“A terceirização pode ser tratada como algo muito excepcional, e não como rotina e como sendo natural. Do modo como se pretende, extraordinário será ter um empregado e ordinária será a terceirização, o que é um arrematado absurdo”, constata o juiz.
“A terceirização pode ser tratada como algo muito excepcional, e não como rotina ou algo natural. Do modo como se pretende, extraordinário será ter um empregado e ordinária será a terceirização, o que é um arrematado absurdo”, declara o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra à IHU On-Line. Para ele, a principal “motivação da terceirização”, a partir da tentativa de aprovar o Projeto de Lei nº 4330/04, é diminuir os custos das empresas, transformando o “‘custo fixo’ dos salários em ‘custo variável’, objetivamente para menos e com piores condições de trabalho”.
Entre os pontos polêmicos do PL 4330/04, o juiz Paulo Luiz Schmidt comenta a possibilidade de terceirizar a atividade-fim nas empresas. De acordo com ele, as relações de trabalho, quando se trata de produzir determinados bens, “devem ocorrer por meio de contratação direta”, conforme assegura o artigo 7º da Constituição. “E dizemos isso porque (...) é da dinâmica da relação capital x trabalho, seja na indústria, no comércio ou na prestação de serviços, de modo que os trabalhadores ligados à produção das atividades essenciais da empresa deverão sempre estar formalmente vinculados ao empresário principal”.
Schmidt também salienta que “um dos traços mais perversos” da terceirização “é a completa ausência de paridade de direitos entre os trabalhadores terceirizados e os empregados diretos, o que representa, com clareza, que os terceirizados recebem menos do que aqueles admitidos formalmente pela tomadora”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, o presidente da Anamatra enfatiza que “um exame do PL 4330/04, sem paixões e sem aprofundar interesses privados, indica que o projeto, de fato, não se compatibiliza com os interesses nacionais, com a Constituição, nem com as normas internacionais da Organização Internacional do Trabalho – OIT, das quais o Brasil é signatário. Basta ver, por exemplo, a potencialidade que tem de comprometer, como efeitos conexos, a arrecadação previdenciária e a capacidade de compra do trabalhador, enfraquecendo o mercado interno em tempos de crise”.
Paulo Luiz Schmidt é presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra e juiz do Trabalho no Rio Grande do Sul.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais seus apontamentos acerca do Projeto de Lei 4330/04?
Paulo Luiz Schmidt - São vários, mas em breves palavras posso dizer que a principal questão, na nossa perspectiva, é que as relações de trabalho, com a finalidade de produzir determinados bens por meio da exploração da mão de obra de trabalhadores, devem ocorrer por meio de contratação direta. E dizemos isso porque a Constituição assegura que seja assim, em seu artigo 7º, e também porque é da dinâmica da relação capital x trabalho, seja na indústria, no comércio ou na prestação de serviços, de modo que os trabalhadores ligados à produção das atividades essenciais da empresa deverão sempre estar formalmente vinculados ao empresário principal.
Nesse sentido, uma empresa de transporte coletivo, por exemplo, há de ter motoristas registrados diretamente como seus empregados. A grande questão, relativa ao PL 4330, é que essa lógica pode ser simplesmente rompida, e isso é inaceitável. A terceirização pode ser tratada como algo muito excepcional, e não como rotina e como sendo natural. Do modo como se pretende, extraordinário será ter um empregado e ordinária será a terceirização, o que é um arrematado absurdo.
IHU On-Line - Quais os principais equívocos do PL 4330/04?
Paulo Luiz Schmidt - O PL traz vários equívocos, mas alguns deles assumem relevo maior. O primeiro, como já foi dito, é a liberação da terceirização para qualquer atividade econômica, até mesmo nas essenciais da empresa, que poderiam, dentro do exemplo da resposta anterior, contratar motoristas terceirizados para uma empresa de transporte coletivo, o que, convenhamos, é um absurdo. Outro grande equívoco é a possibilidade de contratação e recontratação de um mesmo trabalhador diversas e sucessivas vezes por diferentes empresas terceirizadas na prestação de um mesmo serviço à tomadora, fato que potencializa a precarização, por ser uma de suas marcantes características. Muitas vezes as prestadoras vão sendo substituídas — pela sucessão de contratos cada vez mais baratos —, não pagam direitos dos trabalhadores e estes vão ficando junto à tomadora de serviços por um estado de pura dependência econômica. Mas um dos traços mais perversos desse sistema, do ponto de vista dos direitos sociais, é a completa ausência de paridade de direitos entre os trabalhadores terceirizados e os empregados diretos, o que representa, com clareza, que os terceirizados recebem menos do que aqueles admitidos formalmente pela tomadora. Aliás, a Anamatra sugeriu a ideia de paridade de direitos, mas foi amplamente rejeitada.
IHU On-Line - Os especialistas críticos ao PL 4330 sempre mencionam que ele é contrário à Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho - TST, que proíbe a terceirização na atividade-fim. Se já existe um acordo, por quais razões há insistência em alterá-lo?
