Jucá (PMDB), foi às redes sociais e reforçou o intuito.
"Aproveito para reafirmar o compromisso do Governo Temer em editar uma Medida Provisória que complementará a legislação trabalhista. A medida será editada no próximo dia 11 de novembro, quando a nova legislação trabalhista entrará em vigor", escreveu Jucá, no Twitter. A expectativa é a de que as correções que deverão ser feitas pela caneta do presidente abordem itens como a possibilidade de que grávidas trabalhem em ambientes insalubres. Incluída pelo relator do projeto de lei na Câmara, o deputado federal Rogério Marinho (PSDB), tal possibilidade é vista como inoportuna e impopular.
CNI vê modernização nas relações do trabalho
Em posicionamento encaminhado à reportagem, o presidente do Conselho de Relações do Trabalho da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Alexandre Furlan, considerou que as mudanças proporcionadas pela Reforma Trabalhista significam "um avanço para a modernização das relações do trabalho no Brasil." Como justificativa, Furlan considera que, sem as alterações, a principal referência legislativa das relações de trabalho, a CLT, já não se mostrava capaz de atender ao que chama de "demandas das novas formas de trabalho e de produzir".
Para Furlan, o texto da reforma põe fim a aspectos burocráticos ao permitir maior autonomia nas negociações entre empregados e empregadores. "A modernização das relações trabalhistas, na forma como desenhada sob os alicerces de valorizar o diálogo entre trabalhador e empresas, diminuir burocracias, prevenir conflitos e dar maior segurança jurídica, certamente se traduzirá em mais desenvolvimento econômico, mais empregos e bem-estar para todos."
Por fim, o representante da CNI defendeu que as divergências sobre o tema sejam superadas e que trabalhadores e empresas unam forças de modo a dar eficácia à lei e, de forma espontânea, sejam capazes de construir as regras que irão balizar suas relações laborais. "Com a nova lei, sobretudo com sua espinha dorsal que traz a valorização e o reconhecimento da negociação coletiva como o cerne das relações do trabalho, se abre um horizonte de mais segurança e cooperação, proporcionando a melhoria do ambiente de negócios, o que contribuirá com o crescimento econômico, com benefícios para a sociedade", considera Furlan.
Sindicatos prometem ocupar as ruas Beatriz Cerqueira diz que protestos também são contra reforma da Previdência (Foto: Felipe Couri)
O maior foco de resistência à reforma trabalhista, no entanto, continua sendo as entidades que representam categorias diversas de trabalhadores, sindicatos e centrais sindicais. Hoje, em todo o país, tais grupos pretendem realizar um dia nacional de paralisação. Os protestos já estão agendados em vários municípios de praticamente todos os estados do país e no Distrito Federal. A mobilização está sendo convocada por CUT, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), a União Geral de Trabalhadores (UGT), a Força Sindical, a Nova Central, a Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), a Intersindical, a CSP-Conlutas e a Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB). Em Juiz de Fora, um ato está sendo programado pelo Fórum Sindical e Popular, para as 17h, no Parque Halfeld. Em entrevista coletiva na quarta-feira (8), na Assembleia Legislativa, a presidente do braço estadual da CUT, Beatriz Cerqueira, afirmou que os protestos vão além do repúdio à reforma trabalhista, mas também serão contrários à proposta de reforma da previdência. "Este é o nosso instrumento: a força coletiva".
Reflexo na cidade
A agenda nacional de mobilização pode afetar as aulas nas escolas da cidade de forma geral, com a adesão de quase todos os setores da educação de Juiz de Fora à paralisação. Dessa maneira, o Sinpro, Sind-UTE, Apes e o Sindicato dos Trabalhadores Sintufejuf estão convocando professores das redes particular, municipal estadual e federal, além dos servidores ligados à UFJF, a cruzarem os braços nesta sexta-feira. No caso dos técnicos administrativos da universidade, os trabalhadores darão início ao movimento grevista. Outras categorias devem fazer ações e atos ao longo do dia e, no final da tarde, reforçar a mobilização que concentração marcada para o Parque Halfeld. Possíveis caminhadas pelas ruas centrais da cidade serão deliberadas durante a mobilização.