Estamos no século XXI e observamos que o tema "direitos da mulher" prossegue gerando debates acalorados. É fundamental, para compreendermos seus motivos, refletir sobre as causas legitimadoras da permanência do patriarcalismo e dos preconceitos que se expressam em vários aspectos, tais como, as diferenças salariais, o assédio e a até mesmo a violência física. Ainda subsistem instituições, organizações e associações nas quais são vedadas a
participação da mulher ou a
possibilidade de assumir funções superiores.
A pergunta é: por quê? Por que a mulher ocupa lugar
subalterno na sociedade? A resposta estaria na suposta
"inferioridade" feminina (em latim, "menos fé")? Ou,
talvez, na sua obrigação "natural" da maternidade?
Acompanhando as discussões e debates, promovidos
pelas mais diversas entidades, vimos que o tema
continua focado na necessidade das mulheres lutarem
pela conquista de maior participação social e
política, entretanto prosseguem representadas como
figura complementar ao homem. Exalta-se sua
importância, suas diferenças, seu papel na história,
suas qualidades e exige-se maior reconhecimento de sua
capacidade e competência. Mostrou-se, como exemplo de
progresso da mulher, empresárias bem sucedidas,
sentadas em seus escritórios destilando ordens e
comandos. A grande mídia, de modo superficial e
simplista, incita o embate das mulheres contra os
homens, como se fosse à ambição individual desses a
responsável pela sua opressão. Contudo, nenhuma
reflexão foi feita sobre seus motivos ocultos.
A reflexão deve se iniciar com duas constatações
fundamentais. A primeira: a mulher não é oprimida e
marginalizada em todas as sociedades. A segunda: não
foi sempre assim, uma vez que a mulher já esteve em
posição superior socialmente. A situação que vemos hoje
vigora, há tanto tempo, que a naturalizamos. Mas, para
compreendê-la devemos buscar sua gênese histórica.
Fundamentalmente, precisamos compreender que, tanto
os homens como as mulheres possuem, em sua essência,
os valores que hoje distinguimos entre "feminino" e
"masculino". O comportamento forjado durante nossa
evolução é determinado, ao mesmo tempo, por essa
dicotomia, independentemente de nosso gênero.
Os masculinos são os referentes à força, disputa,
competitividade, objetividade, racionalidade, egoísmo e
autonomia. Já os femininos são sensibilidade, cuidado,
emoção, cooperação, solidariedade, intuição,
espontaneidade e a sensibilidade. Frisemos mais uma
vez que essa divisão faz parte do nosso ser, o que
independe do gênero.
"Pelo contato com vários organismos sociais, tanto primários como secundários, as crianças internalizam gradualmente as normas e as expectativas sociais que são percebidas como correspondentes ao seu sexo. As diferenças de gênero não são biologicamente determinadas, são culturalmente produzidas. De acordo com essa visão, as desigualdades de gênero surgem porque homens e mulheres são socializados em papéis diferentes" (GIDDENS, 2005, p. 106).
Na história da humanidade, o papel
dos homens e mulheres variou bastante. Mas na maior
parte dela o status da mulher foi sempre superior ao
homem. Nos primórdios da existência humana eram as
mulheres, e os princípios femininos, que governavam o
mundo, pois elas tinham o poder de gerar vida e isso
as aproximava da divindade. Além disso, a garantia da
sobrevivência de um grupo nômade, nas agruras da luta
pela vida, dependia da contínua chegada de novos
membros e da colaboração entre eles. Eram sociedades
igualitárias, de moral coletiva, prevalecendo a
cooperação, a liderança pela sedução e o poder do
diálogo como persuasão. Nesse período, os símbolos
divinos são sempre femininos. As deusas ("grande mãe")
criaram o mundo e tudo que nele existe. Elas eram
sempre concebidas como tolerantes, amorosas e
indulgentes.
Um pouco mais tarde, quando a força física ganha
espaço, ocorre à ascensão masculina se igualando à
mulher. Surgem sociedades nas quais o poder de ambos
estão no mesmo plano. Os deuses são, ao mesmo tempo,
masculinos e femininos, cujo exemplo é o hinduismo, do
yin e yang.