Paulo Luiz Schmidt - A Súmula 331 é interpretação judicial das regras e o Projeto de Lei 4330 é atuação legislativa produtora de normas. Essa distinção entre atuação de Poderes independentes precisa ficar bem clara, inclusive para afirmar que o Parlamento pode discutir os projetos que entender cabíveis. Há, contudo, limites materiais para tanto e, no caso do PL 4330, esses limites não estão na Súmula 331 do TST, mas na própria Constituição, a qual, em vários de seus dispositivos, não se amolda a uma proposta que, na verdade, regride os compromissos do constituinte com a valorização do trabalho humano e com a dignidade, sem contar a afronta direta ao artigo 7º da nossa lei maior. Quanto à Súmula 331, de fato, firmou-se esse entendimento de que as atividades-fim estavam a salvo da possibilidade de terceirização, mas a gana empresarial, na discussão do projeto, quer ir além dessa baliza e envolver toda e qualquer atividade da empresa, o que não se pode aceitar.
IHU On-Line - Quais as desvantagens dessa proposta tanto para as empresas quanto para os trabalhadores?
Paulo Luiz Schmidt - A principal motivação da terceirização, infelizmente, é a diminuição de custos, ou seja, transformar o "custo fixo" dos salários em "custo variável", objetivamente para menos e com piores condições de trabalho. Por isso se diz que o projeto precariza o trabalho. Só para lembrança, é nas atividades onde há emprego de terceirização que ocorre, proporcionalmente, o maior número de acidentes de trabalho. Isso, claro, é prejuízo para o trabalhador, para as empresas e para a sociedade, quer pela ausência do empregado, quer pelos riscos de indenizações e pelos custos previdenciários. Mas não é só isso. Há também uma clara baixa de produtividade pelo emprego de mão de obra desmotivada e muitas vezes desqualificada.
Enfim, o projeto tem proveito econômico imediato para os empresários, mas os imensos custos sociais e humanos não podem nem mesmo ser dimensionados.
IHU On-Line - Por que, na sua avaliação, caso o PL 4330 seja aprovado, conduzirá a nação a “um futuro de empresas sem empregados”?
Paulo Luiz Schmidt - Quando assim dizemos, acaso aprovado esse projeto de lei, é porque os empregados diretos serão substituídos por trabalhadores intermediados, por empresas que vendem serviços terceirizados, sem compromisso com a qualidade das atividades profissionais na maioria das vezes e descolando o que é essencial na vida empresarial. Volto mais uma vez ao exemplo da empresa de transporte coletivo. Como pode uma empresa dessa não ter seu próprio quadro de motoristas e ter uma contratação terceirizada? Aliás, como pode e por quê?
IHU On-Line - Como as Centrais Sindicais se posicionam diante do PL 4330?
Paulo Luiz Schmidt - A maioria das Centrais está atuando de modo contrário ao PL, mas o que ainda precisa ficar mais claro é a posição do governo, eleito sob forte votação dos trabalhadores, e que deve mobilizar a sua base parlamentar de apoio contra um projeto que inequivocamente ofende direitos sociais e marca um retrocesso sem precedentes. E nem falo só do Brasil. Digo que não há precedente tão nefasto e radical em qualquer país do mundo ocidental.
IHU On-Line - Como o PL 4330 está sendo avaliado no meio jurídico?
Paulo Luiz Schmidt - No meio jurídico, há um certo consenso de que o PL tem natureza precarizante de direitos. Naturalmente que, em matéria jurídica, todo consenso é relativo, está exposto a questionamentos, especialmente à luz dos interesses contrapostos. Mas um exame do PL, sem paixões e sem aprofundar interesses privados, indica que o projeto, de fato, não se compatibiliza com os interesses nacionais, com a Constituição, nem com as normas internacionais da Organização Internacional do Trabalho – OIT, das quais o Brasil é signatário. Basta ver, por exemplo, a potencialidade que tem de comprometer, como efeitos conexos, a arrecadação previdenciária e a capacidade de compra do trabalhador, enfraquecendo o mercado interno em tempos de crise.
IHU On-Line - Quais são os grupos favoráveis e contrários ao projeto?
Paulo Luiz Schmidt - Enquanto grupo, e não pessoas individualmente consideradas, estão favoráveis ao projeto os empresários e seus aliados no Congresso Nacional. Contrários, estão as instituições que veem nos direitos sociais, tal como concebidos, uma forma de equilibrar as relações sociais tão injustas no Brasil, entre elas a Anamatra. Se isso é pouco — e é —, esse pouco não pode ser desconstruído para implantar entre nós um regime "salve-se quem puder".
IHU On-Line - O que esse PL demonstra sobre a questão trabalhista no país?
Paulo Luiz Schmidt - Demonstra exatamente que há setores que pretendem aprofundar a desigualdade e maximizar o lucro, custe o que custar, o que não é bom para o país e sequer para os próprios empresários.
IHU On-Line - Por que desde Getúlio Vargas pouco se avançou nessa área?
Paulo Luiz Schmidt - Tenho uma visão diferente. A Constituição de 1988 trouxe avanços, e as decisões dos tribunais não operam com CLT, documento base de regência das relações de trabalho, como se fosse algo estático, cristalizado. De Getúlio aos dias atuais, há recuos e avanços, sem dúvida, no mesmo passo de cada momento histórico que vivenciamos. É assim e sempre será. O que não podemos é sepultar o Direito Social, por via direta ou indireta.