Em artigo, presidente da Anamatra fala sobre Justiça do Trabalho e desigualdade

Blog do Frederico Vasconcelos (Folha de S. Paulo) divulgou o artigo nesta quinta-feira (23/3)

O artigo do presidente da Anamatra, Germano Siqueira, intitulado “Justiça do Trabalho e desigualdade“, foi destaque no Blog do Frederico Vasconcelos (Folha de S. Paulo), nesta quinta-feira (23/3). O magistrado fala sobre os debates em torno da reforma trabalhista (Projeto de Lei 6787/2016) que, entre outras finalidades, adota a prevalência do negociado sobre legislado fora dos limites constitucionais. "A referida reforma tem suscitado inúmeros debates, alguns deles com o claro objetivo de desqualificar a instituição Justiça do Trabalho e o papel histórico da CLT".

No artigo, Siqueira também destaca as propostas reais que estão por trás das supostas "melhorias" que o PL poderia trazer para o mercado de trabalho, os trabalhdores, os sindicatos e, consequentemnte, para o Judiciário Trabalhista, e também faz críticas severas quanto a constante afirmação de que a Justiça do Trabalho e a CLT são responsáveis pelo desemprego no país. "À Justiça do Trabalho destina-se o papel de valorizar esses princípios constitucionais e fazer valer as garantias de equilíbrio asseguradas em seu texto. Só assim será possível contribuir para aquilo que a Constituição Federal prevê para o país: a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária” (art.3º,I, CF)", disse.

 

Justiça do Trabalho e desigualdade
Por Germano Siqueira, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA

Tramita no Congresso Nacional a chamada reforma trabalhista (Projeto de Lei 6787/2016) que, entre outras finalidades, adota a prevalência do negociado sobre legislado, fora dos limites constitucionais. A referida reforma tem suscitado inúmeros debates, alguns deles com o claro objetivo de desqualificar a instituição Justiça do Trabalho e o papel histórico da CLT. 
Na visão desses “debatedores”, a referida reforma propiciaria mais postos de trabalho, o empoderamento dos sindicatos, ganhos de produtividade, maior segurança jurídica e a consequente redução do número de processos no Judiciário trabalhista. 

Será isso verdade? As críticas procedem?  A resposta é negativa. 

É importante refutar desde logo a assertiva segundo a qual a Justiça do Trabalho e a CLT sejam responsáveis pelo desemprego em nosso país. 

A CLT, com várias alterações ao longo desse tempo, está em vigor há 70 anos e os índices de desemprego, com suas curvas ascendentes ou descendentes, de modo algum se relaciona com o conteúdo de suas normas e dos direitos e deveres que estabelecem. O que talvez muitos não saibam é que, das normas originariamente editadas na CLT (900 artigos, aproximadamente), apenas pouco mais de 250 permanecem com a mesma redação. 

Na verdade, como afirma Paul Krugman “a causa do desemprego duradouro decorre de eventos macroeconômicos”.  Foi assim na crise americana de 2008, em que a taxa de desemprego nos EUA chegou a 10%, e assim está sendo no Brasil, também por desvios da mesma ordem. 

Fato é que agora opta-se em definitivo pelo enfraquecimento da legislação social e por medidas que agravarão o empobrecimento dos trabalhadores. Um claro erro, na mesma medida dos erros de diagnóstico que colocam em pauta uma desastrosa reforma da Previdência, que imporá idades excessivas para aposentadoria de homens e mulheres  e  a obrigatoriedade  de trabalhar ininterruptamente de 16 aos 65 anos para obter aposentadoria integral, injustiças cometidas principalmente contra a população mais carente; antecedida pela chamada PEC do teto de gastos (a PEC da recessão), que congela qualquer possibilidade de crescimento do país pelos próximos 20 anos,  nas suas áreas essenciais. 

A Justiça do Trabalho, nesse contexto, tem atuado continuamente na conciliação e na solução das demandas que lhe são apresentadas, sofrendo em sua estrutura os efeitos da crise, pelo aumento da movimentação processual nas Varas e nos Tribunais, não podendo jamais ser apontada como responsável pela “quebra” de empresas. Isso seria o mesmo, aliás, que repudiar outros ramos judiciários pela falência de conglomerados industriais apanhados em atos de corrupção ativa nos últimos anos. 

