Preceitua o artigo 225 de nossa Constituição Federal, em seu caput, que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Frisa, ademais, que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados” (parágrafo 3º). Como se percebe, a luta por um meio ambiente equilibrado detém indiscutível nótula jusfundamental (porque está ligada à garantia de vida digna), constitui interesse difuso (porque interessa a cada um e a todos) e se estriba em vetor de forte caráter publicista (cuidando-se de um inescusável dever que enlaça, em tônica cooperativa, qualquer pessoa — física ou jurídica — e qualquer poder — privado ou público) Não por outra razão, a tutela constitucional ambiental é a única a admitir, ao lado da tutela constitucional da ordem econômica e financeira (artigo 173, parágrafo 5º da Constituição Federal), a responsabilidade penal da pessoa jurídica, quebrando um paradigma secular do Direito Penal (“societas delinquere non potest”) e ensejando, ao menos em tese, a imputação de crimes ambientais ao próprio Estado (artigo 3º da Lei. 9.605/1998).
De outra banda, já está adquirido que o conceito de meio ambiente humano, como ensaiado nas Declarações de Estocolmo (1976) e do Rio de Janeiro (1992), compreende e recobre, em indissolúvel unidade gestáltica, as noções de meio ambiente natural, meio ambiente articial, meio ambiente cultural e o próprio meio ambiente do trabalho. Esse reconhecimento, longe de ser mera elucubração acadêmica, deriva da vontade do próprio Poder Constituinte originário, como se vê, por exemplo, no artigo 200, VIII, da Constituição Federal. E, não sem razão, a mesma Constituição também garante aos trabalhadores o direito fundamental à “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (artigo 7º, inciso XXII). Isso significa que, se o valor social do trabalho constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso IV), e se a ordem social tem como base o primado do trabalho (artigo 193), no mesmo passo em que a ordem econômica está fundada na valorização do trabalho humano (artigo 170, caput\), é de rigor entender que não está em causa, em tais postulados constitucionais, a segurança e a universalidade de qualquer trabalho, como se o ideal do pleno emprego (artigo 170, VIII) se bastasse com a tendencial ocupação de toda a população economicamente ativa, inclusas as ocupações vis, desumanas e precárias.
A magnífica importância que o mundo do trabalho logrou auferir no bojo da Carta de 5 de outubro de.1988 não prescinde de um enlace vigoroso de toda a sua semântica com a ideia do trabalho decente, para emprestar a expressão já consagrada pela Organização Internacional do Trabalho. E, por trabalho decente, há que se entender trabalho digno, limpo, saudável e seguro. Sem esses quatro predicamentos — ou, como queiram, sem o primeiro, que termina abarcando os demais —, o trabalho que acaso existir poderá ter valor econômico, mas jamais o terá social; será trabalho humano, mas desvalorizado, porque desvalioso; e, se tiver plenitude, será pleno em sentido meramente econômico, jamais em acepção petica. Mas o “pleno emprego” constitucional obviamente não pode ser uma grandeza puramente econômica. É, também, senão antes e sobretudo, uma grandeza jurídica — e, logo, ética. Trabalho indigno, porque sujo, doentio e/ou inseguro, deve ser repensado, reformulado e recuperado; e, se irremediavelmente indigno, deve ser preferencialmente abolido (para o que servirão, afinal, as técnicas de mecanização e de automação). Ou alguma conjuntura econômica poderia justificar, em nossa quadra civilizatória, o emprego de mão-de-obra escrava? Decerto que não. Logo, buscar a dignidade no trabalho — o que envolve promover habitats laborais hígidos (= meio ambiente do trabalho equilibrado) — é dever constitucional que também deriva do artigo 225 da Constituição, para a sociedade civil e fundamentalmente para o Estado.