Portanto, vivemos governados pelos atributos
femininos enquanto estivemos em sociedades sem
transmissão de herança, pois não existia a propriedade
privada e nem mesmo a guerra, havendo espaço para
todos. A partir do aparecimento da propriedade e do
Estado, a sociedade se transforma e com ela os
princípios que governam o mundo. Surge, nesse período,
a propriedade privada e com ela a sociedade de
classes. Um grupo de homens concentrará a riqueza em
suas mãos excluindo a grande maioria da possibilidade
de possuí-la. Os fortes dominam os fracos,
impondo-lhes a disciplina do trabalho contínuo e a
riqueza se concentra, cada vez mais, nas mãos de poucos
privilegiados. O gênero masculino ser torna hegemônico
(como até hoje). Com relação à mulher, o declínio de
seu status e sua submissão ao homem estão relacionados
à necessidade masculina de buscar a descendência
legítima. A virgindade é a expressão e manifestação da
decadência de sua condição, transformando-se em
extensão de sua propriedade. Os símbolos divinos
deixam de ser femininos e se transformam em masculino.
Deus agora é homem, cria o mundo sozinho e governa de
forma autoritária. Os princípios que agora imperam no
mundo serão os masculinos. Podemos confirmar essa
transformação em várias passagens dos textos bíblicos,
tais como no Eclesiastes 7, 26: "Então descobri que a
mulher é mais amarga do que a morte, porque ela é uma
armadilha, o seu coração é uma rede e os seus braços
são cadeias. Quem agrada a Deus consegue dela escapar,
mas o pecador se deixa prender por ela" ou
Eclesiástico 25, 24: "Foi pela mulher que começou o
pecado, e é por culpa dela que todos morremos".
A competição, a força e o egoísmo vigoram,
substituindo a cooperação e a solidariedade. Os
valores femininos passam a ser considerados menores e
conseqüentemente próprios de pessoas inferiores; como
menores devem ficar restritos ao âmbito doméstico. É
preciso um poder forte e centralizado, estabelecendo
disciplina férrea e autoridade para que servos e
escravos trabalhem sob condições deletérias.
Os detentores do poder logo percebem a eficiência
desses valores na produção da riqueza, na manutenção
de seu domínio e na conquista da supremacia. Os
atributos masculinos se transferem para o espaço
público, da política, da religião e do trabalho.
De matriarcal passamos para o período patriarcal, já
que para a sociedade de classes, dividida entre
opressores e oprimidos, os valores femininos seriam
desestabilizadores, e exporia ao prejuízo a produção,
a eficiência e o próprio poder. Por isso, a partir
desse momento, o menino é treinado, desde a mais tenra
idade, para ser "homem de verdade", ou seja, forte, com
sentimentos controlados, austero, disciplinador e
artificial. Os valores femininos são atribuídos apenas
à mulher, pela sua fragilidade.
"Os clãs, até então nômades, dividiram a terra entre
si e se fixaram nela, criando as primeiras fazendas e,
a seguir, as aldeias, as cidades, as cidades-estados,
e, finalmente, os grandes impérios da Antigüidade.
Começou assim, um mundo em que o mais forte ganha pela
força, pela guerra. Pelo simples assassinato, pela
simples grilagem de terras, os mais fortes matavam os
donos das terras menores e mais desprotegidas, faziam
das mulheres escravas sexuais e dos mais fracos,
trabalhadores escravos ou soldados subalternos"
(MURARO, 2006, p. 19).
Voltemos aos dias de hoje. Se olharmos à nossa volta, perceberemos que vivemos em uma sociedade com valores patriarcais. Talvez o mundo moderno seja mais complexo e civilizado, e a mulher tenha mais liberdade e possibilidades, mas seguimos pelos mesmos princípios, porquanto os atributos femininos continuam desestabilizadores e ameaçadores. Para o sociólogo Ulrich Beck (apud SENNETT, 1999, p. 87) na "modernidade avançada, a produção social de riqueza é sistematicamente acompanhada pelas produções sociais de riscos". O capitalismo conseguiu a proeza de aguçar a competição e ampliar os conflitos. Nas empresas modernas, mais do que nunca "os fins justificam os meios", na sanguinária conquista do lucro. O universo empresarial, convivendo com a competitividade do mercado, pode ser comparado a uma guerra, que como todas faz "vítimas" e provoca "sacrifícios". Não há lugar para fracos e pusilânimes, porquanto nas relações econômicas é fundamental a racionalidade (no sentido weberiano), a objetividade e a eficácia. Nas trincheiras, ou seja, nas organizações, jamais se pode perdoar ou fazer concessões, sob pena de perda da disciplina e do comando. Não há espaços para o altruísmo, cooperação, a solidariedade e a espontaneidade.