Muito menos se pode atribuir responsabilidade à Justiça do Trabalho pelo problema de produtividade nas empresas nacionais. Nesse ponto, sabe-se perfeitamente que essa efetiva dificuldade está relacionada com baixo investimento em educação, em formação, treinamento e infraestrutura, além dos aspectos da legislação tributária, inclusive para evitar a guerra fiscal interna, que tem aniquilado parques fabris em alguns estados.

Os reais problemas do Brasil passam pela falta de políticas fiscais estratégicas para a indústria e para as pequenas e médias empresas, que apostem no fortalecimento de um mercado consumidor robustecido, onde se insira o trabalhador bem remunerado. Temas esses nem de longe tocados como prioridades pelo Governo, assim como nenhuma medida no sentido de deitar um olhar especial sobre a incomum lucratividade do sistema financeiro no Brasil e sobre os elementos constitutivos da dívida. Essa última que consome 42,43% dos recursos do orçamento da União com pagamentos de juros e amortizações, à base de uma taxa de juros que só existe no Brasil, uma anomalia que sacrifica a população e segmentos produtivos, com aptidão de causar danos severos, até mesmo o fechamento de empresas. Sobre tais assuntos paira um silêncio ensurdecedor. 

Não há nenhuma cobrança efetiva sobre esses pontos que, a rigor, são decisivos para o crescimento Brasil. Perde-se a discussão em questionamentos sem muitas vezes irrelevantes do ponto de vista dos reais problemas. E é exatamente isso que se faz ao se dizer (com informações desvirtuadas) que a Justiça do Trabalho tem um número elevado de processos, maior que em qualquer lugar do mundo. 
A falta de contextualização precisa ser corrigida para dizer que o fenômeno indesejável da judicialização expansiva não é característica apenas o Judiciário trabalhista, mas do Judiciário brasileiro, fruto da ação de quem descumpre obrigações, e não de quem teria um estranho gosto de demandar.  

Conforme dados do relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Justiça do Trabalho recebeu, em 2015, 2,6 milhões de casos (evolui para mais de 3 milhões em 2016) e tem 5 milhões de processos pendentes. Já a quantidade de processos na Justiça Estadual, é muito maior, chegando a 18,9 milhões de casos novos e a 59 milhões de casos pendentes. Na Justiça Federal, por sua vez, existem 1,8 milhões de casos novos e 9 milhões de casos pendentes.  

Verifica-se desse comparativo, como fator positivo, que a Justiça do Trabalho tem uma taxa de resolutividade de processos muito maior. Além disso, a alta litigiosidade ocorre de forma sistêmica, fruto da conduta de quem se utiliza do sistema para frustrar o direito de outrem, e também de uma lei processual ainda marcada pelo individualismo jurídico-processual, que rejeitou a coletivização de ações (vide o veto ao art.333 do NCPC ). 

A lista dos grandes devedores trabalhistas  e dos grandes litigantes judiciais  (essa atualizada a última vez pelo CNJ em 2012) indica o perfil do uso da máquina judiciária. E não são os trabalhadores e os cidadãos mais desprotegidos os interessados no prolongamento do litígio.

É ainda importante assinalar, para refutar a grosseira ideia de que o trabalhador postula apenas por um capricho que, na Justiça do Trabalho, as principais demandas assentam-se em três grandes núcleos de pedidos : 1º pagamento de verbas rescisórias (que reponde por 4,5 milhões de pedidos) ; 2º jornada de trabalho (com 1,6 milhões de pedidos);e 3º responsabilidade civil do empregador (1 milhão de pedidos). Como visto, é a falta do pagamento do essencial direito de ver quitada a rescisão do contrato de trabalho que impulsiona a imensa maioria dos pleitos levados ao Judiciário Trabalhista. 

E ainda cabe um parêntese. No dia 9 de março, de forma desrespeitosa, o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, ao dizer que a Justiça do Trabalho não deveria existir, alegou que suas decisões sobre gorjetas teriam “quebrado” o sistema de hotéis, bares e restaurantes no Rio de Janeiro. Os pedidos referentes a essa matéria, em todo o Brasil, somam menos de 5.000, sem nenhuma potencialidade de causar danos a qualquer estrutura produtiva. 