Daí que, no plano infraconstitucional, há muito está sedimentado o papel tuitivo do Estado em relação à qualidade do meio ambiente do trabalho, para o que o poder público, em sua esfera administrativa, sempre teve papel nuclear. Recorde-se, a propósito, o que está disposto no artigo 161 da Consolidação das Leis do Trabalho: “O Delegado Regional do Trabalho, à vista do laudo técnico do serviço competente que demonstre grave e iminente risco para o trabalhador, poderá interditar estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento, ou embargar obra, indicando na decisão, tomada com a brevidade que a ocorrência exigir, as providências que deverão ser adotadas para prevenção de infortúnios de trabalho” (com a redação da Lei 6.514/1977). E é esse o ponto que nos move às presentes reflexões.
Muito embora a CLT, em seu texto original, atribua tais poderes ao “Delegado Regional do Trabalho” — correspondente ao atual Superintendente Regional do Trabalho e Emprego —, a busca por maior concretude prática dessa disposição implicou natural delegação dessas aptidões aos Auditores Fiscais do Trabalho, diante da grandeza dos direitos fundamentais em jogo, a alcançar a vida, a saúde e a integridade psicossomática dos trabalhadores, como também pela sua inevitável difusão (ut artigo 225, caput, Constituição Federal): tutela concentrada e inflexível é tutela estéril em sede de interesses difusos. Por isso, com excelentes razões práticas e teóricas, a delegação dos poderes do artigo 161 da CLT aos AFT´s converteu-se em praxe administrativa plenamente sedimentada no Brasil, até porque legítima nas causas e nos efeitos. De acordo com a Presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT), apenas o estado do Rio de Janeiro ainda não a havia adotado (fonte: <http://www.sinait.org.br/?r=site/noticiaView&id=7823>, acesso em 30.07.2013).
Praxe legítima nas causas, como dito. Porque são precisamente os Auditores Fiscais do Trabalho os profissionais que estão em contato diário com as mais variadas situações de grave e iminente risco à vida, à saúde e à integridade psicossomática dos trabalhadores. Porque, tanto quanto os superintendentes, detêm o necessário preparo técnico para avaliar a necessidade de interditar ou embargar (mesmo porque não é a formação, a especialização ou o conhecimento o que necessariamente distinguirá, nas diversas superintendências, a pessoa do superintendente de cada um dos seus auditores subordinados).
E praxe legítima nos efeitos. Porque tais delegações consubstanciam, a rigor, medida descentralizadora perfeitamente afinada com o princípio constitucional da eficiência (artigo 37, caput, Constituição Federal), informador dos serviços públicos, como também com o imperativo constitucional de tutela da dignidade humana, epicentro axiológico da nossa Carta Magna (artigo 1º, III), já que a tutela concentrada e indelegável importaria, no dia-a-dia, em insuficiência de tutela, notadamente nas unidades federativas economicamente mais desenvolvidas, onde o empreendedorismo pulveriza-se em iniciativas empresariais as mais diversas, em todo o território e em todos os segmentos.
A despeito dessa dupla legitimidade, a Superintendente Regional do Trabalho e Emprego no Estado de Rondônia (SRTE-RO) viu-se animada a suspender a competência administrativa dos Auditores Fiscais do Trabalho para interditar máquinas e embargar obras, mesmo quando constatada situação de grave e iminente risco para a saúde ou segurança do trabalhador. Na contramão da eficiência administrativa, avocou para si a competência legal originária do artigo 161 da CLT, minando um modelo já consagrado, e assim se fechou em copas. A fatídica resolução foi publicada no Diário Oficial da União do dia 23 de julho de 2013, por meio da Portaria 66, de 22 de julho de 2013.
Como não poderia deixar de ser, a abrupta medida causou profundo desconforto e intensa reclamação por parte dos mais diversos setores, em especial aqueles preocupados com a temática da saúde e segurança no trabalho. Mereceu, inclusive, nota pública de repúdio emitida pela Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (fonte: <http://www.anpt.org.br/index1.jsp?pk_assoc_informe_site=18587&exibe_mais=n>, acesso em 30.07.2013).
