Luiz Orlando Carneiro, Jornal do Brasil
BRASÍLIA - Nos últimos dois anos, cinco desembargadores de tribunais de Justiça estaduais e 12 juízes foram afastados e aposentados compulsoriamente, com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, pelo Conselho Nacional de Justiça. O órgão de controle externo do Judiciário aplicou-lhes a pena máxima administrativa prevista na Lei Orgânica da Magistratura (Loman), que pode ser modificada, ainda este ano, se o Congresso aprovar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 89/2003), de autoria da senadora Ideli Salvatti (PT-SC), que prevê a perda do cargo (demissão) do magistrado que cometer falta grave, assim considerada por dois terços dos membros do tribunal ao qual estiver vinculado ou por decisão do CNJ, “assegurada ampla defesa”.
A senadora petista tem “certeza” de que a proposta será aprovada até o fim de maio no Senado, e esperança de que, na Câmara, venha a merecer a adesão do quorum qualificado de três quintos dos deputados (em dois turnos de votação), como exige o artigo 60 da Constituição. A PEC está na ordem do dia do plenário, com o parecer final do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) referendado pela Comissão de Constituição e Justiça, e com requerimento de “quebra dos prazos regimentais” assinado pelos líderes partidários.
Indignação
A atual líder do governo no Congresso lembra que a sua proposta obteve as assinaturas necessárias antes da reforma do Judiciário (Emenda 45/2004), quando a opinião pública já demonstrava “indignação” com casos de magistrados que se aproveitavam de seus próprios cargos não só para empregar cônjuges e parentes, mas até para praticar crimes tão graves como o comércio de sentenças. E recorda também que, antes da vigência da Carta de 1988, os juízes estavam sujeitos – como qualquer servidor público – à perda do cargo em processos administrativos, independentemente de eventuais processos penais.
– Para quem cometeu infrações de maior gravidade, a aposentadoria chega a ser um prêmio – afirma o senador Demóstenes Torres, que é procurador de Justiça licenciado. – A meu ver, raciocínio semelhante pode ser aplicado à disponibilidade. Colocar em disponibilidade um juiz que infringiu de modo intolerável seus deveres funcionais, ainda que com subsídios proporcionais, significa premiá-lo. Ou seja, remunerar o seu ócio. Não dá mais para continuar premiando o desvio de função. E isso se aplica também – está na PEC – aos integrantes do Ministério Público que, conforme a Constituição, é uma instituição “essencial à função jurisdicional do Estado”. Sempre que ficar comprovado, em processo administrativo, desvio de função ou cometimento de crime, o agente público deve ser demitido, a bem do serviço público, seja ele juiz ou procurador.
Magistrados contestam a constitucionalidade da PEC
As associações representativas dos juízes estão em campanha junto aos senadores e ao Conselho Nacional de Justiça para evitar que a PEC 89/03 prospere. No último dia 20, os presidentes da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), das associações dos juízes federais (Ajufe) e trabalhistas (Anamatra) encaminharam ao então presidente do Supremo Tribunal federal e do CNJ, ministro Gilmar Mendes, um ofício contestando a constitucionalidade da proposta destinada a emendar os artigos 93 e 95 da Carta de 1988.
No ofício, as entidades ressaltam que estão em jogo os princípios da separação dos poderes e da vitaliciedade dos magistrados. O artigo 95 dispõe que os juízes gozam da “garantia” da vitaliciedade que”, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado”.
Perda
Para os presidentes das associações (Mozart Valadares, AMB; Fernando Mattos, Ajufe; Luciano Athayde Chaves, Anamatra), “não se pode partir da premissa de que a aposentadoria compulsória, como penalidade administrativa mais grave, seja insuficiente ou uma espécie de premiação do magistrado punido”, até por que o juiz aposentado pode vir a perder o cargo, mediante provocação do Ministério Público, que tem competência para propor ação penal ou civil. O documento ressalta ainda que “a aposentadoria dos magistrados, como medida disciplinar, consiste em um obstáculo, construído pela história constitucional e da magistratura nacional, para a preservação dos predicamentos dos juízes, em prol da sociedade, para a decretação da perda por atuação administrativa dos tribunais”. E conclui: “Essa perda não pode ser uma decisão apenas de um tribunal, em matéria administrativa, pois essa possibilidade, na praxis jurisdicional, resulta numa mitigação da independência judicial”.
Nota técnica
Em nota técnica enviada aos senadores, a Ajufe argumenta: “A aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais não é um prêmio. Ela é parte do caminho daqueles que desonram o compromisso público de bem servir aos brasileiros em direção a uma eventual demissão determinada depois das amplas possibilidades de provas e discussões em juízo. Quem é lançado nesse limbo não é premiado, visto que, de fato, é desligado da atividade pública, com pecha que nunca se apagará”. E propõe um meio-termo: “Talvez, ao invés de flexibilizar a garantia da vitaliciedade, fosse o caso de modificar a nomenclatura desse tipo de pena, previsto no Estatuto da Magistratura (Loman). Ela poderia ser nominada de afastamento compulsório, com direito à remuneração proporcional, até que, em decisão judicial de caráter cível ou penal, viesse a ser definida a situação”.
Para o senador Demóstenes Torres, “a vitaliciedade não é eliminada pela PEC”, mas “assume função mais condizente com um Estado no qual os predicamentos de determinadas autoridades não podem ser confundidos com privilégios”. E ressalta que a proposta prevê que um magistrado só poderá ser “demitido”, em processo administrativo, por decisão de dois terços do tribunal ao qual está vinculado ou do CNJ, enquanto o atual artigo 93 (inciso 8) da Constituição exige – para a aposentadoria compulsória (com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço) – maioria absoluta (metade mais um).
Pena máxima administrativa foi aplicada recentemente
A decisão coletiva mais drástica do CNJ de aplicar a pena máxima administrativa de aposentadoria compulsória, com manutenção dos vencimentos, foi tomada em fevereiro último. Os atingidos pela punição foram três desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso – inclusive o presidente da Corte – e sete juízes acusados de desvio de mais de R$ 1 milhão, entre 2003 e 2005, com a finalidade de socorrer a Loja Maçônica Grande Oriente de Cuaibá, da qual era grão-mestre o presidente do TJMT, José Ferreira Leite.
Em março, foi também punido com a mesma pena administrativa o desembargador José Jurandir Lima, ex-presidente do mesmo tribunal, por ter se servido de sua condição funcional “para proveitos pessoais, em atitude incompatível com a moralidade e o decoro da magistratura” (O magistrado foi acusado de empregar, no seu gabinete, em cargos comissionados, dois filhos, sem que sequer prestassem serviços ao tribunal).
Na sessão de 20 de abril, o CNJ tomou idêntica medida, também por unanimidade, no processo administrativo aberto contra a juíza do Pará Clarice Maria de Andrade, por omissão. Ela determinou a prisão de uma garota de 15 anos, numa cela lotada por 20 homens, na delegacia de Abaetetuba. Durante a prisão, a menor foi maltratada e violentada seguidamente.
O Conselho Nacional do Ministério Público, por sua vez, só puniu com as penas máximas de aposentadoria compulsória e de possível perda do cargo (demissão) dois integrantes do Ministério Público do Amazonas. Também por unanimidade, o CNMP mandou aposentar, em junho do ano passado, o promotor Jonas Neto Camelo, e considerar “cabível” a decretação de perda do cargo do ex-procurador-geral de Justiça Vicente Augusto Cruz Oliveira – por já ter sido condenado, outras vezes, à pena de disponibilidade.