"Geralmente, quando se fala de ações empresariais imorais ou aéticas há a inspiração de que os fins justificam os meios. O importante são os resultados, pouco importando os princípios feridos para a sua consecução. É claro que tais atitudes não são declaradas mais praticas" (SIQUEIRA, 2005, p. 6).
No mundo dos negócios os valores
femininos não encontram colocação, uma vez que não
seriam eficientes e colocariam em risco os negócios. As
mulheres que assumem postos de comando nas empresas
agem como homens, ou seja, pelos princípios
masculinos. Para participar desse mundo a mulher deve
deixar de sê-la. Há uma contradição entre os valores
femininos e a sociedade de classes. Sob o domínio
desses valores, jamais se produziriam armas ou
existiram guerras, uma vez que mães nunca matariam
filhos de outras. Da mesma maneira, o capitalismo não
funcionaria, já que não se demitiria das fábricas um
pai de família em razão da planilha de custos
determinando a necessidade de maximização dos lucros.
É notório que, em regra, pais-empresários-competitivos,
hesitam em transmitir o legado moral de sua profissão
aos filhos, pois "nem sempre as qualidades do bom
trabalho são as mesmas do bom caráter" (SIQUEIRA,
2005, p. 6).
Enfim, não temos o que comemorar no dia
internacional da mulher porque os valores que lhe
atribuímos jamais serão aceitos em nossa sociedade. De
nada adianta a mulher chegar ao poder, se o fizer sob
os princípios masculinos, como nos casos de Margaret
Tatcher, conhecida como a "dama de ferro" pela sua
força e determinação em deletar os direitos
trabalhistas ingleses; ou da Chefe de Estado Americano
Condolissa Rice, que desfila impiedosa sobre os
escombros e restos de crianças no Iraque; outras
sufocam sua feminilidade acreditando que "ser mulher"
é cultuar amores piegas e romantismos de
telenovela.
O que precisamos para o século XXI não é da mulher
no poder, mas do ressurgimento dos princípios femininos
como valores hegemônicos de nossa sociedade. Esses
valores não são exclusivos das mulheres, no entanto,
por fatores históricos são as principais portadoras.
Só há salvação para o planeta e, consequentemente,
para a humanidade se reconquistarmos a capacidade de
cuidar, de dividir, e de cooperar. Para isso,
enfrentar-se-iam forças terríveis, já que são valores
completamente opostos ao sistema capitalista e que,
eventualmente, causariam a sua extinção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Zigmund, Modernidade
líquida. Tradução: Sandra Regina Netz. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 2001.
GIDDENS, Anthony, Sociologia. Tradução: Sandra Regina
Netz. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.
MURARO. Rose Marie, Mais lucro: valores humanos na
construção da empresa. Rio de Janeiro: José Olympio,
2006.
SENNETT, Richard, A corrosão do caráter:
conseqüências pessoais do trabalho no novo
capitalismo. Tradução: Marcos Santarrita. São Paulo:
Record, 1999.
SENNETT, Richard, A cultura do novo capitalismo.
Tradução: Clóvis Marques. São Paulo: Record, 2006.
SIQUEIRA, Wagner, As seitas organizacionais. Rio de
Janeiro: Forense, 2005.
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(*) Maurício Gonçalves Saliba. mestre e doutor
em educação pela UNESP de Marília; professor de
sociologia e política da Faculdade Estácio de Sá de
Ourinhos e do programa de mestrado em Direito da
Faculdade Estadual de Direito do Norte
Pioneiro-Fundinopi. (mauricio
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(*) Marcelo Gonçalves Saliba.
promotor de justiça do Ministério Público do Estado de
São Paulo, mestre em Ciências Jurídicas pela
Fundinopi, professor de direito penal das Faculdades
Integradas de Ourinhos ? FIO. (marcelo.s
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