Sancionada há quatro meses, a reforma trabalhista já vinha acirrando nimos e só agora começa a valer. Assalariados, empresários, juízes e procuradores preparam-se para uma briga feia
Luís Lima e Patrik Camporez, com Giovanna Wolf Tadini, Marcos Coronato, Rodrigo Capelo e Samantha Lima
Na tarde da terça-feira passada, dia 7, começaram a se acumular mensagens no celular do procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, em Brasília. Eram recados de procuradores de diversas partes do país, enfurecidos com uma orientação da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) às empresas associadas. A entidade recomendou a elas que prestem queixa no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra juízes que se negarem a aplicar a nova lei trabalhista, sancionada pelo presidente Michel Temer em 13 de julho e que passa a valer a partir deste sábado, dia 11. Fleury ficou impaciente e se irritou ainda mais quando percebeu que outras dezenas de grupos da categoria, no Facebook e no WhatsApp, tratavam do mesmo assunto. Não hesitou. Classificou a atitude da CNT como tentativa de "mordaça e intimidação". "Querem que o MPT (Ministério Público do Trabalho) e o Judiciário fiquem de cócoras para o Poder Legislativo. Isso é mordaça, é inquisição? Vamos ser queimados na fogueira?"
A fúria virtual dos procuradores não parece afetar o ambiente ordeiro no Banco Itaú, no bairro do Jabaquara, em São Paulo. Ali, 40 pessoas vêm se reunindo diariamente numa sala de treinamento, colorida, sem mesas e com lousas na parede, para que as ideias fluam de forma direta e sejam registradas na hora. São profissionais dos departamentos Jurídico, de Recursos Humanos e Financeiro. O grupo foi formado em junho, antes da sanção da reforma trabalhista, mas nos últimos três meses se dedicou só a esse tema. Os encontros se estendem frequentemente das 9 às 18 horas. "No começo houve muita dúvida, informações divergentes e desencontradas", conta Leila Melo, diretora executiva da área jurídica. "Hoje (os funcionários) estão tranquilos. Ninguém foi pego de surpresa." O Itaú é o maior banco privado e o sétimo maior empregador do país, com mais de 78 mil funcionários, segundo dados de 2016 do Ministério do Trabalho. Entre as possibilidades abertas pela reforma, o banco estuda implementar o parcelamento de férias em três vezes, a compensação do banco de horas (já aplicada em alguns casos) e negociações individuais para quem ganha acima de R$ 11 mil, duas vezes o teto da aposentadoria pelo INSS. Devem ficar para um segundo momento outras mudanças, mais complexas, como o trabalho intermitente, sem jornada fixa, para dias de pico de movimento em agências, e o home office, sobretudo na área administrativa. Leila aposta que novas modalidades de trabalho se refletirão em mais contratações no futuro. E também vê com bons olhos o cerne da proposta, de privilegiar a negociação entre empregados e empregadores: a primazia do negociado sobre o legislado. Essa mesma premissa, no entanto, provoca revolta entre outros atores envolvidos no debate.
Procuradores do Trabalho dizem haver na reforma 12 pontos contrários à constituição
Encontram-se nesse grupo parte dos procuradores do Trabalho (que representam os interesses difusos da coletividade), dos juízes do Trabalho, de sindicalistas e assalariados. "Existem diversas lacunas (na reforma). Tudo vai depender da interpretação. Depende do Judiciário não perdermos as oportunidades que a reforma traz", diz Cássia Pizzotti, sócia do Demarest Advogados, que lista grandes companhias entre seus clientes. Para ela, a reforma, embora benigna, pode aumentar a insegurança jurídica no curto prazo. A insegurança é certa, no que depender dos procuradores do Trabalho. Eles vêm esmiuçando os mais de 100 pontos alterados pela reforma na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e acreditam ter encontrado nela ao menos 12 pontos inconstitucionais. A Justiça do Trabalho já está afogada pelo nível de insegurança jurídica atual â só em 2016 recebeu 3,9 milhões de novos processos. No momento, é difícil imaginar que uma reforma tão bombardeada contribua para dissipar a fumaça desse combate contínuo.
A incerteza faz com que cautela seja a palavra de ordem entre empresários ao avaliarem como adotar a lei. A dúvida fica evidente no levantamento feito por ÉPOCA com 26 das maiores empresas do país (numa lista de 54), que empregam juntas mais de 1 milhão de pessoas. Todas classificam a reforma como "boa", mas 18 não sabem quando vão implementar as novidades (leia mais no gráfico abaixo). A cautela das empresas é mais que compreensível. Entre os procuradores do Trabalho circula uma estimativa de que, pelos próximos dez a 20 anos, a reforma gerará um volume crescente de processos nos tribunais, até que se solidifique a jurisprudência. "É uma legislação nova e complexa. O que estamos fazendo e vamos fazer ao longo de um período é interpretar essa norma", afirma o procurador-geral Fleury.
Para além da complexidade da matéria e da qualidade da lei, há um problema de origem no debate. Os procuradores dizem não ter sido ouvidos durante a preparação e a tramitação da reforma no Congresso. "Fomos procurados por mera formalidade. Nossas posições não foram consideradas", diz o procurador Regional do Trabalho em Brasília, Cristiano Paixão. Ele alega que o projeto tramitou num processo "atropelado", em que o Senado abriu mão de ser casa revisora e aprovou o texto como saiu da Câmara. Já vinha de antes também a resistência dos procuradores do MPT a iniciativas do governo Temer. "Há também o decreto que dificulta a caracterização do trabalho escravo e várias outras medidas", diz Paixão. "A gente percebe um movimento articulado de restrição de direito. São normas que estão contando apenas com o ponto de vista empresarial. Estão construindo soluções unilaterais para o mundo do trabalho, medidas que vieram com déficit de legitimidade por não terem sido discutidas suficientemente com a sociedade, apesar de mexerem de forma profunda nas relações de trabalho".
