» GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, é presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região e professor associado do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)
» RENATO HENRY SANT'ANNA
Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Ribeirão Preto, é presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho e professor da Universidade Paulista (Unip) em Ribeirão Preto
Está na pauta legislativa brasileira o anteprojeto de lei do "acordo coletivo especial", capitaneado pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (SMABC). Entre ódios e amores, a sua mera existência já prestou um sensível desserviço ao trabalhismo nacional: dividiu a opinião de sindicatos profissionais, juízes trabalhistas e juristas em geral. E, já por isso, o assunto reclama algumas luzes e muitos cuidados. A eles.
O anteprojeto do SMABC tenciona "criar" um instrumento de negociação coletiva diferente da convenção coletiva de trabalho, que se estabelece entre sindicatos profissionais e econômicos, e do acordo coletivo de trabalho, que se estabelece entre sindicatos profissionais e empresas.
O "acordo coletivo de trabalho com propósito específico" seria uma terceira modalidade, em que o sindicato profissional, por meio dos comitês sindicais de empresa, e uma determinada empresa, estipulariam "condições específicas de trabalho, aplicáveis no âmbito da empresa e às suas respectivas relações de trabalho", para "adequações" na aplicação da legislação trabalhista, observado o art. 7º da Constituição.
De efetiva novidade, na leitura do material de divulgação que o sindicato atrelou à proposta, exsurge o fato de que "somente um sindicato profissional e uma empresa do correspondente setor econômico poderão celebrá-lo, desde que haja uma motivação específica que atenda a vontade das partes", de modo que os sindicatos profissionais não poderão celebrar acordos coletivos especiais com sindicatos patronais, nem com duas ou mais empresas ao mesmo tempo. E a isso a defesa do anteprojeto agrega a possibilidade de "adequações na aplicação da legislação".
O leitor mais atento já terá percebido que, a rigor, do ponto de vista negocial, o instrumento é absolutamente desnecessário. Caso as "especificidades" das condições de trabalho e emprego em certa empresa demandem negociação coletiva individualizada, empresa e sindicato profissional podem valer-se do acordo coletivo, com previsão legislativa desde 1967.
A diferença talvez esteja em que, para a celebração de um acordo coletivo de trabalho, hoje se exige convocação de assembleia geral entre os trabalhadores diretamente interessados, sindicalizados ou não (art. 617, §2º, da CLT) - a exigência não é igualmente referida no anteprojeto do SMABC. Os comitês sindicais de empresa, por seu turno, seriam formados apenas por trabalhadores sindicalizados. A se entender que possam decidir independentemente de assembleia, o grande "ganho" do anteprojeto, nesse particular, seria a perda relativa de legitimidade social: os acordos especiais seriam negociados pela elite sindical, sem uma intervenção mais direta de todos os interessados. É esse o futuro do diálogo social?
O que mais preocupa, todavia, é a perspectiva de que o novo instrumento possa "adequar" a aplicação da lei trabalhista às condições socioeconômicas de cada empresa. Nesse particular, causa espécie que sindicatos profissionais tremulem semelhante bandeira. Dispor que as "adequações" observarão o art. 7º da Constituição não basta, porque há direitos legais que não têm previsão expressa no texto constitucional (por exemplo, o intervalo para descanso e refeição e a própria anotação do contrato de trabalho em CTPS).
Esses direitos legais também poderiam ser "adequados", conquanto consubstanciem aspectos irrenunciáveis do patrimônio jurídico do trabalhador, indissociáveis de sua dignidade social e de sua integridade psicossomática? Se é esse o novo horizonte, já estará prenhe de nuvens negras: retoma-se, pela mão do sindicato, a cantinela da prevalência do negociado sobre o legislado. Se não é o que se pretende, o anteprojeto há de ser reescrito.
É preciso entender, em definitivo, que o direito do trabalho não tem compromisso com a lucratividade das empresas. Seu compromisso primeiro, histórico e inapelável, é com as garantias da pessoa humana. Do contrário, já não será direito do trabalho.