Nessas últimas eleições, juízes que tinham por competência decidir querelas eleitorais não fizeram segredo de suas opiniões políticas. O farfalhar de togas entre microfones e holofotes deixou democratas perplexos e só mesmo sendo cega como Themis para não corar de vergonha. Na ocasião, Luiz Gonzaga Belluzo e Walquiria Domingues Leão Rego [Carta Capital, 08/11/06 ], lembrando Franz Neumann, alertaram para o risco da excessiva e anômala partidarização da Justiça.
Em Behemoth [New York, 1942], Neumann investiga a contribuição decisiva dos juízes na estruturação do estado nazista e da racionalização da economia alemã. Por um viés, sentenças brandas que mal ocultavam a parcialidade do posicionamento em favor dos interesses industriais e financeiros e dos apaniguados de Hitler que golpeavam a Constituição. Por outro, sentenças draconianas na aplicação das leis de eugenia racial e na condenação criminal dos movimentos sociais. Sem dúvida, a justiça política compõe uma das páginas mais negras na vida da República de Weimer.
Se a opção política de juízes aparece fácil no calor dos debates eleitorais, difícil é percebê-la através da jurisprudência. Para darmos um exemplo, a justiça do trabalho, que nos anos setenta foi mola propulsora da integração dos direitos sociais, tornando paradigmáticas as conquistas dos operários do ABC, hoje, apesar de no Brasil a despedida abusiva ser a regra desde 1967, com a lei do FGTS, sua jurisprudência dominante abraçou os ideais da flexibilização das relações de trabalho em detrimento do paradigma constitucional e quase ninguém notou.
O Direito do Trabalho possui especificidades de tal ordem, que lhe permitiram colocar-se a uma certa distância do positivismo legalista dogmático. Tais especificidades derivam da sua especial atenção a uma forma de legitimação social. Essa singularidade está presente no fenômeno da auto-regulação sindical; no fato de ter na jurisprudência uma fonte empírica do direito; e na visão funcional da norma. A norma é também a variante de uma estratégia mais ampla de formação do consenso, daí que, em todo o sistema jurídico ocidental, fora do common-law, existe uma norma de proteção geral dos trabalhadores, denominada de contrato mínimo.
Com o fim da relação matrimonial entre capital e trabalho, abriu-se um abismo entre o passado e o futuro do direito do trabalho. Emerge uma legislação recheada de imperativos de modernização dos conflitos distributivos e de sustento a uma organização produtiva. Chanceladas pela jurisprudência, essas leis acabaram atraindo o direito do trabalho para a órbita de um verdadeiro direito da economia ou da racionalização econômico-social, responsável por uma significativa transformação nas técnicas legislativas do sistema de fontes e da forma de legitimação do direito do trabalho, o que com propriedade Massimo D`Antona (Jurista italiano assassinado pelas Brigadas Vermelhas em 20-05-1999) denominou de oportunismo metodológico.
Os sindicatos, que, historicamente, se constituíram com o escopo de articular o conflito capital x trabalho de forma autônoma, pouco a pouco vão se transformando em instituições de "governo privado" que são utilizadas estrategicamente para assegurar as políticas do estado de racionalização econômica e de neutralização dos conflitos distributivos. Na jurisprudência dominante prepondera a interpretação de tipo empírico instrumental. A inflação de premissas empíricas no raciocínio jurídico cresce com a difusão dessa legislação de tipo "provedoral". Predomina a racionalidade matemática e apenas os objetivos concretos, a expectativa e o cálculo estratégico do legislador podem justificar racionalmente a norma.
Ocorre que a aquisição daqueles objetivos está na redução legal dos vínculos garantistas e dos encargos salariais diretos e indiretos. Na prática, significa dizer que uma premissa empírica, mais precisamente, uma previsão econômica, termina por justificar racionalmente o tratamento diferenciado, silenciando um princípio interno do ordenamento jurídico, imediatamente correlacionado com um valor de justiça: a igualdade formal e a proibição de discriminar. Em uma palavra, o princípio constitucional da isonomia é ignorado.