A reforma provavelmente facilitará a criação de postos de trabalho, um fenômeno que deverá ocorrer nos próximos meses de qualquer forma, por causa do reaquecimento da economia. Mas ela realmente muda as relações de trabalho e pode levar à criação de vagas com menos benefícios do que aquelas com que o brasileiro se acostumou ao longo das últimas décadas. O trabalho intermitente, prestado de forma "não contínua", como diz a lei, é um dos pontos mais controversos.
Ele poderá ser aplicado em horas, dias ou meses, e o contratado terá de intercalar períodos de atividade com inatividade. Não está claro, no entanto, o que descaracterizaria a intermitência, nem como adicionais legais, como repouso semanal remunerado e benefícios como alimentação e saúde, se aplicam à modalidade. Centrais sindicais criticaram a "falta de limites" para a aplicação. "É análoga à escravidão. Não sou contra o conceito, desde que haja regras", diz Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT) e do Sindicato dos Comerciários de São Paulo.
Outro ponto controverso, e que deverá ser revisto, é a escolha do salário recebido pelo trabalhador como régua para determinar o pagamento de indenizações por dano moral. A decisão abre brecha para uma executiva de alto escalão ser mais bem ressarcida pelo mesmo assédio sofrido do que uma funcionária da limpeza. "Não tem sentido. Uma saída mais razoável seria usar o teto do INSS como parâmetro", sugere Maurício Guidi, advogado trabalhista do escritório Pinheiro Neto. Sólon Cunha, do escritório Mattos Filho, chama a atenção para um terceiro aspecto: a dificuldade que as empresas terão para aplicar a remuneração por produtividade. "O que seria considerado 'acima do ordinário' (termo usado na lei)?", diz. As empresas ficam livres de encargos trabalhistas e previdenciários sobre esse tipo de gratificação.
Alguns sindicatos aproveitam de forma tática o momento de incerteza. O dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro formalizou no fim de outubro uma cláusula que barra a aceitação de quaisquer medidas da reforma trabalhista até 1º de outubro de 2018. "Os empresários estão inseguros, então exploramos a fragilidade da lei. A sociedade pode não estar indo para a rua, mas há resistência", diz Jesus Cardoso, presidente da entidade. Ele refuta a implementação do banco de horas e a possibilidade de homologação de demissão na ausência do sindicato. No ABC paulista, os metalúrgicos também aprovaram uma salvaguarda para se blindar da reforma. Uma das principais preocupações das entidades sindicais é o fim da obrigatoriedade do pagamento do imposto sindical, que causará uma diminuição drástica de receita. Para tentar compensar, alguns representantes sindicais articulam com líderes partidários uma modalidade alternativa de financiamento para as entidades.
Mesmo entre os sindicalistas há grandes diferenças de postura em relação à nova lei. O presidente da Central dos Sindicatos do Brasil (CSB), Antônio Neto, acredita que as convenções coletivas serão o antídoto para proteger os trabalhadores da ameaça de perdas de direitos."Temos dado a orientação de que a 'chave não vira' a partir de sábado e vai mudar a vida. A CLT não acabou. Ela tem uma estrutura jurídica muito bem organizada e ela se mantém, assim como seus principais artigos."
Antes mesmo de entrar em vigor e chegar às convenções e às mesas de negociação, a reforma já abriu uma batalha judicial entre gigantes. A Procuradoria-Geral da República, ainda na gestão de Rodrigo Janot, moveu uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. A ação questiona o trecho da lei que prevê, em algumas situações, ficar a cargo do sucumbente (aquele que perde uma ação trabalhista) o dever de arcar com os custos do processo e honorários advocatícios. A lei define que esses custos devem ser pagos mesmo se a parte derrotada comprovar não ter condições financeiras. Na avaliação da Procuradoria, isso contraria o direito de todo cidadão à Justiça, previsto na Constituição. A Advocacia-Geral da União saiu em defesa da manutenção desse artigo, com o STF, e promete enfrentar todos os questionamentos jurídicos que surgirem. O objetivo é defender a reforma tal qual ela saiu do Congresso. A ÉPOCA, a AGU informou estar preparada para atuar em processos até mesmo na primeira e na segunda instâncias "que versem sobre pedidos incidentais de inconstitucionalidade ou em casos concretos nos quais a União seja parte".
No fim, caberá ao Judiciário conduzir a velocidade de assimilação da nova lei pela sociedade. Mas não se pode dizer que haja paz nem mesmo entre os juízes. Os integrantes da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) mapearam "dezenas de discordâncias" a respeito da reforma. O presidente da entidade, Guilherme Feliciano, teme que a dificuldade de interpretação da lei provoque uma avalanche de novos processos. Enquanto embarcava em um avião no aeroporto de Brasília, na tarde da terça-feira, Feliciano se dividia entre o check-in e as mensagens. Os grupos de bate-papo tornaram-se uma arena para debater as leis e encontrar "atos falhos" na nova legislação.
Não ajudaram nem um pouco declarações recentes da autoridade máxima da Justiça do Trabalho no país, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra Filho. Ele afirmou ao jornal Folha de S. Paulo que "é preciso flexibilizar direitos sociais para haver emprego". Do lado dele ficou um grupo de 100 juízes, autodenominado Ajutra, que defende uma interpretação mais literal da lei. Feliciano desdenha do grupo, ao qual chama de dissidente, pouco representativo e perdedor de eleições, e ironiza o próprio presidente do TST. "O ministro não representa nem sequer o TST. A maioria dos ministros tem uma visão muito diferente da dele."