Os juízes não querem expor os motivos que os levam a declarar a suspeição por foro íntimo - ou seja, a razão pela qual alegam serem suspeitos para julgar determinada causa. Isso é o que aponta consulta realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) entre seus associados. Dos 1.384 magistrados ouvidos, 71,32% afirmaram que não concordam com a exigência de divulgar as razões que os impedem de apreciar determinado processo, estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Resolução 82.
A consulta foi feita pelo portal da AMB na internet, por meio de enquete que durou de junho do ano passado à última segunda-feira. Dos magistrados participantes, 26,73% declararam-se favoráveis à medida. Apenas 1,95% alegaram não saber se a norma estabelecida pelo conselho trará benefícios à magistratura.
Ofício. A resolução estabelece que, no caso de suspeição por motivo íntimo, o magistrado de primeiro grau ou segundo grau fará essa afirmação nos autos e, em ofício reservado, imediatamente exporá as razões desse ato à corregedoria local ou a órgão diverso designado pelo seu tribunal. O órgão destinatário das informações deverá manter as razões em pasta própria, de forma que o sigilo seja preservado, sem prejuízo do acesso às afirmações para fins correcionais.
A resolução foi editada em 9 de junho do ano passado e entrou em vigor logo após ser publicada. Sua elaboração foi sugerida após inspeção realizada no Judiciário do Amazonas pela Corregedoria Nacional de Justiça, que funciona junto ao CNJ. Na ocasião, foi constatado grande número de processos em que juízes haviam declarado suspeição por motivo de foro íntimo.
A resolução provocou reação imediata. Apenas alguns dias após a norma entrar em vigor, a AMB protocolou, no Supremo Tribunal Federal (STF), a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) 4.260, em conjunto com a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). As entidades pedem a impugnação integral do texto editado pelo conselho.
"A primeira razão da impugnação integral do ato normativo mencionado é a sua inconstitucionalidade formal, já que a matéria nele tratada não se encontra dentre as competências constitucionais do CNJ. Trata-se, em verdade, ou de matéria de competência privativa da União para legislar sobre direito processual por meio de lei ordinária, ou de matéria a ser disposta no Estatuto da Magistratura, por meio de lei complementar, de iniciativa do STF", alegou a entidade, na petição inicial.
Segundo as associações, a resolução viola diversas garantias constitucionais dos magistrados, padecendo igualmente de inconstitucionalidade material, ao impor uma "espécie de confessionário dos motivos de foro íntimo que os levam, eventualmente, a declarar suspeição para julgar determinados feitos". Nesse sentido, as entidades argumentam que a norma estabelecida pelo CNJ viola as garantias da imparcialidade e da independência do juiz e do devido processo legal, "tanto sob a ótica do jurisdicionado, que deseja bem realizar seu ofício e tem o direito de não ter sua causa julgada por magistrado que se considere suspeito para fazê-lo".
Privacidade. A resolução também afronta, de acordo com as instituições, o direito à privacidade, à intimidade e à isonomia de tratamento entre os juízes, "porque retrata discriminação injustificada entre magistrados de primeiro e segundo graus em comparação com os de tribunais superiores, os quais não estão submetidos às mesmas obrigações".
A Adin foi protocolada em 26 de junho do ano passado e foi relatada pela ministra Ellen Gracie. A ação tramita lentamente. Desde 26 de agosto de 2009, está sob vistas da Procuradoria Geral da República.
Apesar da abrangência que o resultado da Adin poderá ter, muitos juízes decidiram recorrer individualmente ao Supremo contra a resolução. É o caso de um desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT), que impetrou mandado de segurança para não ser obrigado a comunicar os motivos de sua suspeição. O magistrado alegou ter direito à intimidade prevista no artigo 5º, inciso 10, da Constituição. Afirmou também que o CNJ não teria competência para solucionar uma questão jurisdicional como essa.
Para AMB, resultado era esperado
Para o presidente da Comissão de Prerrogativas da AMB, Jorge Massad, o resultado da consulta promovida pela entidade não é surpreendente. "Não foi surpresa. Na verdade, apenas retrata o sentimento que ouvimos da base da magistratura sobre essa resolução", afirmou o magistrado.
De acordo com ele, o direito de não expor as razões está assegurado nos códigos de processo penal e civil. "Não pode nenhum órgão do Judiciário dizer que o juiz tem que fazer essa comunicação, porque isso violaria a lei, que garante a ele a prerrogativa de manter sua intimidade", disse.
Massad explicou que a AMB está estudando todas as normas expedidas pelo CNJ. "Teremos uma reunião no próximo dia 26, em Brasília, justamente para deliberar sobre essas resoluções. Muitas estabelecem medidas práticas, necessárias, e são aplaudidas pela magistratura. No entanto, há algumas, como essa, com as quais a magistratura não concorda. Naquilo que o CNJ estiver legislando de forma contrária à lei, a AMB tomará as atitudes necessárias em benefício dos magistrados que representa. Essa é uma regra legal, que o CNJ está tentando arranhar. A comunicação exigida pelo conselho, por mais reservada que seja, viola a preservação da intimidade", afirmou (GS)