No debate sobre como fazer frente à exploração do trabalho infantil, que ainda afeta 3,2 milhões de brasileiros entre 5 e 17 anos, a Justiça e o Ministério Público do Trabalho (MPT) se chocam com as Varas da Infância e Adolescência. O motivo da disputa é a frequente emissão de alvarás que autorizam menores de idade a executar atividades profissionais. Os juizes e promotores do Trabalho veem nesses documentos uma violação à Constituição Federal, ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e também à competência jurídica que lhes foi atribuída. Para os juizes das Varas da Infância e Adolescência, a concessão de autorizações para que menores sejam formalmente empregados, recebendo todos os direitos trabalhistas, pode ser um caminho dignificante ou mesmo a saída da miséria. Ontem, O GLOBO revelou que, em 2006, o I Brasil se comprometeu junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT) a erradicar até 2015 as 89 "piores formas de trabalho infantil" entre elas o doméstico, a exploração sexual e o comércio ambulante; mas, até o fim deste ano, não conseguirá atingir a meta acordada.
JUIZ DIZ QUE TRABALHO É "DIGNIFICANTE"
Segundo informações extraídas por especialistas da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho, entre 2005 e 2010 foram expedidas mais de 33 mil autorizações judiciais liberando menores para trabalhar. Só no estado de São Paulo, foram 11 mil. Para jovens entre 10 e 15 anos, a Justiça concedeu, em 2010, 7.421 alvarás. No ano seguinte, o número caiu para menos da metade. A Justiça e ; o Ministério Público do Trabalho viram nessa queda o primeiro fruto de suas reclamações.
Na última semana, O GLOBO solicitou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ao Ministério do Trabalho dados atualizados sobre a I emissão de alvarás judiciais para trabalho infantil, mas não obteve novos números.
No Rio de Janeiro, o juiz Pedro Henrique Alves é o titular da í-? Vara de Infância, Juventude e Idoso e, para não errar, prefere não arriscar o ; número de alvarás que concedeu a menores desde que assumiu o cargo, há cinco meses. Mas, ao opinar sobre esse tipo de autorização, defende a concessão dentro de limites:
- Acho o trabalho dignificante. É claro que aquelas formas de trabalho que são de alguma forma degradantes, que violem o direito da criança e do adolescente, devem ser combatidas, mas, se o trabalho não prejudica a integridade física, intelectual e moral, não prejudica o estu; do, não consigo visualizar qualquer prejuízo.
Perguntado se aprova o trabalho a partir de | qualquer idade, Alves reforça:
- Sim. A partir de qualquer idade - diz.
Pai de um menino de 4 anos, Alves conta que vem do interior e trabalhou em casa de família quando tinha 13 anos. Desde os 17, lembra, ele se sustenta e credita a isso o fato de ter sempre sido muito responsável e de ter chegado aonde chegou profissionalmente.
- Mas nunca abandonei os estudos - diz. Quanto aos alvarás, o importante é saber se o trabalho proposto vai prejudicar a criança ou se vai contribuir para sua formação. Às vezes, elas são absolutamente pobres e aquele trabalho ajuda a sustentar a família. Às vezes, muda completamente a vida deles, sobretudo no caso de jovens infratores. Então, não vejo prejuízo.
Alves frisa que não permitiría que um menor participasse de um filme pornô, por exemplo:
- Mas não vejo mal algum numa criança participar de novela ou de propaganda de fraldas.
Já Danielle Kramer, procuradora do Trabalho no Rio, considera a concessão de alvarás judiciais para trabalho infantil "uma aberração":
- As empresas recorrem à Justiça comum para conseguir essa permissão e empregar menores de idade, mas isso é uma aberração, algo inaceitável. O trabalho do menor de idade está vetado pela Constituição.
LEGISLAÇÃO PROÍBE TRABALHO ANTES DE 14 ANOS
Segundo a legislação brasileira, menores de 14 anos não podem trabalhar. A partir dessa idade, só com um contrato de aprendizagem, o que significa que o jovem será supervisionado, em locais que não afetem sua integridade física e moral, e que seguirá com seus estudos.
Silvana Abramo, diretora de Cidadania e Direitos Humanos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, admite a disputa entre as duas correntes de pensamento, mas crê que, nos últimos anos, a conscientização sobre o assunto no Judiciário cresceu:
- Desde 2004, parece que está mais claro que a competência para atuar nesses casos é da Justiça do Trabalho. O Tribunal de Justiça de São
Paulo e os Tribunais Regionais do Trabalho da 23 e da 153 regiões já recomendam a juizes que passem esse tipo de questão à Justiça do Trabalho. No Mato Grosso, também.
Mas, de acordo com Silvana, o número de solicitações de alvarás permanece alto.
- Na área coberta pelo TRT da 2* Região, que envolve São Paulo capital, a Baixada Santista e a Grande São Paulo, em 2014, houve 82 processos pedindo autorização para trabalho infantil. Até abril deste ano, foram 90.
Sueli Bessa, procuradora e membro da Coordenadoria de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do MPT do Rio, enxerga a polêmica de outra forma:
- A lógica que se vê é a seguinte: a classe alta quer proteger seus filhos, quer lhes dar tudo do bom e do melhor, mantê-los longe do trabalho e do esforço físico. Mas encara o trabalho como a única salvação para o filho dos pobres, a única forma de melhorar de vida.