E a grita tem fundo de razão. O Brasil é dono de uma vergonhosa estatística de acidentes de trabalho, figurando entre os primeiros no ranking mundial. O número total de acidentes laborais registrados no Brasil aumentou de 709.474 casos em 2010 para 711.164 em 2011. O número de óbitos também registrou sensível incremento: de 2.753 mortes registradas em 2010, alcançamos 2.884 mortes em 2011. Quanto ao estado de Rondônia, no particular, passou de 5.101 acidentes de trabalho em 2009 para 5.280 em 2010 (fonte: <http://www.tst.jus.br/web/trabalhoseguro/dados-nacionais>, acesso em 30.07.2013). A contradição é evidente: concentrar-se-ão competências onde justamente cumpria disseminá-las, aumentando o efetivo de auditores e os empoderando.
Enfatize-se, pois: a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no estado de Rondônia, em uma só canetada e sem qualquer justificativa plausível,
(a) alterou disposição administrativa legitimamente sedimentada em praticamente todo o país, consistente em delegar aos Auditores Fiscais do Trabalho a competência administrativa para interditar estabelecimento, setores de serviço, máquinas ou equipamentos, ou embargar obras, em caso de constatação de grave e iminente risco ao trabalhador;
(b) fragilizou todo um fluxo de crescente preocupação com a temática da saúde e da segurança do trabalhador, que é questão de inexorável interesse público primário, expressa há décadas em convenções internacionais (tal qual a Convenção 155 da OIT – Decreto 1.254, de 29 de setembro de 1994), em disposições normativas internas (a exemplo da Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalho (PNSST), promulgada pelo Decreto 7.602, de 7 de novembro de 2011) e em valiosos programas institucionais (como, recentemente, o Programa “Trabalho Seguro”, do Tribunal Superior do Trabalho);
(c) combaliu o pacto republicano de solidariedade em prol da proteção do meio ambiente (nele incluído o do trabalho), firmado em sede constitucional (artigo 225, caput); e
(d) instaurou um desnecessário quadro de potencial retrocesso socioambiental, atritando com a cláusula de fomento à crescente melhoria da condição social dos trabalhadores (artigo 7º, caput, CF) e com o próprio princípio da progressividade dos direitos sociais (artigo 25 do Pacto de San José da Costa Rica).
A despeito dos concretos fatores que porventura tenham motivado tal ato infralegal — mesmo porque não dados claramente a conhecer —, algumas premissas são inarredáveis. A uma, é dever funcional de qualquer agente público cumprir a Constituição Federal e guiar-se pelos princípios nela insculpidos, o que alcança a tutela de salvaguarda do inalienável direito à vida, à saúde e ao meio ambiente equilibrado (inclusive o laboral). “Estrita legalidade”, para o agente público, não pode ser mera literalidade legal; tem de ser, para tudo e para todos, legalidade estritamente material, i.e., legalidade ancorada nos valores constitucionais mais evidentes. Nessa medida, se compete à União proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (em concorrência com os demais entes federativos), e se ainda lhe cabe, nesse contexto (mas agora privativamente), organizar, manter e executar a fiscalização do trabalho (artigo 21, XXIV, c.c. artigo 23, VI, Constituição Federal), está fora de dúvidas que nenhum AFT pode se furtar do inapelável dever funcional de assegurar a integridade da vida humana, razão última que legitima a existência do próprio Estado e de toda a aparelhagem administrativa que o compõe. Nessa esteira, retirar do auditor em serviço a possibilidade de interditar estabelecimento ou de embargar obra em situações de periclitância, onde há risco grave e iminente para a saúde ou segurança dos trabalhadores em atividade, é coarctá-lo em sua missão constitucional, atraindo para a União, nos termos do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, possível responsabilidade pelos danos que resultarem da insuficiência de proteção deliberadamente engendrada.