Atrasada de 40 anos, a constituição brasileira de 1988 rompe com o pacto liberal e adota a fraternidade da justiça, a valorização do trabalho e a dignidade humana como paradigmas do ordenamento jurídico nacional. Com a autoridade de quem ajudou a escrever nada menos do que a constituição de Weimer, Franz Neumann ensina: "a constituição escrita em ocasião de grandes reviravoltas históricas contém sempre decisões acerca da estrutura da sociedade futura. Uma constituição, por isso mesmo, é mais do que seu texto legal: é também um mito que exige devoção a um sistema de valores eternamente válidos". Apesar da vedação de retrocesso social, a jurisprudência trabalhista dominante caminha francamente dissociada do paradigma constitucional.
A precarização das relações de trabalho não teria acontecido com a velocidade e a eficiência verificadas não fosse a adesão de uma significativa parcela de juízes à racionalização econômica. O pensamento único estendeu-se sobre a idéia de que o desemprego era inexorável e que a única forma de amainar seus efeitos era aceitar a flexibilização das relações de trabalho.
Passados 20 anos, o engodo da flexibilização é tão visível, que a OIT já providenciou um outro termo para defini-la: "trabalho decente". Longe de evitar o desemprego em massa, esse apanágio da razão cínica criou um regime de trabalho precário que não pára de crescer, e, dado seu alto poder de instrumentalização das pessoas, favorece a banalização do mal. O psicoterror no trabalho prospera na new economy, o assédio moral e a gestão por estresse são empregados como solução fisiológica de profilaxia e ajuste de condutas no ambiente de trabalho, em favor de uma razão instrumental, antiética e antimetafísica.
Com a posse do novo governo
revigorou-se o debate em torno do direito do trabalho
e seus corolários, a CLT e a Justiça. A Justiça do
Trabalho é acusada de aumentar o desemprego, e,
pasmem, por Ministros do TST! A acusação tanto é
grave quanto injusta. A jurisprudência predominante
vem conjugando direitinho o verbo da flexibilização,
e os tribunais desencorajando a atuação dos poucos
"juízes fundamentalistas", minoria de crédulos que
tomam por fundamento de suas decisões os direitos
humanos, com ameaças e punições administrativas em
nome da disciplina judiciária. Historicamente, o
ativismo político do judiciário resultou em aumento
do seu poder discricionário.
O alvo do estranho "fogo amigo" é o art. 619 da
CLT. Combinado com o art. 468, esse artigo forma a
coluna dorsal do Direito do Trabalho e pode ser
traduzido por uma única palavra: proteção. Claro, o
direito do trabalho é especial, precisamente porque
protege a parte débil do contrato [o ser humano]. O
art. 468 proíbe a modificação do contrato que
prejudique o empregado, ainda que ele tenha
consentido. Já o art. 619 impede a violação do
estatuto mínimo. Os contratos não podem prevalecer
sobre o legislado quando este é mais benéfico. Em
síntese, não se pode contratar menos direitos de
quanto garante a lei que tutela o economicamente mais
fraco.
Os juristas sabem muito bem que a flexibilização é
a liberdade reivindicada pelo capital e que o
Direito, balizado pelo constitucionalismo moderno,
cujo fundamento é a proteção da dignidade daqueles
que vivem do trabalho, busca frear. Da lição dos
filósofos colhemos que entre liberdade e escravidão há
um nexo indissolúvel. Toda liberdade tem isso de
inquietante, ou é total e abarca tudo, inclusive a
conduta individual, ou não é. Qualquer vínculo em
favor dos menos fortes é considerado limitação da
liberdade dos outros. O problema é que, para se
manter uma verdadeira e própria liberdade, antes,
liberdade não existe sem escravidão.
Bahia, 15 de fevereiro de 2007.
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(*) Juíza do Trabalho da Bahia e doutoranda pela
Universidade de Roma2 [Tor Vergata].