Esse episódio demonstra que alguns parlamentares exercem seus cargos apenas como porta-vozes de interesses particulares, em uma atuação tipicamente patrimonialista, assim considerada a conduta que consiste em não distinguir entre o público e o privado no exercício de cargos públicos. Em outras palavras, a atitude de simplesmente esquecer o que preceitua o § único do art. 1º da Constituição (Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente) para, ao contrário, cumprir o mandato em nome de interesses próprios, de familiares, de amigos ou de financiadores eleitorais, sem dedicar atenção àqueles que os elegeram. Abandonar a capacidade de abstração para velar interesse público é um péssimo sinal. 

Voltando ao raciocínio anterior, fruto dessas ações propostas na Justiça do Trabalho são realizados pagamentos anuais aos trabalhadores da ordem média de 15 a 20 bilhões, conforme estatísticas periodicamente publicadas pelo Trinunal Superior do Trabalho (TST). Para a Previdência Social, são  recolhidos em torno de 2 bilhões  de reais e, para o Tesouro, em  multas e imposto de renda, mais 2,8 bilhões de reais. 

As estatísticas também apontam que, das 2,6 milhões  de novas ações,  apenas 25,3% tramitaram pelo rito sumaríssimo (causas de até 40 salários), o que totaliza nesse grupo 18,9 bilhões em valores dos pedidos. As outras 75% (cerca de 1,9 milhões de ações ), tramitaram pelo rito ordinário, e chegam, no mínimo, a 59 bilhões de reais, em valores referentes à repercussão econômica do pedido.  Tudo somado, tem-se um impacto geral dos pleitos de aproximadamente 77 bilhões.  

Outro ponto que merece atenção nos argumentos que vem sendo utilizados para legitimar a reforma trabalhista nos moldes do  PL 6787/2016 é o alegado elevado orçamento da Justiça do Trabalho. Aqui, tenta-se vender a ideia subliminar de justificar e estimular a prevalência de acordos sobre a lei como promessa (falsa) de  que tal medida seria de interesse econômico/fiscal. 

O orçamento da Justiça do Trabalho para 2017 está na casa de 20 bilhões de reais, destinado a custear todo esse ramo: os 24 Tribunais Regionais do Trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho. Apenas a título de comparação, apenas os orçamentos de três Tribunais de Justiça brasileiros (TJSP, TJMG e TJRJ) equivale exatamente ao de toda a Justiça do Trabalho brasileira.

Não se trata, portanto, do maior orçamento do Poder Judiciário nacional, mas de um orçamento criteriosamete trabalhado, inclusive para superar o boicote que lhe foi imposto no ano de 2016, e para dar funcionamento a um ramo fundamental para o país e para a sociedade. É preciso não levar a população ao engano. 

Recusar o papel da Justiça do Trabalho (ou a sua existência) em um país socialmente injusto como o Brasil, que ainda sofre, por exemplo, com a chaga do trabalho análogo à escravidão (cuja lista pretendeu-se omitir até poucos dias atrás); com a acentuada desigualdade no mercado de trabalho da mulher; com as marcas do trabalho infantil; e com elevados números de acidentes de trabalho é fechar os olhos para qualquer perspectiva de comprometimento  com uma sociedade menos desigual (art.3º III CF) e com a contínua construção de uma sociedade cidadã e valorizadora do trabalho humano (art.1º, I e IV CF) e  que, nessa medida, deve estimular o papel da livre iniciativa, sem os quais o projeto de bem-estar social, consagrado na Constituição de 1988, seria ilegitimamente desmontado. 

À Justiça do Trabalho destina-se o papel de valorizar esses princípios constitucionais e fazer valer as garantias de equilíbrio asseguradas em seu texto. Só assim será possível contribuir para aquilo que a Constituição Federal prevê para o país: a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária” (art.3º,I, CF). 

Que todos possam se dar conta dessa realidade, cumprindo o papel que lhes é destinado, para que não se cometa o erro de transformar nosso país em uma plutocracia.  
 

Receba nossa newsletter

SHS Qd. 06 Bl. E Conj. A - Salas 602 a 608 - Ed. Business Center Park Brasil 21 CEP: 70316-000 - Brasília/DF
+55 61 3322-0266
Encarregado para fins de LGPD
Dr. Marco Aurélio Marsiglia Treviso
Diretor de Assuntos Legislativos da Anamatra
Utilizamos cookies para funções específicas

Armazenamos cookies temporariamente com dados técnicos para garantir uma boa experiência de navegação. Nesse processo, nenhuma informação pessoal é armazenada sem seu consenso. Caso rejeite a gravação destes cookies, algumas funcionalidades poderão deixar de funcionar.