O Direito, porém, há de encontrar os seus próprios caminhos. Como bem se sabe, está insofismavelmente acolhido, na seara penal, o instituto da legítima defesa, inclusive de terceiro. Na dicção do artigo 25 do Código Penal, “[e]ntende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (g.n.). Ora, mesmo na ausência de delegação administrativa expressa (que passa a faltar em Rondônia, à mercê da Portaria 66/2013), poderá o auditor, como qualquer cidadão, agir funcionalmente para repelir injusta agressão, atual ou iminente, à integridade psicossomática dos trabalhadores, “si et quando” estiverem submetidos a certo ambiente laboral desequilibrado. A lei os escudará. Daí que, malgrado ausente uma expressa delegação administrativa, poderá o Auditor-Fiscal do Trabalho em diligência, uma vez identificado o risco grave e iminente de dano à vida e/ou à saúde dos trabalhadores, lançar mão dos meios materiais ou administrativos necessários para arrostar tal perigo, desde que o faça com moderação (= proporcionalidade). Como é de fácil inferência, a proteção da vida humana é mais que um encargo administrativo; é um dever humanitário.
Dito de outro modo, uma simples portaria administrativa não pode e jamais poderá subverter a lógica natural dos modelos normativos, sobrepondo-se à Constituição Federal e fazendo tábula rasa do que administrativamente já estava legitima e corretamente sedimentado. Na espécie, é fato que, sem qualquer argumento, lançou-se uma preocupante névoa de vulnerabilidade por sobre toda uma coletividade social que desfruta do direito à indenidade física e mental — pela qual, vimos, somos todos responsáveis, ao menos em alguma medida (artigo 225, caput, Constituição Federal). O bem jurídico tutelado, qual seja, a vida humana em todos os seus desdobramentos semânticos (saúde pública, integridade individual física e mental, autorrealização, entre outros.), demanda ampla proteção e respeito, inclusive por parte do poder público; e, em sede ambiental, ações de cunho eminentemente preventivo. O advir de um surreal ato administrativo que, em essência, obriga Auditores Fiscais do Trabalho a se absterem de proteger o trabalhador que se encontra sob risco de morte ou acidente iminente, perfaz uma desconcertante antípoda política dos princípios da prevenção e da precaução, que deveriam reger toda a matéria jusambiental (o que inclui o meio ambiente do trabalho, tanto mais quando é o próprio Estado a reconhecer que “[o] atual sistema de segurança e saúde do trabalhador carece de mecanismos que incentivem medidas de prevenção” — v. Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador, Brasília, MTE, 29.12.2004). Mais que uma singela retração administrativa de atribuições, articulou-se uma inexplicável afronta à legalidade material, ao prevencionismo labor-ambiental e à própria sensibilidade profissional.
Para além da inequívoca tessitura constitucional, do legítimo interesse das classes trabalhadoras e do resguardo à vida humana, é o próprio bom senso a ditar que as autoridades competentes não se resignem com os termos da malsinada Portaria 66/2013, impugnando-a na devida forma, com presteza e no foro apropriado. Qual foro? Para nós, inequivocamente, a Justiça do Trabalho, uma vez que o ato público questionado interfere com bens da vida sob a sua imediata competência (artigo 114, IV, Constituição Federal e Súmula 736 do STF).
Quem vê o mal e se omite, abona-o. E quando é o Estado a se omitir, em detrimento da pessoa humana, vale mais atirar a primeira pedra. Ei-la aqui.
Flávio Leme Gonçalves é Advogado do escritório AeG Advogados Associados. Pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Constitucional Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Universitário.
Guilherme Guimarães Feliciano é Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor em Direito Penal e Livre-Docente em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor Associado do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo. Ex-Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região (AMATRA XV) (gestão 2011-2013). Diretor de Prerrogativas da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) (gestão 2013-2015).
(*) Ney Maranhão é Juiz do Trabalho Substituto (TRT da 8ª Região – PA/AP). Doutorando em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Università di Roma – La Sapienza (Itália). Professor Universitário (graduação e pós-graduação). Membro do Instituto Goiano de Direito do Trabalho (IGT), do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA) e do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Junior (IBDSCJ).
Revista Consultor Jurídico, 14 de agosto de 2013