Uma portaria editada pelo Ministério do Trabalho e publicada nesta segunda-feira (16) traz regras que dificultam o acesso à chamada "lista suja" de empregadores flagrados por trabalho escravo no país. O texto também altera o modelo de fiscalização e abre brechas que podem dificultar a comprovação e punição desse tipo de crime.
De acordo com a nova portaria, a lista com o nome de empregadores autuados por submeter trabalhadores a situações análogas à escravidão passará a ser divulgada apenas com "determinação expressa do ministro". Antes, a divulgação cabia à área técnica da pasta, cujo atual titular é Ronaldo Nogueira (PTB).
A medida, que atende aos interesses da bancada ruralista, ocorre em meio à análise da nova denúncia na Câmara dos Deputados contra o presidente Michel Temer.
O texto também prevê que a lista seja divulgada no site do Ministério do Trabalho duas vezes por ano, "no último dia útil dos meses de junho e novembro". Portaria de maio de 2016 e que trata do mesmo tema, no entanto, permitia que a atualização da lista ocorresse "a qualquer tempo", desde que não ultrapassasse periodicidade superior a seis meses.
As novas regras também alteram o modelo de trabalho dos auditores fiscais e elencam uma série de documentos necessários para que o processo possa ser aceito após a fiscalização.
Entre as medidas, estão a necessidade de que o auditor fiscal seja acompanhado, na fiscalização, por uma autoridade policial que deve registrar boletim de ocorrência sobre o caso. Sem esse documento, o processo não será recebido e, com isso, o empregador não será punido. Também é necessária a apresentação de um relatório assinado pelo grupo de fiscalização e que contenha, "obrigatoriamente", fotos da ação e identificação dos envolvidos.
A portaria também traz novos conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condição degradante, incluindo, para que haja a identificação destes casos, a ocorrência de "privação da liberdade de ir e vir" -o que não constava nas definições adotadas anteriormente.
Até então, a definição usada pela maioria dos auditores era a que consta do artigo 149 do Código Penal, que tipifica como crime "reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto". A pena é reclusão de dois a oito anos e multa.
'RETROCESSO'
A mudança no conceito de trabalho escravo é rechaçada por especialistas, que veem na medida um retrocesso e tentativa de dificultar a comprovação desse tipo de crime.
"Associar todas as qualificantes de trabalho escravo com o ir e vir é totalmente descolado da realidade que vive o Brasil. O bem material protegido pelo Estado no combate ao trabalho escravo não é apenas a liberdade, mas a dignidade. É um grave retrocesso", afirma o presidente do Sinait (Sindicato Nacional de Auditores Fiscais do Trabalho), Carlos Silva. "O ministro só faltou escrever que precisávamos identificar as correntes prendendo o trabalhador. Por aquele texto, só teríamos configuração de trabalho escravo apenas os casos clássicos e praticamente próprios da escravidão negra", completa.
Para Silva, a mudança nas regras de fiscalização e punição representa um "duro ataque" à atual política de erradicação do trabalho escravo, além de ferir a autonomia dos auditores e abrir brecha para contestação pelas empresas autuadas.
"Incluir boletim de ocorrência é totalmente desnecessário. É uma tentativa de enfraquecer a fiscalização. Não é preciso isso para levar adiante o processo", defende ele, que diz ter ficado perplexo com a "ousadia" do governo em publicar a nova portaria. "A intenção da portaria, quando cria requisitos ilegais, é abrir oportunidade para que a fiscalização seja contestada", avalia.
O sindicato informa ainda que deve recorrer à Justiça para tentar reverter as mudanças.
Representantes do Ministério Público do Trabalho também rechaçaram as novas regras. O órgão lembra que a portaria ocorre poucos dias após a exoneração do chefe da fiscalização do trabalho escravo do Ministério do Trabalho, André Roston, que já havia criticado, no Senado, a falta de recursos para as ações de fiscalização do trabalho escravo no país.
Para Tiago Muniz Cavalcanti, coordenador nacional da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo), do MPT, o texto mostra que o governo "está de mãos dadas com quem escraviza".
"Não bastasse a não publicação da lista suja, a falta de recursos para as fiscalizações, a demissão do chefe do departamento de combate ao trabalho escravo, agora o ministério edita uma portaria que afronta a legislação vigente e as convenções da OIT."
O juiz do trabalho Guilherme Feliciano, presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), afirma que a liberação da lista de empresas autuadas só sob ordem do ministro do Trabalho "reduz a transparência" e "atenta contra princípio da publicidade próprio da administração pública".
Ele também questiona a mudança nos conceitos de situações que qualificam trabalho escravo. "Da maneira como ficou regulado, todas as figuras [que qualificam o trabalho escravo, como jornada exaustiva] exigem a restrição de ir e vir e ausência de consentimento. Mas posso ter jornadas do corte de cana, por exemplo, de 16h e 17h, que em princípio são consentidas, mas ainda assim configuram isso de forma agressiva", afirma.
Já a Frente Parlamentar da Agropecuária, que representa a bancada ruralista, que já pleiteava as mudanças, afirma em nota que "a falta de conceituação específica para trabalhos forçados, jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho na legislação permite compreensões distintas por parte dos fiscais responsáveis pela autuação, causando insegurança jurídica para o setor".
Para a bancada, a portaria publicada nesta segunda "diminui a subjetividade da análise". A frente, porém, nega ter tratado com o governo sobre o tema.
O caso também gerou reação entre membros da oposição na Câmara dos Deputados. O deputado Alessandro Molon (Rede-RJ) afirma que irá apresentar um projeto de decreto legislativo para tentar sustar a portaria nesta terça-feira (17). "Temer parece desconhecer qualquer limite. Sepultar o combate ao trabalho escravo em troca de salvação na Câmara é escandaloso, além de brutal com milhares de brasileiros", afirma.
OUTRO LADO
Em nota, o Ministério do Trabalho afirma que a portaria "aprimora e dá segurança jurídica à atuação do Estado Brasileiro, ao dispor sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo", usados para concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado e para inclusão do nome de empregadores no cadastro da lista suja.
Diz ainda que o combate ao trabalho escravo "é uma política pública permanente de Estado, que vem recebendo todo o apoio administrativo desta pasta, com resultados positivos concretos relativamente ao número de resgatados, e na inibição de práticas delituosas dessa natureza, que ofendem os mais básicos princípios da dignidade da pessoa humana".
"Reitera-se, ainda, que o Cadastro de Empregadores que submeteram trabalhadores à condição análoga a de escravo é um valioso instrumento de coerção estatal, e deve coexistir com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório", informa a pasta.